Uma Ponte para o Futuro na Era da Pós-Verdade: uma análise sob a ótica do desenvolvimento econômico – Parte II
Por Hélio Silveira¹, Gustavo Galvão² e Rogério Lessa³, para o Duplo Expresso
Aqui, link para o Primeiro Ato
O Segundo Ato: Malefícios econômicos do “rentismo”
“Rentismo” provoca juros altos e dívida pública elevada, totalmente sem necessidade, criando desigualdade, baixo crescimento e aumento de impostos.
Veremos dentro da ótica heterodoxa e desenvolvimentista as razões do baixo crescimento brasileiro. Para tanto recorreremos à história mais ou menos recente definiremos um marco: antes e depois do Acordo com o FMI de 1983.
Antes de 1983: o país crescia a 7% a.a.. Na ocasião, o Estado fomentador do crescimento dos últimos 50 anos não recorria muito ao endividamento interno. Por conta da crise do petróleo de 1973, razão de nos endividarmos externamente – infelizmente ainda não tínhamos o pré-sal. Fomos, então, obrigados a lançar um projeto de desenvolvimento industrial com finalidade de substituir importações. Sim, paradoxalmente, financiávamos nossos investimentos com recursos de emissão interna e créditos colocados à disposição pelos bancos públicos. Até o Banco Central era envolvido em financiamento de atividades de fomento e comerciais (era responsável pela compra do Papel Imprensa e Conta Trigo). O Banco do Brasil – BB, através de sua “Conta Movimento”, era responsável pelo setor agrícola e capital de giro dos negócios, enquanto o BNDES pelo financiamento de longo prazo principalmente do setor industrial pesado e de comércio exterior. Isso porque todo o recurso externo captado à guisa de “investimento & projetos” era na verdade utilizado para financiar a conta petróleo deficitária e a rolagem dos juros e amortizações, anteriormente captados.
Pós-1983: mais impostos, menos desenvolvimento para bancar o “rentismo”
Após a subida dos juros “prime”, em 1979, pelos EUA, o México quebra, trazendo no vácuo todos os países em desenvolvimento, inclusive o Brasil. Em 1983 assinamos o acordo com o FMI.
O governo militar se rendeu ao FMI (atuando, na verdade, para salvar os bancos privados norte-americanos pegos em suas naturais atividades especulativas pelo mundo!) e a seu receituário sobejamente conhecido, foi o passo inicial que obrigou a constituir o princípio de nossa dívida interna.
Após a desvalorização cambial imposta pelo acordo (com a consequente perda do valor do salário) e do choque na demanda interna provocado, as empresas que tinham mercadorias exportáveis (“tradeables”) se lançaram mais fortemente ao comércio exterior. Aquelas que se dedicavam exclusivamente ao mercado interno tiveram, como compensação, a excepcional aplicação em títulos públicos corrigidos monetariamente e com altas taxas de juros.
As empresas públicas tiveram suas atividades refreadas pelo controle de tarifas e controladas suas rolagens operacionais (preparo para torná-las ineficientes à vista de seus consumidores e “privatizáveis” na década seguinte).
O acordo, ao criar excedentes externos, ajudou a pagar juros externos, mas internamente criou o início da dívida pública e a mudança do “status” e poder financeiro do empresariado industrial para os banqueiros. Os empresários, antes a força política econômica, agindo no lado real da economia, passa a ser o sócio menor do sistema financeiro! A renda financeira consolidou nosso processo de “rentismo”. Resultado: décadas perdidas dos 1980 e dos 1990, representados pelo baixo giro da atividade econômica, compensado por ganhos financeiros da dívida pública, baixo e inconstante crescimento econômico intercalados com crises (vôos de galinha).
Baixo giro de negócios gera baixos impostos, necessitando o aumento constante da carga tributária até os níveis atuais.
Instabilidade econômica gerada por crise externa de endividamento não foi prerrogativa exclusivamente brasileira, mas do conjunto dos países em desenvolvimento principalmente das Américas e África.
Evidente que “rentismo”, diferente dos outros países em desenvolvimento, foi uma característica especialmente nossa, foi muito bem “desenvolvido” pelo sistema financeiro brasileiro. “Rentismo”, como alertava Keynes, é razão de baixo crescimento e provoca subemprego, concentração e desigualdade de renda.
