2018: “A Coalizão do Caos” | A fala de Felipe Quintas
A articulação entre financistas, Lava-Jato, evangélicos e militares para desmontar o país
Transcrição da fala de Felipe Quintas[1] no Duplo Expresso de 6/11/2018 pelo Coletivo Vila Mandinga
Entreouvido na Vila Mandinga:
“Amigos,
Aqui vão, transcritas, as quase 30 laudas da fala ANTOLÓGICA de Felipe Quintas. Trabalhamos seis pessoas, porque todos tínhamos pouco tempo, mas SUPER deu certo.
Marx fala do “general knowledge” – que na intimidade chamamos de “o general Conhecimento”, no “Fragmento sobre as Máquinas”.
Ali ENSINA que “o telégrafo não pertence a ninguém, porque é o resultado do trabalho acumulado da multidão.” Vale para a Internet, como valia para o telégrafo, e vale para o sistema S-400 de mísseis antimísseis dos russos e para transcrição de falas que nos chegam pela internet e TÊM DE SER FIXADAS EM TEXTO ESCRITO.
Segue a luta.”
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Felipe Quintas: [45’48”] Bom-dia a todos, bom-dia ao Duplo Expresso, Romulus, Patrícia, Wellington e a toda a audiência do programa. O tema de hoje é como os financistas, as forças armadas (FFAA), a Lava-jato e evangélicos, ou, claro, parte expressiva desses todos, fazem parte dessa grande coalizão que, no final das contas, está levando o Brasil ao caos. Forças que estão no governo Bolsonaro, estavam no governo Temer, estão aí na política desde o impeachment. Vamos ver a dinâmica deles até o momento e até onde podem levar o Brasil. Uma grande parte de todos esses grupos que elenquei, partes centrais e líderes principais, ou foram aliados de governos do PT, ou foram favorecidos pelos governos do PT – como no caso da Lava-Jato –, ou então começaram como aliados do governo do PT mas progressivamente, por uma série de razões, se descolaram e tornaram-se oposição a eles, como é o caso de parte dos evangélicos (caso da Universal) e das FFAA, que até o caso da ‘Comissão da Verdade’ estavam em relação de amistosidade com o PT. Se não era apoio explícito, tampouco era oposição. E a partir da ‘Comissão da Verdade’ passaram a ser oposição, não só ao PT, mas a tudo que lembrasse esquerda – a todos os 50 milhões de tons de vermelho. E a Lava-Jato, que desde o início teve claro viés anti-PT, mas ‘operação’ que não existiria sem as leis aprovadas pelos próprios governos do PT, principalmente as leis aprovadas no governo Dilma, lei de Delação Premiada e de Acordo de Leniência, que não existiam, e sem os quais a Lava-Jato não aconteceria, ou não aconteceria do jeito que vimos, com todos os impactos que teve. E os desdobramentos da Lava-Jato também não aconteceriam sem a lei da Ficha Limpa, aprovada ainda no governo Lula, sem ter nada a ver diretamente com o início da Lava-Jato. Mas o grande objetivo da Lava-Jato, que era tirar o Lula da disputa eleitoral, não seria possível sem a lei da Ficha Limpa. [interrompido] [50’07”] Exatamente. A Lei da Delação Premiada permitiu não só a demonização da classe política brasileira, verdadeira caça às bruxas, com os juízes tomados de sentimento messiânico de redenção nacional, senhores da moralidade intransigente e absoluta. Na verdade, moralidade falsamente intransigente, porque todos sabemos a parcialidade contra os alvos da investigação, sempre governos do PT. E também a caça às bruxas contra empresários brasileiros, de juízes parciais contra os empresários nacionais brasileiros, sobretudo os que estiveram ligados à estratégia de desenvolvimento dos governos Lula. A caça às bruxas contra empresários brasileiros abriu espaço para que entrassem aqui uma legião de empresas estrangeiras, desnacionalizando um dos últimos bastiões da indústria nacional[51’21” ainda sob controle do empresariado brasileiro, justamente o ramo da construção civil. [51’21”] Desde 2013 assistimos ao progressivo descolamento desses quatro elementos dessa Coalizão do Caos de que estou falando, financistas, Lava-Jato, FFAA e evangélicos (não necessariamente nessa ordem), em relação ao PT. Esse descolamento é totalmente decorrência das medidas desastrosas, da (des)concertação política, adotadas pela Dilma; e esse descolamento favoreceu o impeachment, como já sabemos. Todos esses atores estiveram na base de apoio do Temer, desde que Temer assumiu, até agora, sempre foram fundamentais para que Temer conseguisse aprovar as famigeradas ‘reformas’ as quais, afinal de contas, sempre foram a agenda desses grupos. Importante é que, com Temer no governo, quem estava com a cara a tapa na linha de frente era a ala mais fisiológica do PMDB e do ‘centrão’. Esses estavam à frente, sofrendo a rejeição da opinião pública. O PSDB tentou se esconder, mas não conseguiu. A sociedade brasileira entendeu que o PSDB estava ali também, embora tenha conseguido dissimular bem a relação íntima do partido com financistas até mesmo com a Lava-Jato. Mas o PSDB não conseguiu dissimular sua relação com o PMDB, com o Centrão e com o Temer – o que custou muito caro ao partido nas eleições.
[53’19”] Com o governo Temer, todos os atores que estou elencando na Coalizão do Caos apoiavam Temer, preparando-se na surdina para 2018. Enquanto esses atores escondiam-se por trás da impopularidade de Temer, da rejeição ao Temer e à velha política, por assim dizer, estavam todos se articulando para eleger suas bancadas em 2018, pensando em ter uma representação eleitoral a partir de 2018. Foi articulação praticamente silenciosa que praticamente não apareceu (se é que apareceu alguma coisa) no noticiário. [54’13”] A grande mídia não teve relação unívoca com o próprio governo Temer. Às vezes soprava, quando se tratava de reformas que a própria mídia defende, porque também é associada aos grupos financeiros e outros da Coalizão do Caos. Mas às vezes mordia, quando levava à fogueira a corrupção, o fisiologismo do toma-lá-dá-cá. A mídia, assim, acabou por ficar presa numa relação muito personalista com o governo Temer, fazendo concursos para ver quem seria mais corrupto ou menos corrupto, explorando com sensacionalismo o lado moralista do processo, enquanto os grupos da Coalizão do Caos, articulavam-se por trás. Algumas vezes deram até a impressão de terem perdido o protagonismo. Mas estavam fingindo-se de mortos para poder articular-se melhor, nos bastidores, dentro dos partidos, para tentar emplacar suas próprias bancadas, seus próprios representantes na eleição de 2018. Apesar de não falarem todo o tempo, publicamente, em eleições, como fez a esquerda, aqueles partidos prepararam-se muito melhor para as eleições, do que a esquerda. Vieram com muito maior poder de fogo, e tiveram um resultado evidentemente muito superior ao da esquerda. Claro, contaram com recursos muito maiores, mas também contaram com organização muito melhor, ao longo dos últimos anos, mesmo estando na base do governo Temer. Mas, como era uma base ‘oculta’, uma base implícita, aqueles partidos acabaram por não sofrer tão diretamente os efeitos da rejeição popular contra o governo Temer. [56’13”] Nenhum desses grupos tinha o Bolsonaro como seu candidato preferencial, como primeira opção para presidente. Só bem tardiamente, com o processo já bem avançado, Bolsonaro tornou-se opção como candidato dessa coalizão, porque se mostrou como o candidato mais competitivo contra o PT. Para tanto, Bolsonaro não contou com ninguém, só com uma mínima coalizão de setores policiais e ligados à segurança privada. E mostrou-se muito hábil no serviço de preservar essa coalizão mínima, até por volta de agosto, no patamar de 20% dos votos. Se sua coalizão mínima não lhe permitiu até ali crescer mais, ela conteve qualquer queda que o pusesse abaixo dos 20% de preferência dos eleitores. A resistência dessa base mostrou-se real. A base mínima de Bolsonaro não oscilou. Isso mostrou que era candidato com apoio pequeno, ainda que imunitário (?!) mas real, na sociedade. Assim que o PT lançou candidato, o Haddad, que logo disparou, passando de 9% para 22% numa semana, o Bolsonaro, por já estar naquele patamar de 20% mostrou ser o candidato mais competitivo para ‘representar’ a Coalizão do Caos, a fim de derrotar o PT.
