Brasil sem ponto final: O golpe exposto por uma vírgula

Por Niobe Cunha, para o Duplo Expresso

“Não aguento mais”, “de saco cheio”, “ah, se não fosse você, não sei se aguentaria”. Frases que pipocam aqui e ali diante do cenário de desesperança matematicamente calculado por forças nada ocultas. Elas têm nome e sobrenome e sabemos bem onde residem. Mas é bom que se diga: seus castelos são de areia. Construções dessas, criminosas, fruto de especulações monstrengas, que despencam ou são derrubadas com gente dentro, sem dó nem piedade. Fique sabendo.

Quando eu era menina e ficava sentada de bobeira, olhando pro nada, sem foco, distraída enquanto minha mãe se ocupava em lavar, desencardir e pendurar as roupas no varal da vida, ela me perguntava: “O que está pensando?”, eu respondia: “Nada!” E ela de chofre: “De pensar morreu um burro!”. Tá parecendo um grande cemitério de burros: todo mundo lamuriando, pensando e… nada. O pensamento é construção importante. Pergunta e caça resposta, como o gato atrás do rato. Pensamento adequa uma lógica, encaixa uma peça solta, busca abrir portas que levem a outros caminhos. É feito de substância importante para a realização. Mas ser refém do pensamento, ancorado nele como peso nos pés e nas mãos, sem dar forma às ideias, é se afogar lentamente, sem perceber que o ar está acabando. Morre-se pela cilada movediça do pensamento sem nem perceber.

Estamos vivos e alertas. Um pouco desencontrados, pode ser. Mas é preciso se agarrar nas cordas, resistir à sensação de impotência e criar matéria com aquilo que parece abstrato. O pensamento é uma força potencial à espera do gatilho. Bang, bang! Esta semana, como em tantas semanas, tivemos mais um encontro com o humor perverso de um marqueteiro bem pago pra fazer bobagem. Emprego dos sonhos: me-teo-ro-lo-gis-ta. Você faz a previsão e, se não rolar, você culpa um cúmulo-nimbo gasoso qualquer, e tá tudo certo, dispersa o erro no ar. O patrão não te manda embora. É a anti meritocracia. Pode errar à vontade. O caso da vírgula malandra – aquela que foi feita pra pausar a fala, dar respiro, ritmar o poema – denunciou o nosso recrudescimento, a nossa viagem no túnel do tempo em busca de uma nação neandertal. Brucutus nos arrastando pelos cabelos pras cavernas do desconhecimento.

É preciso convocar os mamutes, pterodátilos, tiranossauros rex, o sol de todos os sóis, para interromper esse período glacial de aprisionamento do pensamento. Precisamos ajudar no degelo, engrossar as avalanches em busca de oxigênio. Se não respeitam os nossos votos, os nossos candidatos, porque teríamos que respeitar suas “vírgulas”? Arranquem as vírgulas, ocupem os espaços.

Só temos uns aos outros, a nossa arma letal como povo. Quem topa? Sei que tá difícil. Pra mim tá bem difícil, imagine pra quem está preso injustamente.

 

Cordel “Só por uma vírgula”

Vírgula pode ser uma pausa… ou não.
Não, espere.
Não espere..

Ela pode sumir com seu dinheiro.
23,4.
2,34.

Pode criar heróis.
Isso só, ele resolve.
Isso só ele resolve.

Ela pode ser a solução.
Vamos perder, nada foi resolvido.
Vamos perder nada, foi resolvido.

A vírgula muda uma opinião.
Não queremos saber.
Não, queremos saber.

A vírgula pode condenar ou salvar.
Não tenha clemência!
Não, tenha clemência!

Uma vírgula muda tudo

 

José Walter Pires, escritor e poeta cordelista, integrante da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), é autor de mais de uma centena de títulos de cordéis, com temática variada, com militância profissional no sertão baiano, onde produz sua literatura. O cordel “Só por uma vírgula” foi inspirado na comemoração dos cem anos da Associação Brasileira de Imprensa – ABI

 

 

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