Manifestações de Vento

Por Patrícia Vauquier*, para o Duplo Expresso:

Os fatos:

Neste final de semana (17-18/nov) na França aconteceu uma manifestação que chamou a atenção do mundo inteiro: os coletes amarelos – les gilets jaunes.

No código de transito francês, o colete amarelo refletivo é um equipamento de segurança obrigatório no veículo. No caso de uma pane, ou de um pneu furado, o condutor deve vestir o colete ao deixar o veículo como forma de sinalizar que está com um problema.

Pois agora, desde o começo de outubro, o colete amarelo vem sendo um objeto pra identificar os veículos que protestam contra o aumento dos impostos sobre o combustível. Que imposto?

Os impostos cobrados sobre a venda de combustível são:
1. Imposto sobre o consumo interno de produtos energéticos (na sigla em francês TICPE), calculado proporcionalmente aos volumes vendidos. Seu montante é, portanto, independente do preço do petróleo. Desde 2014, o TICPE inclui um componente de carbono, que aumenta a cada ano com o objetivo de desmotivar progressivamente o consumo de combustíveis fósseis. O TICPE de diesel também aumenta a cada ano com o objetivo de aproximar sua tributação da gasolina;
2. Imposto sobre o valor acrescentado (na sigla em francês IVA), calculado sobre o valor bruto e o montante do TICPE. Sua taxa tem se mantido estável em 20% desde 2014, após ter sido de 19,6% entre 2000 e 2014.

Na semana anterior a 17 de novembro, o preço da gasolina caiu €0,05 por litro e o preço do diesel caiu €0,03 por litro, devido a flutuações no preço do Barril de Brent[1].

Essa flutuação no preço internacional do petróleo atinge principalmente as pessoas físicas proprietárias de automóveis, uma vez que pessoas jurídicas ou profissionais liberais beneficiam-se de isenções parciais ou totais do TICPE.

Existem na rede várias versões da origem do movimento. Uns dizem que foram amigos que gostam de viajar de carro que iniciaram o protesto, outros afirmam que pessoas completamente estranhas umas às outras tiveram a mesma ideia ao mesmo tempo. Como o caso de alguns “cidadãos de bem”, como Eric Drouet, Priscillia Ludosky e Jacline Mouraud, pessoas comuns como qualquer outra, que passariam despercebidas na multidão, e gravaram vídeos incitando ao protesto e explicando como o movimento é legítimo.

Tão legítimo que em apenas dois dias um vídeo da senhora Jacline tinha alcançado mais de 5 milhões de visualizações. Em seguida, o movimento foi vitaminado pela grande mídia, ao divulgar a nouvelle révolutionnaire por meio de uma turnê em rádio, tv e jornal. Um dos principais argumentos é que o povo “pobre” francês está cansado de tanto imposto por nada, e não tem mais de onde tirar recurso pra arcar com as despesas de um automóvel.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos (na sigla em francês INSEE), cerca de 82% dos franceses possuem carro. Sendo que 48% dos franceses possuem um só carro, 29% possuem dois carros e 5% possuem mais que dois. Esses números talvez expliquem a grande adesão ao movimento.

Dia 17 de novembro, cerca de 300.000 manifestantes bloquearam as principais avenidas e estradas do país, demonstrando o descontentamento do povo e que agora basta! Foi a gota d’água que transbordou o copo do Macronismo.

– Engarrafamento? – Nós bloqueamos para que se mova! (a França). Cartum do Nice-Matin em “Les gilets jaunes ont récolté plus de 1.500 signatures pour une pétition à Grasse” (21/11/2018).

Poderia escrever laudas e laudas explicando como o protesto é legítimo. No entanto, algumas características do movimento chamaram minha atenção numa verdadeira impressão de déjá vu.

Aqui algumas perguntas que não querem calar:
– Como o vídeo de uma maria ninguém consegue superar 6 milhões de visualizações em alguns poucos dias, com mais de 250 mil compartilhamentos?
– Quem criou o website “Le 17 Novembre” para informar e acompanhar o movimento?
– Como um movimento apartidário, “sem liderança” e completamente espontâneo, conseguiu mobilizar cerca de 300.000 pessoas em diferentes regiões na França para demonstrar a insatisfação com a política do atual governo?
– Quem, ou o quê, está por detrás desse movimento?
– Qual seria o seu real objetivo?