[57’47”] O candidato preferido da Coalizão do Caos era o Alckmin, do PSDB. Tanto que todos, a maior parte dos partidos, fechou acordo com Alckmin, dos bancos e do setor financeiro nem precisa falar, e a Lava-Jato desde o início da eleição tinha relação muito amistosa e cordial com o PSDB. E até ali as FFAA não intervieram. [58’23”] Mas é interessante notar que mesmo as FFAA só entraram de última hora na candidatura do Bolsonaro, quando Mourão foi indicado a vice. Porque até então as FFAA, o generalato, procurava uma distância da candidatura Bolsonaro [interrompido] [59’61”] Exatamente. E nesse momento quando Mourão entra na candidatura de Bolsonaro, como última opção [e não tenho notícia de contraditório quanto a isso], marcando a adesão das FFAA, marca-se a adesão das FFAA também ao nome de Bolsonaro. Até ali, Bolsonaro estava com muita dificuldade para ultrapassar o teto de granito nas pesquisas, aqueles 20%. 20% é a parte da sociedade que fala de ‘bandido bom é bandido morto’, a turma da violência, da segurança privada, das armas, dos preconceitos exacerbados. Essa turma não passava de 20%, mas serviu de base inalterada desde o final do ano passado, para que Bolsonaro se mantivesse estável naquele patamar de intenções de voto.
[1h00’01”] Quando os outros candidatos, os concorrentes de Bolsonaro, não se mostraram a altura de concorrer com ele, sem mostrar sequer alguma coisa que se aproximasse daqueles 20%, sobretudo Alckmin, candidato preferencial da direita, que sempre esteve longe dos 20% e jamais decolou; e quando a situação eleitoral definiu-se, com Lula retirado da eleição pelo TSE, com o PT indicando Haddad, que imediatamente herdou os votos de Lula. A transferência realmente massiva de votos, que fez Haddad crescer mais de 100% nas intenções de voto em uma semana… naquele momento com seus 20, 22%, Bolsonaro estava já posicionado como o candidato mais forte para evitar que o PT voltasse ao governo. E era fundamental derrotar o PT ou qualquer candidato de centro-esquerda, porque se o PT voltasse ao governo, todo o esforço construído pelo golpe desde 2013 não faria sentido. Independente de como o PT voltasse ao poder [com Haddad ou Lula ou outro candidato], só a derrota eleitoral já seria baque significativo contra as intenções e o projeto desse grupo da Coalizão do Caos. A Coalizão do Caos tinha de derrotar o PT, e viram no Bolsonaro o candidato mais bem posicionado para conseguir isso. E um Bolsonaro turbinado pelo general Mourão candidato a vice-presidente. Lembro que quando Mourão foi posto como candidato na chapa de Bolsonaro, analistas e muita gente na mídia avaliou que seria escolha ruim, porque com ele Bolsonaro não agrega outra fatia do eleitorado. ‘Por exemplo’, Alckmin está tentando chegar ao eleitorado feminino e do interior, com Ana Amélia; Ciro Gomes procura a mesma coisa, com a Kátia Abreu; à época Haddad ainda era o vice, estaria procurando votos entre os intelectuais, a classe média… E Bolsonaro estaria escolhendo um vice muito parecido com ele mesmo. [1h02’00″] Sim, mas em termos de estratégia, a inclusão do Mourão veio com todo o aparelho de inteligência militar, para assessorar a campanha, que até ali era muito pobre em recursos, ganhou uma grande dotação de inteligência e de capacidade de penetração e de manobra da opinião pública, com o serviço militar de inteligência, de investigação – de todas as capacidades indispensáveis à guerra híbrida, na acepção geral da expressão. [1h04’14”] Bolsonaro acertou em cheio, na escolha do vice, que tornou sua candidatura muito mais competitiva. Não em termos simbólicos, porque em termos simbólicos Mourão nada agregou, ou agregou muito pouco, apenas reforçou o que Bolsonaro já tinha, apresentando-se como representante da lei e da ordem. Mas em termos de estratégia política e de recursos para mobilizar a estratégia em termos de captação de votos, a entrada de Mourão foi fundamental: pessoas que jamais haviam pensado em votar em Bolsonaro foram convencidas a votar pela entrada de Mourão na campanha. Com isso a candidatura também atraiu o apoio da Lava-Jato, dos financistas e dos evangélicos, que até então ainda estavam recalcitrantes em apoiar Bolsonaro. [interrompido]
[1h05’38″] Então, em termos de marketing político, em termos de dominar as estratégias eleitorais para conquistar o voto de uma sociedade tão grande e diversa como é a sociedade brasileira, os militares mostraram-se muito mais adiantados que muitas empresas de marketing político contratadas por partidos tradicionais como PT e PSDB. Esse foi fator que pouca gente soube avaliar na classe política brasileira, principalmente nos partidos que hegemonizavam a disputa eleitoral, se é que alguém levou tudo isso em consideração. Os partidos políticos consideraram as FFAA carta fora do baralho. E a história recente encarregou-se de mostrar que não era bem assim. Na história do Brasil, aliás, sempre que os militares são dados como mosca morta pelas forças civis eles surpreendem os demais atores e mostram a importância deles. Os militares brasileiros, basicamente, têm um complexo, não digo de inferioridade, mas eles acham que não recebem das forças políticas o tratamento que entendem que merecem ter. Desde o Império, os militares brasileiros acham que as forças políticas apenas os usam, sem lhes dar nada em troca. Nessas circunstâncias, eles se organizam politicamente para mostrar às forças políticas que, sim, eles têm poder como instituição nacional, e que, como instituição nacional permanente merecem influir nos destinos do país. É verdade que muitas vezes são usados por outros grupos não militares. Por exemplo, no golpe de 1964, os militares na verdade foram usados pela burguesia brasileira, em sua matriz estadunidense. A partir do momento em que já não interessava à burguesia brasileira continuar tutelada pelos militares, houve todo um trabalho pela redemocratização. Em 1977 os industriais assinam uma carta pedindo democracia, aliás, pedindo democracia e desestatização da economia. Os EUA entraram com a conversa dos direitos humanos e averiguação dos crimes cometidos por forças oficiais. Como já não interessava