A casa do futuro há setenta anos
Por Carlos Krebs, para o Duplo Expresso
Quando eu era criança, as casas do futuro seriam amplas e envidraçadas e construídas sobre as nuvens. Teriam robôs fazendo as tarefas ordinárias, computadores auxiliando em todas as atividades, cápsulas transformadas em banquetes, possibilidades ilimitadas de comunicação. Com tudo isso, as famílias teriam os dias destinados a um hedonismo público-doméstico.
Esse foi o futuro goggie* representado pelos Jetsons (1962-1963). Tratava-se de uma série de desenho animado da Hanna-Barbera com apenas 24 episódios, e que representou o primeiro programa transmitido à cores pela rede ABC-TV. Quando eu os assistia, quase duas décadas depois, eles pareciam ter – repetidos ad infinitum – uma quantidade muito maior…

Mas o futuro de verdade não chegaria perto disso, embora as soluções estivessem bem próximas de um consenso sobre o emprego da tecnologia para solucionar a questão fundamental: proporcionar conforto. Os países do Hemisfério Norte concentram grande demanda energética no uso das casas. Projetar de forma diferente, consumindo menos e melhorando a qualidade do ambiente interno era um grande desafio. Após a segunda Grande Guerra havia uma percepção da sociedade estadunidense (a grande vencedora do conflito internacional) que qualquer questão social seria superada pelo emprego da solução tecnológica adequada.
Para construir com baixo consumo energético, dois paradigmas devem ser solucionados. O primeiro é baseado na substituição de energia, e o segundo na conservação da energia. Substituir uma fonte energética por outra tão eficiente quanto, mas mais barata. Conservar a que for utilizada, porque a energia mais barata é aquela que não se gasta.
Casa Solar Dover (Solar Dover House)
Construída em 1948 por U$20.000 (equivalentes a pouco mais de U$200.000 nos dias de hoje) na cidade de Dover, a Casa Solar foi a primeira casa estadunidense totalmente aquecida apenas pelo uso desta energia. Apesar de não ser novidade empregar a radiação solar, os sistemas existentes até então estavam restritos ao… será que vai dar sol?
Graças ao esforço de três mulheres que nunca apareceram em meus livros de História ou Arquitetura, foi possível construir a primeira casa concebida para nunca consumir nenhuma fonte extra de energia para oferecer calor aos seus usuários.
1. A biofísica Mária Telkes (1900-1995), uma cientista húngara PhD em Físico-Química que, após transferir-se em 1925 para os USA, trabalhou no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) entre 1939-1953. Pesquisou sobre o uso da energia solar, e desenvolveu o gerador termoelétrico de energia (1947) e o refrigerador termoelétrico (1953).
2. A projetista Eleanor Raymond (1887-1989), uma arquiteta com mais de sessenta anos de atuação profissional. Em 1931, apenas cinco anos depois de sua graduação, Raymond publicou “Early Domestic Architecture”, no qual ela explorou o que chamava de “a objetividade não estudada em adequar a forma à função” na arquitetura americana primitiva. O livro foi um dos primeiros inventários sistemáticos da arquitetura americana vernacular e norteou sua carreira.
3. A patrocinadora Amelia Peabody (1890-1984), herdeira de uma rica família de Boston, amante das ciências e das artes (foi escultora ao longo de toda a vida), e que tinha especial preocupação com a conservação da natureza e os recursos naturais, contribuiu com este projeto inovador. Ela financiou o trabalho pioneiro do projeto da ciência solar e a construção em uma propriedade que possuía ao lado de sua fazenda. Essa casa-protótipo foi visitada por milhares de cientistas e industriais.

Qual a solução? Encontrar uma forma que servisse tanto à função – morar, quanto a questão – economizar. Para atender as duas necessidades, a arquiteta Eleanor Raymond desenvolveu um projeto que lembra uma “casa cortada ao meio”. O lado mais alto (como se fosse o lado do corte), ficava voltado para a orientação com maior oferta de sol – a fachada Sul, no Hemisfério Norte – absorvendo a radiação.
Através de 18 painéis tipo sanduíche de vidro + metal preto + vidro essa radiação do sol, aquece o ar que seu sistema soprava entre as camadas de vidro e metal. O ar aquecido viajava através de um duto e através de caixas de armazenamento embutidas nas paredes da casa. Essas caixas guardavam a solução tecnológica desenvolvida por Mária Telkes. Depois da análise dos dados climáticos do National Weather Bureau, ela descobriu que Boston não tinha passado mais de nove dias sem sol em 65 anos. Então calculou que com 21 toneladas de sal de Glauber**, a casa estaria aquecida por um período de 10 dias sem sol. O uso desse sal em uma solução aquosa significava um material capaz de alterar seu estado como matéria entre sólido e líquido. Esse sulfato de sódio deca-hidratado (um sólido que contém água) funde a 32°C e armazena calor com sete vezes mais eficiência que a água. Em dias ensolarados, o sal derretia e absorvia calor, resfriando o ar no clima quente. Quando a temperatura diminuía, o sal resfriava, mudava de fase e recristaliza, liberando o calor armazenado.

Essa iniciativa de 1948 é o embrião na preocupação por construções mais eficientes do ponto de vista energético. Ela antecipa questões de uma arquitetura focada no atendimento ao suporte tecnológico, com viéses ambiental e sustentável. Chegaremos até lá em um próximo texto – “A casa para o futuro há 30 anos” –, onde sistemas, certificações e standards buscavam contemplar o uso racional dos recursos naturais disponíveis.
…
* “Googie” era o nome de uma cafeteria em Hollywood projetada pelo arquiteto John Lautner, responsável por aliar seu grande conhecimento técnico de estruturas com a obtenção de cenários impactantes. Assim, o Googie (ou Popluxe, ou Doo Wop) foi um estilo arquitetônico derivado do movimento moderno surgido no sul da California (USA), após a segunda Grande Guerra. Serviu como catalizador da cultura consumista, da era da corrida espacial, da era atômica, e foi muito aplicada em postos de combustíveis, motéis, restaurantes e cafeterias.
** O sal decahidratado Na2SO4·10H2O (sulfato de sódio anidro) tem sido conhecido como Sal de Glauber ou como sal mirabilis desde o século XVII.
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Carlos Krebs é arquiteto, cinéfilo, explorador de sinapses, conector de pontinhos, e mais um que acredita que o Brasil ainda tem tudo para dar certo.
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