Aqui alguns fatos estranhos:
– Nas vésperas do dia de manifestação, durante uma entrevista com um dos precursores, este afirmou que tinha gente que podia explicar melhor que ele as reivindicações do movimento.
– Ninguém é responsável pelo site desenvolvido especificamente para o ato e pela forma de “organização horizontal, descentralizada”.
– Por fim, a narrativa posterior ao movimento inseriu-o como “protesto contra a diminuição do poder de compra dos franceses”.

Essa agitação nos últimos dias forçou-me lembrar das jornadas de junho de 2013 no Brasil. Ou o bordão “não vai ter Copa”. Ou ainda, o “padrão FiFA de saúde e educação”. No caso do Brasil, perdi a conta das intermináveis discussões que tive com os franceses que argumentavam de como seriam legítimas reivindicações por educação e saúde melhores, e que essa deveria ser a verdadeira prioridade do Brasil ao invés de uma Copa do Mundo.

[ Um pequeno parênteses sobre a minha perspectiva, como brasileira de longe, essas manifestações minaram o espírito da festa dos brasileiros, incitando ainda mais o sentimento de vira-lata que aceitamos como incorporado aos nossos genes de país-colônia. Uma inferioridade amalgamada que não permitiria que nos colocássemos à altura de sediar tal evento. ]

O website criado anonimamente é muito parecido com aqueles que foram criados para incitar o apoio popular ao impeachment de Dilma Rousseff. Aqueles que conclamavam o povo a “ir pra rua pra manifestar” contra um governo supostamente corrupto. Como se o nível de conscientização política tivesse atingido seu ápice e que então o povo agora poderia realmente lutar por seus direitos.

No caso francês, o que mais me choca é a existência de situações muito piores, como a privatização da Sociedade Nacional dos Caminhos de Ferro (na sigla em francês SNCF), o estado permanente de emergência (semelhante às leis criadas pelo PT jurídico – PTj) e a mudança do código do trabalho. Nenhuma destas causou nem um décimo dessa comoção de agora, apesar de todo o esforço de militantes que organizaram vários movimentos. Dentre eles, o Nuit Debout 2016[2], numa tentativa de conscientizar a população a promover um debate político. Debate este que a mídia faz de tudo para esvaziar.

Pessoalmente, não aderi ao Le 17 Novembre. Os brasileiros já tem um histórico nesse sentido: os coreografados patos amarelos. Talvez a cor não seja o único fator comum entre os dois movimentos. Assim como era contrária aos amarelinhos do Brasil, recuso-me aqui a servir de massa de manobra. Principalmente tratando-se de fins obscuros de uma estratégia velada e de um organizador ou organização anônimos.

No atual contexto mundial, o povo que deseja lutar por melhores condições de vida, pela sua autonomia e soberania, tem obrigação de saber quem está na liderança. “Manifestação política não é micareta!” (Wellington Calazans não se cansa de repetir). Manifestações de vento servem ao diversionismo. Servem para desorientar ou, mais precisamente, canalizar uma insatisfação latente para que ela seja externalizada numa causa que nada tem a ver com o verdadeiro motivo. Essas manifestações “espontâneas” são uma fachada para pacificar o povo iludido, patos ou coletes amarelos, fazendo-os pensar serem títeres de algo quando são apenas os fantoches…

Figurino de “Patos amarelos batedores de panelas” (em alusão à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP) da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti para o Carnaval 2018.

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* Patrícia Vauquier é arquiteta brasileira residente na França, mestra em Engenharia Civil, doutora em Administração de Empresas e comentarista de infraestrutura do Duplo Expresso às quartas-feiras.

[1] Brent é uma classificação de petróleo cru que se subdivide em Brent CrudeBrent doce leve, Oseberg e Forties. O Brent Crude é originário do Mar do Norte. A denominação “Brent” é oriunda da política interna da empresa Shell, que originalmente denominava seus campos de produção com nomes de aves (neste caso, o ganso de Brent).

[2] Nuit Debout  seria a “noite a pé” ou “noite de pé”. Um movimento social começado na França no final de março de 2016, decorrente de protestos contra as reformas trabalhistas propostas à época conhecidas como a lei El Khomri ou Loi travail. O movimento foi organizado em torno de um objetivo geral de derrubar aquele projeto de lei e denunciar ao mundo o que ele representaria.

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