manter os militares, eles foram descartados. [1h08’28”] Mas historicamente no Brasil, os militares sempre quiseram se fazer ver, de uma forma ou de outra na vida política, para ter das forças políticas o tratamento que acham que mereçam ter. A candidatura do Bolsonaro, talvez até os militares tenham visto que desde o início a campanha estivesse muito amorfa, sem uma base em termos de poder político expressivo, os militares adotaram para si a campanha do Bolsonaro, para que pudessem ter maior penetração política usando a imagem do Bolsonaro, mas se associando diretamente a ele. Porque os militares já estão com o Temer. O general Etchegoyen na SNI já é uma forte presença militar no governo brasileiro, desde que Temer assumiu. Mas era presença de bastidores. Ninguém associa Temer a um governo militar, exceto alguns círculos hiper intelectualizados da esquerda, que nem contam, porque na sociedade brasileira aqueles setores são traço de representação. Mas os militares que já estavam no governo Temer, articulando uma maior participação política de alguma forma a partir de 2018… Agora eles estão na linha de frente, com Bolsonaro, tanto com ele, que é capitão e não é representativo do alto oficialato, mas com o general Mourão, como figura até mais forte que o próprio Bolsonaro.
[1h10’21”] Esse é um padrão que se repete com as demais forças da Coalizão do Caos. Os financistas, também todos eles, os demais grupos, têm representantes dentro do governo Bolsonaro, [1h10’29”] muito mais fortes que o próprio Bolsonaro. O Bolsonaro é apenas um ponto de sustentação, de articulação institucional e formal, para que todos esses grupos administrem diretamente o país, e não precisem mais ficar na sombra de ninguém, como aconteceu no governo Temer. Eles não querem mais se esconder. Querem assumir a linha de frente. Isso é absolutamente necessário para o aprofundamento do projeto político deles, mas também pode significar a derrocada do mesmo projeto político. Porque esse jogo de amigo versus inimigo, muito característico da polícia, vai-se virar diretamente contra os militares expostos, agora que não têm mais o escudo que tiveram no governo Temer, quando todas as críticas recaíam sobre Temer, sobre o PMDB, sobre os deputados, com os militares sempre imunes a tudo isso, como que protegidos pela rejeição que recaía toda só sobre Temer. Agora isso mudou. [1h11’49”] Agora os militares estão na linha de frente e colherão diretamente todas as críticas e todas as insatisfações que advirão inevitavelmente, nesse processo de desmonte das bases materiais do Brasil. Essas bases materiais são as mesmas que estão sendo construídas há muito tempo, desde o século 19 com a consolidação e ampliação do território brasileiro, até o século 20, com a experiência do desenvolvimento nacional que permitiu que surgisse uma ampla classe média (na comparação com os demais países subdesenvolvidos) e uma estrutura de ocupação e de renda que permitiu ao Brasil ser o que é hoje. Essas são as bases materiais que estão sendo atacadas hoje de forma muito rápida, muito agressiva, muito violenta. [1h12’24”] Essa Coalizão do Caos, assumindo a defesa desse desmonte, fatalmente colherá a oposição ao desmonte, e não terá mais como culpar forças políticas de centro, nada. Porque eles estarão na linha de frente. É possível que queiram culpar o próprio Bolsonaro, que queiram jogar toda a responsabilidade por esse projeto político destrutivo que eles têm sobre as costas da pessoa do Bolsonaro e sobre a família dele. Resta saber se dará certo, uma vez que todos os representantes desses grupos – sejam Mourão e o Heleno representando as FFAA, seja o Magno Malta representando os evangélicos, seja o Paulo Guedes representando os financistas, seja o Moro representando a LavaJato, todos eles já em cargos de ministros, com pouco mais de uma semana de o presidente ter sido eleito, sem sequer estarem empossados, e todos eles já são hoje muito mais fortes que Bolsonaro – estarão colocando seus grupos na linha de frente, não da administração dos recursos institucionais e da coerção do Estado, mas também na linha de frente sobre a qual recairá a oposição aos efeitos danosos do projeto de desmonte. Ainda não se sabe como Bolsonaro e sua equipe vão lidar politicamente com isso. É possível que, dada a maior fraqueza de Bolsonaro e família, em relação àqueles grupos, que eles recebam toda a carga de crítica que a sociedade disparará. [Os demais grupos] Talvez tentem se preservar, tipo “não, a gente só entrou de gaiato” ou [1h14103”], “político é o Bolsonaro, quem está há mais de 30 anos no Congresso?” Até pode ser. Mas, considerado o forte protagonismo que esses grupos terão no governo Bolsonaro, não sei se será tão fácil nem tão pacífico, os demais grupos terceirizarem, para a figura do Bolsonaro, a responsabilidade pelo desmonte. Dentre outros motivos, porque o próprio Bolsonaro vende-se como figura inferior e muito mais fraca que esses nomes representativos dos outros grupos. Aliás, essa é característica do processo todo. No governo Temer, quem assumia a liderança eram indiscutivelmente o Temer e o PMDB – com a Lava-Jato, os financistas e tal entrando como subsidiárias do governo Temer, auxiliares, escalão inferior, ou pelo menos era assim que parecia à opinião pública brasileira. – Mas até aqui Bolsonaro sempre tem feito questão de mostrar que os ministros representativos de cada um desses grupos da Coalizão do Caos é que são fortes; que cada um desses grupos é muito mais forte que ele.
[1h15’28”] A ponto de um Moro, um general Heleno, um Magno Malta, um Paulo Guedes serem insubstituíveis. Bolsonaro não tem como demitir qualquer desses ministros! Eles têm muito mais autoridade, muito mais poder, que o próprio presidente. E o presidente eleito faz questão de deixar isso perfeitamente claro. O presidente é ciente de suas fraquezas e limitações e já está cuidando de terceirizar o governo para grupos poderosos que já estavam no centro da política desde 2016, mas só agora têm oportunidade de aparecer claramente para a sociedade brasileira e estão na linha de frente da execução de seu próprio projeto político.
