O Geógrafo Errante – Uma crônica sobre o Existir
Por Maria Eduarda Freire, para o Duplo Expresso
Existia um certo geógrafo que estudava muito. Ele era o mais renomado e brilhante geógrafo de sua época. Da sua escrivaninha de mogno ocre e rodeado por uma muralha de livros, o geógrafo conhecia detalhadamente cada vegetação, cada clima, os oceanos, os rios, os mares, as rochas, as montanhas, os desertos, as cidades… Através de páginas e mais páginas, muitas delas amareladas e toldadas por poeira e mofo, algumas mais que outras, por certo, sacudidas por muitas leituras, ele conheceu o planeta inteiro!
Todavia, todo o seu conhecimento não havia sido precedido de uma sensação. O geógrafo leu sobre as abóbodas verdes das árvores gigantescas, aquelas com raízes tão opulentas que mais parecem catedrais tombadas. O geógrafo leu sobre bosques com folhas que pareciam competir na infinita variedade do estilo, onde cada ramagem se diferenciava da outra. O geógrafo leu sobre os carvalhos, que despencam com um som de uma catástrofe surda, como se com uma mão titânica implorassem à terra sepultura. O geógrafo leu sobre os oceanos vastos e infinitos, imensos espelhos d’água, onde tudo ainda é mar, mar, mar! Contudo, os seus pés nus jamais sentiram os músculos profundos da dominação vegetal; os seus dedos nus jamais sentiram a textura que sustentava as folhagens; e o seu olfato jamais encontrou a fragrância das flores que se desprendia depois da chuva…
O geógrafo não deixava por um instante a conveniência da sua escrivaninha de madeira, mas recebia os exploradores, interrogava-os e escrevia sobre as suas lembranças. Os geógrafos são muito importantes para estar explorando –dizia o geógrafo. Isso ele deixava para os seus estudantes.
O geógrafo se admirava com os seus descobrimentos, embora lhe dessem uma espécie de embriaguez senão como um fervor que descaiu, mas não totalmente. Ele vivia nas palavras, nas imagens, e nos sonhos que voavam para longe, para bem longe da tranquilidade de sua escrivaninha, porque em seu sangue ainda crepitava sem descanso a ânsia por lonjuras.
E esse desejo incontido atormentava o geógrafo. Toda essa energia que não satisfez, com sua sobrevivência o atormentava. E desesperou-lhe completamente em sonho, quando de súbito, o acordou com uma sentença: “Você está observando o cortejo de cima”, quem lhe dizia era uma voz melancólica que parecia reivindicar com tanto mais ardor a liberdade. E o geógrafo sentiu o desejo mais profundo de sair, sair de sua cidade, sair de seu quarto, sair de sua escrivaninha, sair de seus livros, sair de seu pensamento. No ímpeto rasgou mapas e o que deixou escrito, encaixotou tudo e emancipou-se de sua escrivaninha e dos seus livros e resolveu aceitar o convite de um grupo de pesquisa, com quem mantinha singulares trocas científicas. Para o geógrafo era raro acontecer essas afinidades. A exploração, apenas com o bilhete de ida, partia em duas semanas e rumava para os mares sinuosos, secretos e gelados do Glacial Ártico.
Uma existência patética, de preferência à tranquilidade. Não desejo outro repouso senão o sono da morte – pensou o geógrafo.
Os dias até a aventura se seguiram para o geógrafo com a ansiedade, a vontade e a pressa de quem abraça a vida como algo que por pouco não perdeu. Era como se todo o seu ser tivesse uma necessidade imensa de se desnudar e sentir a presença de tudo em plenitude. O geógrafo, agora, não queria ver nada neste mundo sem desejar que todo o seu afeto o tocasse.
O céu vivia povoado por uma multidão pululante de estrelas, mas no dia da sua viagem, o céu parecia estar recém-lavado, a tarde estava escura e nenhuma luz atravessava o nevoeiro, e o geógrafo esperou o carro que viria buscá-lo, mas ele nunca chegou. O grupo de pesquisa, que se correspondia há meses, não apareceu. Na caixa de mensagens, duas frases secas: “A exploração não será possível. Não é mesmo tão simples”. Dupla negação detectada. Como um segundo deserto sobre o deserto. O geógrafo conhecera noites ruins, aquela tarde sem estrelas era um prenúncio. O geógrafo sentira então cair a noite terrível.
O geógrafo não tinha para onde ir, aquela esperança de estar mais perto do sangue que da tinta, perdera-se. O geógrafo não tinha para onde retornar, nem um mastro ou recife, nem a velha escrivaninha. O geógrafo, agora, se sentia como um coveiro em um cemitério abandonado, ou alguém que cuida de um museu que ninguém mais visita e o pó assenta-se sobre as obras esquecidas como um cristal irremediavelmente ferido…
Não se sentir mais que um errante sobre a Terra e não um viajante que se dirige a um propósito final, pois este não existe. Olhar a noite como se o dia nela devesse morrer e a manhã como se tudo nela nascesse. Será isso então? –Pensava o geógrafo. Ou, naufragar em um mar de caixas que se empilhavam acima de sua cabeça, por onde pouco a pouco extinguiria-se o seu fervor. Ou?
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