Por que dizemos que “rentismo” é coisa nossa? Porque nunca houve razão efetiva para criar uma indústria de “juros & dívida pública” tão relevante como a nossa! No início até 1985, serviu de proteção ao capital de giro excedente das indústrias voltadas ao mercado interno, imposta pelo governo militar, diante dos ditames do FMI, ao invés de um Pacto Social (com distribuição equitativa e funcional das perdas e não a “velha socialização das perdas”). Mas o choque desigual uma vez implantado, já em 1986, não era mais necessário – poderíamos até ter lançar um Projeto Nacional de Desenvolvimento aproveitando a base do ideário do “plano cruzado”, se não se convertesse num plano eleitoreiro – mas aí nossos capitalistas já tinham se viciado nas altas finanças e ao país restou o baixo crescimento!
A dívida pública pela lógica verdadeira, e não “a rentista (ou ‘pós-verdadeira’)”
Segundo a lógica heterodoxa econômica (desenvolvimentista para alguns – nós inclusive), Governo Soberano e com poder de emissão de moeda financia seus gastos correntes através de política monetária e crédito. Os impostos (ou política fiscal) sempre vêm a posteriori, gerados pela atividade econômica, explicamos esse mecanismo na série de artigos “A saída da crise ao alcance da mão”.
Exemplo de como isso funciona na prática: nos anos 1970, no desenvolvimento de atividades nos Territórios Federais, o Governo levava instituições públicas e créditos oficiais – dinheiro e funcionários públicos – para formar núcleos econômicos e só depois arrecadar impostos gerados na atividade econômica. O déficit público resultante é dinheiro (recursos monetários/créditos) colocado à disposição do público e o montante deste é utilizado para transações econômicas normais. Excesso ou falta de recursos é prerrogativa do controle e administração das autoridades monetárias: Tesouro (Governo) e Banco Central. Eles têm o poder de criar ou destruir dinheiro (meios de pagamento) com a finalidade de dar a liquidez necessária às atividades econômicas e manter as taxas de juros em equilíbrio favorável aos negócios econômicos.
Já os impostos (mais taxas e tarifas) têm a finalidade principal de controlar o consumo, dar significância à moeda (no limite ela serve para pagar Impostos) e, como função secundária, incentivar ou desincentivar investimentos. Impostos como divulgado à exaustão não financia gastos do Estado. Para decepção da maioria dos contribuintes repetimos impostos não financiam gastos públicos.
Governo Soberano, entretanto, não tem ingerência sobre a moeda de outros países, só os EUA têm a prerrogativa de impor a moeda mundial. É para isso que um Governo Soberano e responsável usa impostos para controlar o consumo, o controle dos capitais externos e o saldo das Transações Correntes de forma a manter as contas externas equilibradas para manter a soberania externa e interna.
Por isso é importante também, como fizeram todos os países desenvolvidos no início de seu crescimento, fomentar um setor exportador de alto valor agregado como fizeram o Japão, a Coreia do Sul e, mais recentemente, a China e agora a Índia (e como nós fizemos até fins dos anos 80, antes do governo Collor). Exportações industriais sólidas representam o complemento para equilibrar a conta de transações correntes (com o exterior) e não ficar na dependência de financiamentos dos capitais externos geralmente voláteis e de curto prazo!
“Rentismo resulta em desindustrialização”
Nosso ímpeto exportador de bens industriais e a política de substituição de exportação foram destruídos nos anos 1990, “anos de abertura”, com a lógica de que nossos carros eram carroças e o Estado seria “paquidérmico”. E qual é o verdadeiro papel que sobra à dívida pública e dos títulos públicos se não é para financiar o gasto do Governo, como alegam os liberais? Simples: são instrumentos para dar alternativas segura de aplicação para o grande público. Mas, em nosso caso, foi a garantia da continuidade do “rentismo (ganhos para a alta finança – bancos e financistas, sem risco e seguro)”, desde o acordo com o FMI em 1983!