[1h16’11”] Esse projeto político por sua vez é subordinado aos interesses financeiros e militares sobretudo de EUA e de Israel. Nessa dependência, vê-se que o Bolsonaro que começa é apenas um fantoche dessas forças nacionais que são ligadas a forças muito poderosas do estrangeiro. E essa dependência leva a um paradoxo. [1h16’43”] Porque a parte mais afetada imediatamente por tudo isso será precisamente o empresariado do setor produtivo no Brasil. Esse empresariado, que tudo deve à dependência sobretudo aos EUA – que também é uma construção histórica, essa dependência não é de hoje. Mas esse mesmo empresariado, essa mesma burguesia brasileira produtiva, que tudo deve à dependência dos EUA, acaba por se tornar vítima da mesma dependência, num momento em que o mundo e sobretudo outros países muito próximos do Brasil em vários aspectos, como Índia, Rússia e China adentram e aprofundam um processo de desdolarização das suas trocas comerciais internacionais. Principalmente no petróleo, recurso no qual o Brasil, com as descobertas e explorações recentes do pré-sal, tornou-se grande ator mundial. [interrompido]
[1h17’52”] Exatamente. Então o Brasil acaba se colocando na contramão do mundo e principalmente na contramão dos países ditos em desenvolvimento, chamados os BRICS, que são parceiros naturais do Brasil, por compartilhar com o Brasil uma situação geopolítica mais próxima no mundo, do que, por exemplo, EUA, Israel ou países europeus em sua maioria. Então, essa mesma burguesia, industrial e do agronegócio brasileiro, que se julgava na linha de frente da condução da política, está sendo atropelada pela mesma dinâmica política. Mas está sendo atropelada não por alguma oposição direta aos seus interesses, mas justamente porque há outros grupos cumprindo tudo que aquela mesma burguesia sempre quis: maior abertura comercial para o mundo, privatização e desnacionalização maior subordinação aos comandos financeiros, militares e monetários dos EUA. O que se vê é que a burguesia brasileira industrial e do agronegócio nunca teve projeto sequer de classe no país, muito menos jamais teve projeto de nação. E essa burguesia foi das primeiras, fora os setores de segurança privada e policiais, que apoiou o Bolsonaro. Bolsonaro tem sido aplaudido efusivamente por empresários do setor produtivo, desde o ano passado. Bolsonaro dizia que o trabalhador teria de escolher entre ter direitos ou ter emprego, e muito empresário batia palmas, não entendendo o que estava em disputa. Porque esse tipo de ‘troca’ não faz nenhum empresário ficar mais rico, porque o dinheiro que ele ganha explorando mais o trabalhador é o dinheiro que ele perde com trabalhador menos capacitado, mais despreparado, mais cansado, mais pobre, que não consegue nem consumir os produtos que aquele mesmo industrial põe à venda no mercado. Implica dizer que essa burguesia não entendeu absolutamente nada do processo e já na primeira semana de governo eleito (ainda nem foi empossado! Imagine o que será depois de empossado!), logo na primeira semana essa mesma burguesia já aparece como primeira vítima do seu próprio programa!
[1h20’41”] É claro que não interessa ao Império que haja uma burguesia nacional florescente e empreendedora em setores dinâmicos e de alto valor agregado. [1h20’57”] Mas essa também foi opção dessa própria burguesia nacional brasileira, que sempre optou, como toda burguesia subdesenvolvida e dependente, sempre optou por tentar acumular riqueza pela superexploração da força de trabalho, pela redução dos já baixos custos do trabalho, pelo achatamento salarial, não concessão e supressão de direitos. Esse sempre foi o caminho escolhido pela burguesia nacional brasileira [1h21’26”] para se tornar mais rica. Nunca escolheram o caminho do desenvolvimento, de maior investimento em infraestrutura, de maior dotação tecnológica nas cadeias de produção. O caminho agora escolhido é o mesmo que a burguesia nacional brasileira sempre escolheu. Todas as vezes que governos tentaram forçar o empresário brasileiro a adentrar esses caminhos que é mais próprio dos países centrais e desenvolvidos, de maior acumulação capitalistas mediante investimentos em infraestrutura e dotação tecnológica como resultado de investimento intensivo em educação pesquisa e tecnologia – como se viu nos governos Vargas, governo Geisel e [1h22’29”] e alguma coisa nos governos Lula e Dilma – embora menos que nos governos Vargas e Geisel –, essa mesma burguesia revoltou-se contra esses governos e exigiu que fossem derrubados e substituído. É o que estamos vendo outra vez, nesse desdobramento do golpe de 2016, que acabou levando Bolsonaro a ser eleito. Claro que os trabalhadores também estão sendo prejudicados, não há disso dúvida alguma. Mas está ficando cada vez mais claro que a própria burguesia brasileira também está sendo vítima desse processo que ela mesma ajudou a desencadear quando articulou para obter o impeachment da Dilma. O que se vê agora é que a burguesia brasileira se meteu num labirinto [1h23’15”] do qual ela não sabe como sair. A burguesia brasileira acabou servindo de bucha de canhão para outras forças que estão lucrando muito mais do que ela, e que não têm qualquer interesse em que a burguesia nacional brasileira se fortaleça. A Lava-Jato, os evangélicos, financistas, as FFAA, ou são abertamente hostis ao empresariado produtivo brasileiro, como é o caso da Lava-Jato, que sem dúvida é abertamente hostil e perseguiu grande parte desse empresariado, ou dos financistas que preferem que o industrial, o agricultor ponha seu dinheiro na especulação ou na bolsa, não na produção. Os evangélicos não parecem ter relação clara nesse campo. A passagem de Marcos Pereira da Universal no Ministério da Indústria do governo Temer, não foi nada satisfatória para os industriais, que prefeririam mil vezes que se mantivesse Armando Monteiro, ministro da Dilma, e que a própria burguesia brasileira derrubou. E as FFAA historicamente não têm qualquer relação de simpatia ou de amistosidade com os industriais. Não tiveram durante a ditadura e continuam a não ter. Todos esses são interesses completamente diferentes. De um lado constituiu-se um estamento patriarcal no Brasil, ao mesmo tempo em que a burguesia não chega a ser classe econômica propriamente dita [1h24’33”]. Nessa Coalizão do Caos e do desmonte de toda a estrutura material que o Brasil construiu desde o século 19, põe em risco até a integridade territorial do país. Haja vista a abertura indiscriminada para mineradoras na Região Amazônica. Essa abertura indiscriminada ameaça realmente a integridade do território brasileiro. O acirramento das disputas sociais está aí, porque o governo Bolsonaro coloca a guerra cultural como aspecto marcante de seu governo. Até já criticou o ENEM, naquela questão de trans e LGBT, tudo isso. Toda essa animosidade que [Bolsonaro] cultiva contra a política de determinados grupos, que por sua vez são bastante hostis a ele, toda essa rivalidade gera uma desagregação social, que põe em risco a unidade territorial [1h25’40”]. E há todo o trabalho de grupos, que já vem de antes, de demarcar uma diferença entre o nordeste eleitor do PT, versus o sul eleitor da direita, tudo isso é ameaça à integridade territorial do Brasil, sim. Mas o governo Bolsonaro vem acirrar ainda mais essas disputas, essas desigualdades, até com interferência estrangeira no Brasil a partir de cessão a corporações estrangeiras de áreas com baixíssima penetração pelo poder público, como é o caso da Amazônia, tudo isso põe em risco a integridade territorial, que foi conquista histórica, do século 19. Diga-se de passagem que, no século 19 quem conquistava território para o Brasil eram os próprios conservadores brasileiros [1h26’28”], que naquele momento articularam-se, de maneira muito hábil, para preservar a unidade territorial e o poder centralizado da época, na corte, no Rio de Janeiro. Todo esse trabalho está sendo ameaçado, no momento.
[1h26’46”] A herança do desenvolvimentismo da era Vargas e tal, da ditadura militar, e da maior participação social no desenvolvimento que é legado dos governos do PT, tudo isso está sendo liquidado. O legado do PT já foi liquidado no próprio governo Temer [1h27’08”], na sua maior parte. FHC tentou destruir o legado dos governos Vargas [1h27’17”]. Não conseguiu plenamente, mas conseguiu destruir bastante. E agora esse governo do Bolsonaro vem para destruir muita coisa que a ditadura militar construiu, principalmente no governo Geisel [1h27’29”]. A ala militar de Mourão, de Etchegoyen, opõe-se frontalmente à ala geiseliana das FFAA. A ala dos militares que hoje está no governo com o governo Bolsonaro é a ala ligada ao Sílvio Frota, muito mais ligado aos EUA, e que se opunha ao Geisel [1h27’29”], que procurava uma nova inserção internacional do Brasil, um novo padrão de desenvolvimento para o Brasil, nos dois casos com maior autonomia nacional. Vejam que o Bolsonaro, com uma semana de eleito, já propôs a anulação dessa aproximação diplomática e comercial do Brasil com o Oriente Médio. Essa aproximação é traço marcante do governo Geisel [1h28’28”], que foi aprofundada nos governos Lula, e trouxe para o Brasil, não só grande reconhecimento e prestígio mundial, mas também muita riqueza [1h28’40”], em termos de trocas comerciais com o Oriente Médio, extremamente benéficas e favoráveis ao Brasil. Bolsonaro quer botar abaixo essa construção. Quer trocar essa construção por alinhamento irracional a Israel, e por tabela ao governo Trump nos EUA, por pressão não só do lobby sionista no Brasil, mas também dos grupos evangélicos que veem em Israel um grande exemplo de condução de país, independentemente dos resultados comerciais e retornos materiais e políticos disso. Bolsonaro ameaça os alicerces de uma construção que foi em grande parte avançada durante a ditadura militar, como a aproximação entre Brasil e Oriente Médio.
Hoje o governo Bolsonaro também ameaça a aproximação do Brasil com a China [1h29’34”], que foi estabelecida no governo do Geisel, quando o Brasil, em vez de reconhecer Taiwan como ‘China oficial’, reconheceu [1h29’42”] a China continental, que o Brasil reconhece até hoje e é de fato quem tem poder e riqueza no mundo hoje, claro, não é Taiwan, é a China continental. Mais uma vez, o governo Bolsonaro ameaça um aspecto que é legado da própria ditadura militar – que ele diz defender [1h30’06”]. Mas na prática, de fato, Bolsonaro opõe-se absolutamente à “ala Geiseliana” do final da ditadura. [1h30’15] Outro aspecto dos governos militares, principalmente Médici e Geisel, que Bolsonaro quer destruir, e do qual eu já vinha falando é o ataque de morte à primazia da burguesia industrial nacional na condução do desenvolvimento. Na esteira da Lava-Jato, que Bolsonaro quer continuar e aprofundar e mostra isso ao nomear Moro para o posto de ministro da Justiça. Esse movimento de Bolsonaro só faz aprofundar o movimento de demolição da burguesia nacional que a Lava-Jato iniciou, já em 2014. Servindo-se de um conjunto de leis aprovadas pelo PT, para promover uma caça às bruxas e não só para desmoralizar essa burguesia como, também, para minar os laços de solidariedade interna dentro da própria burguesia [1h31’20”]. A prática da delação premiada acarreta isso: rompem-se os laços internos na própria classe e mina-se a solidariedade de classe, com um burguês pondo outro burguês na cadeia. Por esse processo, todos vão pra cadeia e todos pagam e, mais ainda, destrói-se a lei de sociedade por ações, de 1976, que estabelece a diferença marcante entre o CPF (pessoa física) e o CNPJ (pessoa jurídica), entre o indivíduo que ocupa um cargo numa empresa e a empresa como tal. A Lava-jato ignorou essa lei e, a pretexto de punir os executivos corruptos passou a punir as empresas, acarretando perdas na empregabilidade e nos investimentos nessas empresas. [1h32’27”] Não é verdade pois que a Lava-jato tratou de moralizar alguma coisa. Só tratou de destruir as bases materiais do país, devastando todo um setor da economia produtiva e do empresariado industrial nacional que ainda resistia contra o processo de financeirização, gente que ainda preferia investir numa construção física, a especular em bolsas e fundos de investimento. [1h32’53”] Depois, não ligado diretamente à Lava-Jato, mas no mesmo espírito lavajatista de demolição das bases materiais, veio a Operação Carne Fraca, que mirou objetivamente a agropecuária brasileira, o agronegócio. Um dos setores mais centrais da economia brasileira e que desperta concorrência de EUA, Austrália e outros países centrais. A agropecuária brasileira foi bastante afetada, pelas próprias forças oficiais do Brasil, na Operação Carne Fraca, demonizando as empresas nacionais do setor. Vemos aí, setores do Estado brasileiro, atuando diretamente contra o capital nacional [1h33’39”], a serviço de forças imperiais estrangeiras. Não é situação nova. Se se olha o 2º Império, a ação da aristocracia imperial brasileira contra o Barão de Mauá, pra preservar sua relação de subordinação e dependência em relação à Inglaterra, as duas situações são muito semelhantes [1h33’53”]. Só que a complexidade era menor, o Brasil do Império tinha demandas muito menores. Trazer aquela mesma lógica para os dias de hoje, quando o Brasil já tinha construído toda uma estrutura social, toda uma estrutura material, para dar suporte a um determinado padrão de vida e de expectativa de ascensão para vários contingentes da população, que de repente se veem frustrados de desmonte… Tudo isso tem um custo político gigantesco. Dado que o Brasil hoje já se estruturara com complexidade muito maior, a destruição dessas bases materiais põe em risco a ordem nacional [1h34’33”]. Põe em risco a estabilidade social e a integridade territorial do país.