Aquele papel de “dona-de-casa de classe média” dada como exemplo dos clássicos liberais só serve para a própria dona-de-casa, que, diferentemente do Estado, não tem o poder de emitir dinheiro. Pode no máximo administrar bem sua conta corrente e seu cartão de crédito! Para elas, o principal conselho é não se endividar durante as crises. Não para um Estado Soberano!
Desde 1983, criando dívida totalmente desnecessária!
A Dívida Pública Interna, conforme Aumara Feu, em “Evolução da Dívida Pública Brasileira (http://ecen.com/eee25/audivida.htm), foi mantida abaixo de 8% do PIB até 1979. A partir daí, começa a trajetória de crescimento da Dívida Pública constituída pelos títulos públicos de alta rentabilidade e ciclo curto – quase moeda. Este crescimento da Dívida se tornou disfuncional porque ela não é mais instrumento de política monetária. Esta quase-moeda dá uma opção ao capital produtivo de bons retornos financeiros tornando a economia em “financeirizada” e de baixa produtividade razão direta da baixa rotatividade dos negócios. Por outro lado, empodera e concentra o sistema financeiro privado.
Recordando, de novo, no início de 1983, o Governo constituiu dívida pública, através de títulos públicos para dar alternativa de aplicação do excedente do capital de giro tornado sem uso pelo choque forçado para criar excedentes externos. A continuidade posterior se mostrou desnecessária, até por que o Governo, através do choque de demanda, da subida da inflação, e consequentemente dos impostos, se tornou superavitário primário (quando as receitas correntes cobrem os gastos correntes, exceto juros).
A partir daí, nos tornamos quase sempre superavitários em termos primários, não necessitando pagar taxas de juros elevadas e constituição de elevada Dívida Pública e não necessitando manter o crescimento a um ritmo lento, até hoje, nossa média é abaixo de 3,0% a.a. E viramos o paraíso do “rentismo”!
Então, os juros reais ao se tornarem permanentemente altos na média se perpetuaram num instrumento de ganho e poder do setor financeiro. Para o setor financeiro privado, então, que antes era o financiador menor do capital da indústria, já que este sempre foi primordialmente financiado pelo BNDES e bancos públicos, se transformou e se consolidou em aplicador e administrador do capital financeiro excedente da Economia, fortemente concentrado na administração e “giro” dos títulos públicos, líquidos, rentáveis e sem risco.
Ao longo destes anos este setor cresceu econômico e politicamente, se concentrou e tornou-se, para manter seu status oculto, como se sabe, o mais relevante financiador dos candidatos aos cargos políticos de relevância. Para este setor, se tornou o “modus operandi” consolidado, girar e ganhar os juros da dívida pública do que arriscar nos empréstimos ao público!
Para o setor financeiro é de menor risco que a economia cresça pouco, com baixa inflação e volatilidade, para que não percam a rentabilidade real (rentabilidade nominal descontada a inflação) proporcionada pelos juros da Selic do que arriscar em sua atividade fim – financiar a produção e o crédito. Daí a obsessão por inflação baixa não se importando seja ela por repasse de custos ou por excesso do consumo.
Exemplo, no início de 2015, Levy, como Ministro da Fazenda, de forma ortodoxa, corrigiu preços de tarifas e dos combustíveis de forma abrupta ou choque de custos, isto e com a desvalorização do real foram imediatamente repassados aos preços gerais, dada nossa economia oligopolizada. Por consequência de uma inflação de custos forçada, ato contínuo subiu-se os juros como é do costume de banqueiros e ortodoxos, apesar de saberem que subida de juros não são recomendáveis em caso de inflação de custos. Mas, não adianta, são de suas naturezas!
A grande verdade
Se os gastos do governo fossem os responsáveis pelo endividamento crescente derivado de permanentes déficits das contas públicas, seria necessário que ele, o Governo, pelo verdadeiro critério das Contas Nacionais, fosse recorrentemente e abundantemente deficitário na sua conta primária, representada pela diferença entre as Receitas Tributárias e os Gastos Correntes.
No próximo ato revelaremos detalhes técnicos da “Grande Verdade”!
1- Helio Silveira – Economista aposentado do BNDES
2- Gustavo Galvão – Economista do BNDES, doutor em economia pela UFRJ
3- Rogério Lessa -Jornalista Econômico da AEPET – Associação de Engenheiros da Petrobras
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