Por isso eu chamo essa coalizão, de Coalizão do Caos. Porque as reformas que estão sendo propostas, as medidas que a Coalizão do Caos propõem, não podem levar a outra coisa que não seja o caos. Que não seja uma degradação inaudita do padrão de vida da população, frustrando enormemente não só todas as expectativas, mas também rebaixando o que a população brasileira – as classes médias e altas! – já tinha como garantido. Que nunca se imaginou que poderia ser retirado da população. O custo político desse desmonte é altíssimo. Essa Coalizão do Caos não tem como suportar. Enquanto a Coalizão do Caos esteve escondida por trás do Temer, ainda poderia terceirizar para o governo Temer todas as suas responsabilidades. O que explica em grande parte a altíssima impopularidade daquele governo [1h35’35”]. Até que a Coalizão do Caos saiu de baixo das saias do governo Temer, e põe-se diretamente na linha de frente, na figura do ‘presidente’ Bolsonaro – escolhido tardiamente, só depois que houve certeza de que não haveria ninguém melhor para esse papel, porque, além do mais não teria força para impor agenda própria contra a agenda da Coalizão do Caos. Com a própria coalizão do caos alçada ao primeiro plano, sem que seus elementos possam ser demitidos [porque são mais fortes que o ‘presidente’], é a própria Coalizão do Caos que está exposta, e receberá toda a carga da rejeição e arcará com todo o custo político do desmonte. O desmonte já está em curso e será acelerado a partir de janeiro de 2019. [1h36’55”] Por outro lado contudo, por a Coalizão do Caos não estar diretamente na presidência, pode acontecer que, quando tudo der errado, com a classe média naufragando no desemprego, os funcionários federais também desempregados e sem direitos, pensionistas e aposentados na miséria absoluta, com os mais pobres reduzidos ao desespero completo, sem que a classe média mantenha os meios mínimos para sustentar muitos serviços, quando afinal a própria burguesia brasileira estiver realmente ameaçada de perder sua posição de elite econômica, de elite social no Brasil, e afinal [talvez] entender que todos os seus movimentos até então .jamais representaram interesses dela, da própria burguesia nacional, que são movimentos antagônicos aos interesses da burguesia brasileira; quando todo o caos da insatisfação, de desilusão, de revolta voltar-se afinal contra o próximo governo, só aí saberemos: (1) Ou o caos da insatisfação, da desilusão, da revolta vai se voltar contra a Coalizão do Caos [1h38’08”], forçando a queda de todos eles juntos, e tudo que fizeram para chegar ao poder revele-se tiro que saia pela culatra, porque, estando na linha de frente estão expostos ao ataque mais violento; o que daria espaço para que outras forças se organizem em busca de um projeto mais nacional e mais coletivo de desenvolvimento e de reconstrução do país; (2) Ou [1h38’41”] pode acontecer também que, com alguma habilidade, afinal, se chegaram até aqui é porque são hábeis, e tem relações também com aparelhos de propaganda dos EUA, de Israel, talvez consigam delegar todo o custo político do desastre ao próprio Bolsonaro e família [1h39’41]. Nesse caso, a mesma Coalizão do Caos se reorganizaria em torno de outro candidato, quem sabe, um Dória, um Amoedo, Caciolo? Não se pode adivinhar. Vai depender do que a história oferecer. Seja como for, a insatisfação virá. Não acontecerá o que diz Bolsonaro, que o Brasil ‘virará EUA’, o que não acontecerá. Mais provável que viremos Serra Leoa, o Sudão do Oeste. Nesse caso, a insatisfação advinda do aprofundamento do desmonte, que já é considerável e muitos já preveem, essa insatisfação pode voltar-se contra toda a coalizão, forçar a queda completa da coalizão, o que aceleraria a reconstrução do país. Vai ter muita coisa para reconstruir. Ou jogarão tudo na conta de Bolsonaro e família, de sua incompetência, de sua falta, até, de letramento, e, ok, a Coalizão do Caos reorganiza-se em torno de outro nome. [1h41’16”] Essa reorganização de coalizão do caos já aconteceu, no Brasil, em torno de Collor. Imediatamente depois abandonou Collor, sacrificou Collor, e passou, em peso, a apoiar o FHC, suposto político mais civilizado, mais liberal [risos] “em sentido autêntico da palavra”, como gostam de dizer, do que era o Collor. Mas todos que apoiaram FHC, haviam apoiado o Collor. Talvez aconteça assim. A própria organização, o próprio modo como Bolsonaro elegeu-se assemelha-se muito ao que foi feito com Collor: candidato apoiado de última hora, por forças que prefeririam outro candidato. E para derrotar, lá como cá, forças de esquerda – na época, Brizola e Lula; hoje PT e, com menos intensidade, Ciro Gomes [1h42’13”]. É disputa mais fraca, hoje, talvez, mas pode-se fazer esse paralelo entre Bolsonaro e Collor. Collor foi abandonado pelos que o ‘escolheram’ de última hora, como última opção, contra candidatura de esquerda. Agora é Bolsonaro. [1h42’32”] Mas veremos… Até porque, o poder que a Globo tinha para ‘inventar’ Collor, não tem mais. É fator a considerar. Será que a Record ocupará o lugar da Globo de então? Será que a Record abandonará o barco do Bolsonaro e aceitará a “Collorificação” dele? Só o tempo dirá. Mas o jogo está aberto. E em nenhum caso Bolsonaro é protagonista. Protagonista é a Coalizão do Caos. Que tem poder suficiente pra jogar tudo nas costas de Bolsonaro. Ou caem todos juntos. E o Brasil reconstrói-se. Ao fundo disso tudo, corre o processo de desdolarização [1h39’49”], que pode mudar o mundo. A desdolarização acarretaria a implosão do sistema mundial hoje hegemonizado pelos EUA. Em todos os casos, o Brasil está em um impasse total: ou se reconstruirá depois de ser completamente desmontado pela Coalizão do Caos, ou o Brasil será balcanizado [1h44’05”]. Nesse caso, viramos ou o Oriente Médio, ou a África. Basicamente, é isso.
Romulus Maya: [1h46’55”] E quanto à oposição? Você já pode traçar alguma perspectiva? (Haddad já foi lançado presidente do PT. PT-SP não quer largar o osso)
Felipe Quintas: A esquerda está absolutamente perdida. Basicamente, a esquerda está absolutamente perdida, dado que menosprezou a capacidade de Bolsonaro para ser eleito. Acho que a ficha ainda não caiu e a esquerda está feito barata tonta, procurando um caminho. Só que há um problema. Porque todas as figuras de esquerda e todas as lideranças de organizações de esquerda que temos hoje são basicamente do século passado. E essa direita bolsonarista adentrou o século 21. Domina completamente as mídias digitais, já afinou o discurso para exatamente o que a sociedade espera. E a esquerda ainda não encontrou seu caminho no novo século. Tem-se então, dando cabeçada: o PT, que é partido que se recusa a sair dos anos 1980s e 90s, toda a visão de mundo do PT é moldada naquele campo da ‘redemocratização’, dos movimentos de base, da sociedade civil organizada de base, do partido político como O Príncipe que organiza todos os movimentos sociais, e dá sentido político a eles, em busca de uma hegemonia moral, intelectual e política, projeto completamente descolado das condições da sociedade brasileira no século 21. Já estava descolado da realidade nos anos 1980s e 90s, já nada tinha a ver com a sociedade brasileira. Daí que o PT só tomou paulada nas eleições naquele momento. Só quando o PT mudou o discurso, com Lula (e com Duda Mendonça, não por acaso, o primeiro a ser degolado, NdosEds), é que foi eleito. Mas o PT não incorporou as lições daquele momento e acabou voltando a um estágio embrionário, só que sem aquele vigor do sindicalismo, aquele vigor dos sem-terra e dos movimentos sociais. O PSOL, sob a liderança do Boulos, é a mesma coisa. O Boulos me parece figura absolutamente retrô [1h52’54”], uma figura dos anos 80s, mais anos 80s ainda, que o PT. Só que isso, no século 21, acaba soando muito incongruente com a realidade. O Boulos me parece completamente desconectado da realidade, e a sociedade entendeu isso: a votação dele foi a menor da história do PSOL. Nem a Luciana Genro tinha votação tão baixa. Alguns atribuem isso ao voto útil, feito já no primeiro turno. Mas só de o eleitor do Boulos ter cogitado de fazer voto útil já no primeiro turno, mostra que o candidato já não era do agrado deles. Há uma completa incompatibilidade, uma completa assincronia histórica do Boulos, com o que o Brasil e a sociedade demandam hoje, além da figura assustadora para 99,99% da sociedade brasileira, que é de sem-teto. No momento em que a sociedade brasileira sente-se ameaçada de perder seu status, seu prestígio, porque até os mais pobres temem hoje perder também aquele minimozinho que têm, o Boulos vir falar, apresentar-se como líder de sem-teto, com a ameaça de a ralezona brasileira invadir a casa dos outros, ainda que o movimento não diga isso, porque só ocupam prédios públicos e desocupados, mas é assim que é visto e torna-se figura muito mais ameaçadora. Se a esquerda quiser ser liderada por ele, sinto muito, mas só vai tomar paulada daqui pra frente. Por pior que seja o governo do Bolsonaro, ainda é capaz de ele ser reeleito, se tiver o Boulos como líder da oposição. [1h54’59”] O Ciro Gomes, por outro lado, é figura típica dos anos 50, e veja, não estou falando em tom de crítica. Acho que, no que dependesse de mim, a estrutura política do Brasil e do mundo nunca teria saído dos anos 50 [“Anos 50 têm figuras como Vargas e JK” (Romulus)]. Exatamente. Brasil teria de ter mantido aquela estrutura, não só em termos da capacidade política de suas lideranças, mas também da agenda que eles defendiam para o país. Agenda de nacional desenvolvimentismo, agenda de promoção das classes populares pelo melhoramento da nação… E uma visão realista da política e da geopolítica, para adequar o Brasil a níveis cada vez maiores de exigências coletivas, seja no plano internacional de uma maior projeção mundial de poder, seja em termos nacionais, da construção de um bem-estar mediante um Estado capaz de dobrar as oligarquias locais e montar um projeto de desenvolvimento com inclusão. E essa inclusão baseada no desenvolvimento mais que sustentável ao longo do tempo. O Ciro Gomes seria perfeito político dos anos 50, tanto por defender e comungar dessas ideias, como por sua própria performance pessoal, de líder que, mesmo não sendo carismático, procura uma comunicação direta com o povo. Ele entende que o povo não está organizado em grandes movimentos sociais, em grandes partidos, e busca associação direta com o povo mediante a sua própria capacidade de comunicação, e prepara-se e treina para isso. É o que a sociologia paulista costuma chamar de populista [1h56’51”]. Ciro Gomes é um típico… O Francisco Wefford certamente chamaria o Ciro Gomes de populista. Acho muito bom, não estou aqui falando que seja ruim. Só que o Brasil hoje é diferente do que foi nos anos 50. Nos anos 50, Ciro Gomes estaria liderando completamente a esquerda, as forças nacionalistas. Mas essa estrutura política dos anos 50 precisa ser adaptada à forma de comunicação, ao padrão de expectativa política que se tem no Brasil hoje. Falta então essa tradução [1h57’36”] dos anos 50, para o século 21. Ciro Gomes não está sendo hábil em fazer essa tradução. Ele até tenta, mas não está convencendo muito. Por exemplo, nessa polêmica que ele teve com o Leonardo Boff. É típico de político dos anos 50, de se mostrar superior e infenso a qualquer tipo de chantagem moral que se tente contra ele. Ciro mostra que tem autoridade, o que é bom, é bom para o político! Os anos 80s domesticaram a esquerda de tal modo, que muita gente se horroriza com Ciro Gomes chamando Leonardo Boff de bosta. Mas Leonardo Boff, antes, tinha escrito artigo extremamente agressivo e injusto contra o Ciro Gomes. Porque essa moral das organizações de base, os movimentos da sociedade civil organizada, de respeitar a vontade dos ‘de baixo’, essa coisa bem dos anos 80s, esse fetichismo basista [1h58’46”] dos anos 80s, nessa linha, se o Leonardo Boff falou, tá falado, porque ele é a voz da sociedade civil organizada, dos campesinos, dos católicos, porque foi padre, tem uma autoridade moral, que não poderia ser tocada pela política, pelo poder…Como se autoridade moral do Leonardo Boff estivesse acima do poder político. Se ele faz uma crítica aos representantes do poder, esses devem se calar. Tudo isso é bem típico do PT e do PSOL e bem típico dos anos 80s no Brasil. Ciro Gomes, que é político dos anos 50, não está nem aí para essa ‘autoridade’ moral de ninguém. Chega e já mostra que tem dignidade e orgulho próprios. A esquerda muito ganhará se resgatar isso. Acho que nesse ponto Ciro Gomes traz esse elemento de assertividade, que remete a uma tradição de esquerda que essa esquerda dos anos 80s sepultou. Para esse sepultamento, aquela esquerda estava muito alicerçada em interesses que foram cultivados por fundações estrangeiras as mais diversas, com apoio até de estrategistas militares da ditadura, como Golbery, que propositalmente criou uma esquerda castrada [2h00’06”], esquerda sem capacidade para ser aquela liderança popular que a sociologia paulista chamou de “populista”. Capacidade de liderança popular que a esquerda dos anos 50 tinha. Ciro Gomes resgata essa esquerda populista, mas não está conseguindo fazer a tradução para o século 21. Por isso, acaba não tendo o apoio que ele procura, por conta dessa incongruência entre a retórica e a prática dele que são próprias de um tempo e que ele não está achando equivalentes, não está encontrando tradução, no século 21. Ciro está diante desse desafio. De fato, não se sabe nem se é possível fazer essa tradução. A tentativa de Ciro é válida, porque é tentativa, mas nem sei se é possível. Se não for possível, quem mais perde é o país como um todo. [2h01’04”] Quanto ao Haddad, como líder da oposição, só o fato de em duas eleições seguidas ele perder para o Dória e para o Bolsonaro, que são duas figuras toscas e caricatas, já deveria fazer com que ele voltasse a dar aulas, o que não é nenhum demérito. Eu já assisti uma aula do Haddad, e sei que ele é excelente professor. Desses que, como professor, tem muito mais para dar e contribuir para a sociedade, do que como político [risos]. O PT não deve tomar isso como crítica. De fato, ser político não é pra qualquer um. Como ser professor não é pra qualquer um. E Haddad é professor. Insistir em colocá-lo na política é obrigar a sociedade a um duplo sacrifício, pq perde o professor e não ganha um político, ou só ganha um político que, de fato, só serve de escada pra políticos reacionários [2h51’56”]. Dória e Bolsonaro só venceram porque o adversário foi Haddad. Minha sugestão é feita de coração: que Haddad largue esse barco da política e volte a ser professor. Na verdade, é o PT de São Paulo que não quer dar o braço a torcer. Porque o PT que tem votos hoje está no nordeste. E nem em todo o nordeste, porque o PT de Pernambuco foi praticamente liquidado, por conta da operação da cúpula do PT para tirar Marília Arraes da eleição [2h02’48”]. Lá só ficou o Humberto Costa, tido como incompetente, mas que é figura que pelo que me chega só entrou pra não eleger Mendonça Filho. No Ceará o PT também está devastado e o PT que tem votos no Ceará é do Ciro Gomes. É a cúpula do PT que não tem mais votos em São Paulo, mas age como se seus votos ainda estivessem em São Paulo. O crescimento de Haddad na reta final de campanha é resultado da articulação de Jacques Wagner, baiano, que rearticulou as estratégias de campanha e deu base mais forte. Se Haddad não perdeu por mais de 20 pp, deve-se à ação do Jacques Wagner que é liderança política real na Bahia. Jacques Wagner derrubou a oligarquia ACMista que se julgava intransponível [2h04147]. Conseguiu isso com um PT articulado, com projeto claro de desenvolvimento efetivo para a Bahia, estado que tradicionalmente sofre com as consequências do subdesenvolvimento. Durante boa parte do período desenvolvimentista, a Bahia só foi acionada como provedora de mão de obra, para o desenvolvimento de São Paulo. Embora, verdade seja dita, o resgate da Bahia já tenha começado com Geisel, com o polo petroquímico de Camaçari, antes do PT, com várias obras de infraestrutura. E só virou projeto político, mesmo, embora aproveitando condição internacional mais favorável, com o trabalho de Jacques Wagner. Ainda é liderança incontestável na Bahia onde até setores oligárquicos procuram aproximar-se do grupo político dele [2h05’46”] e é figura respeitada em grande parte da política brasileira. Não vejo nome melhor que Jacques Wagner para a liderança do PT. Sem contar que ele tem boa relação com os militares porque ele é de Colégio Militar, e boa parte de sua trajetória política no Rio de Janeiro, e como liderança do PT, poderia articular uma reformulação do PT também no Rio de Janeiro e em Minas, que ele também conhece.
Seria um caminho, para começar a enquadrar essa direita brasileira, e ir retomando o espaço que o bolsonarismo pegou do PT, principalmente em Minas e no Rio de Janeiro. Não haveria nome melhor que Jacques Wagner, para reorganizar o partido. Pra isso, teria de estar na liderança. Insistir em Haddad, é a cúpula paulista do PT não querer dar o braço a torcer e insistir em não ceder espaço a quem realmente tem votos e estratégia dentro do partido. Hoje, a cabeça do PT em São Paulo não tem votos, não tem estratégia, está sem dinheiro [2h06’57”], e nem assim aceita que tem de sair de São Paulo. É um apego moral, que se transmuta em incompetência política em São Paulo, que custará muito caro. Isso, sem contar que, se não me engano, a sede do PT está hoje em Curitiba. E o que tem Curitiba a ver com a história do PT? Nada. É inacreditável. Em Curitiba, onde o Bolsonaro tem 76% dos votos, e onde o PT nunca teve coisa alguma, lá está, agora a sede do PT. Lula preso em Curitiba não é motivo para a sede do PT estar lá. Acho que, hoje, a sede do PT deveria estar em Salvador. Se o PT que tem votos não assumir a liderança do partido, daqui a pouco será o PT que hoje tem votos que ficará também sem votos, e aí o PT perderá seu último bastião e estará a um passo de se tornar um PSTU [2h08’20”]. Quero dizer: a esquerda está absolutamente perdida. A disputa agora é pra ver quem manda: se é a esquerda dos anos 50 do Ciro Gomes do PDT, ou se é a esquerda dos anos 80s do PT e do Boulos. Enquanto essas duas esquerdas não fizerem uma adaptação para o século 21… Não precisam renunciar à essência de cada época. Precisa é fazer uma adequação, para que esses ideais que essas esquerdas defendem possam tornar-se forças vivas, um ativo político efetivo no século 21, mediante melhor uso das mídias, das novas formas de comunicação, mediante melhor entendimento das aspirações da sociedade brasileira no século 21, aspirações essas que são resultado de anos de desenvolvimento (e também de subdesenvolvimento). Matéria prima da política é a realidade. Tem de entender a realidade. Nessa disputa entre anos 80s e anos 50 na esquerda, deixa-se passar sem nem ver o Bolsonarismo, por exemplo, que é fenômeno próprio, sim, do século 21 [2h09’41”]. O Bolsonarismo talvez seja a primeira força política brasileira do século 21. O PSDB também parou no tempo, nos anos 90s. Por isso também está cada vez mais naufragado. Dória já entendeu melhor o século 21, pelo menos no contexto de São Paulo está tendo resultados melhores. A esquerda tem de acompanhar esse movimento, não para se bolsonarizar, mas para conseguir tocar corações e mentes no século 21.
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[1] Felipe Maruf Quintas –Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Foi bolsista de iniciação científica na Faperj. Mestre em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense, sob orientação do prof. Marcus Ianoni, e participante do grupo de pesquisa “Estado, Interesses e Desenvolvimento”, liderado pelo mesmo professor. (Fonte: Currículo Lattes).
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