Boas intenções no inferno: como o PT jogou militares no colo dos EUA

Algumas intuições sobre militares, ontem e hoje

Por Piero Leirner, para o Duplo Expresso
(Doutor em Antropologia pela USP (2001), Professor na UFSCar)

  • A depender do que acontecer hoje, podemos ter certeza de que vai ter muito militar pregando intervenção em SP, causada por desobediência civil conduzindo a estado de sítio. É hora de o PT explorar ao máximo estar fazendo resistência ao fato de que “PF/ MPF/ juízes querem sucatear as defesas brasileiras, inviabilizando o submarino e a construção dos caças Gripen NG”. Mais: o PT deve apelar ao Exército para que se mantenha longe dessa história, pois o problema não seria com ele: “pelo contrário”.

Certamente o que disse Villas-Boas nessa semana mostra algo, sem revelar tudo. Menos, talvez, pelo que ele disse, mas pelo quando, e como. Quero jogar um pouco para o passado e para certas dinâmicas internas da caserna, para que possamos começar a pensar com um pouco menos de paixão o que pode acontecer daqui para frente com eles.

Já tenho insistido, e Romulus Maya tem tocado nesse ponto no Duplo Expresso, que a Comissão Nacional da Verdade – que, antes que me acusem de qualquer coisa, acho que é algo necessário (abertura de arquivos, explicitação dos crimes de Estado, transparência) -, feita sob o manto de Dilma (ex-guerrilheira), foi lida como uma VINGANÇA PESSOAL pelo exército. Nesse momento, conheci pessoalmente militares, entre coronéis e majores (portanto, pessoal que dificilmente estaria envolvida na CNV, só talvez tivessem algum parente, mas sabe-se lá…), que antes entusiasmados com a (geo)política brasileira, que foram por conta dessa palavra “Verdade”, jogados para um lado francamente oposicionista.

Sujeitos que tinham um cotidiano “técnico”, digamos assim, que cuidavam de suas tarefas, que estavam realizando o que a muito custo foi um processo de profissionalização e despolitização das Forças Armadas desde 1986, passaram a frequentar associações, fazer parte de grupos de construção de uma “Verdade Militar”. A coisa bateu como espírito de corpo, defesa da instituição. Muita gente que tinha vergonha de um Ustra certamente não passou a defendê-lo, mas começou a atacar Dilma. Entenderam como um “ato residual” da guerra dos anos 68 e seguintes. Lembre-se que em 2012 foram 1500 assinaturas, de majores a generais, contra a CNV.

Estou dizendo isso para que se entenda uma outra dinâmica, que está por trás disso, e é muito mais profunda no pensamento militar. Muito se fala numa divisão interna entre uma “Ala Entreguista” e uma “Ala Nacionalista”. Qualquer um que passou duas semanas dentro de uma unidade militar sabe que isso não é bem assim. Por duas razões.

A primeira, é preciso que se entenda isso, é que TODO MILITAR SE COMPREENDE COMO NACIONALISTA. Podemos até argumentar que se trata de um nacionalismo tosco – que entende que a nação deva ser definida, sei lá, por valores cristãos, e não pela sua base industrial. Mas definitivamente ninguém nas instituições militares tem o desejo explícito de ver o Brasil entregue ou subordinado a outras potências. Pode ter o desejo implícito provocado pelo entendimento de que é melhor ser uma sub-potência delegada de uma outra, cujos valores compreende-se representar melhor o que seriam os “anseios da nação” (sim, sabemos que isso é um problema interpretativo, mas vamos passar isso para depois). Assim, por exemplo, compreende-se que o Brasil seria melhor representado por valores ocidentais do que russos.

A segunda razão, para mim muito mais importante e definidora do que está acontecendo nesse momento, é que efetivamente não há essas “Alas”, como grupos: não existe espaço sociologicamente possível para que uma coisa dessas se construa. Não há certos quartéis que você poderia optar em servir porque identificaria ali uma tendência. Não há possibilidade de direcionamento na carreira. Não há escolas concorrentes. O que existe então? Existem “formas de pensamento”, “teorias militares” que vão mais para um lado ou mais para outro, e aí indivíduos vão se aproximando mais de umas e/ou de outras, conforme vários fatores. MAS, ENTRE ESSES FATORES, É PRECISO ENTENDER O POTENCIAL DE UMA TEORIA INOVADORA EM TERMOS MILITARES, que pretenda dar conta de uma leitura holista da realidade e faça sentido diante de uma conjuntura que inclui, agora aqui falando na lata, AS AÇÕES QUE SÃO VISTAS INTERNAMENTE COMO TENTATIVAS DE ATAQUE ÀS PRÓPRIAS FORÇAS ARMADAS. Lembre-se que tudo é visto e filtrado pela lógica da guerra, e a CNV veio ocupar um espaço que até então estava sendo ocupado por outros. POIS, É PRECISO ENTENDER, NA LÓGICA MILITAR UM EXÉRCITO ESTÁ SOB ATAQUE 100% DO TEMPO, ATRAVÉS DE FORÇAS DISRUPTIVAS, E SUA PRÓPRIA EXISTÊNCIA É UM MECANISMO DE DISSUASÃO.

Pois bem. Até pouco tempo atrás, esse “inimigo” estava claramente identificado como um conjunto de interesses que se plasmava na tal “cobiça internacional pela Amazônia”. Isso era visto sobretudo através de uma lente que identificava uma ação disfarçada das grandes potências através de ONGs, do ambientalismo, da ONU, do movimento indígena, de parte da Igreja Católica, e de outros elementos que tornam a lista gigantesca. Para se ter uma noção de como este elemento doutrinário se impôs com força e coerência no Exército, houve inclusive toda uma construção de ideia de “refundação da Pátria a partir de Guararapes”, com a ideia de expulsão de uma potência estrangeira a partir do amálgama das três raças, e esvaziamento progressivo das comemorações dos 31 de março que se realizavam tanto nos quartéis quanto na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Se não me engano, em 2009 o 31 de março não tinha nem 10 militares embaixo da Bandeira hasteada na frente da ECEME. Isso foi de fato uma mudança de paradigma.

Mas vejam só. Muda-se a doutrina, começa-se a deslocar brigadas inteiras para a fronteira amazônica. Olhem como a coisa pode ser lida internamente: uns vão achar que isso era necessário para conter as Farc e narcotráfico; Uns vão achar que isso era necessário para dissuadir as ONGs; Uns vão achar que isso era parte de uma estratégia de projeção de poder para a América Andina. Uns vão achar os 3, ou 2 ao mesmo tempo. O fato que quero chamar a atenção é que não existe uma “ala” que está predisposta a 1,2 ou 3. Há essas tendências, como existem funcionalistas, estruturalistas, etc. O ponto é que aí nós começamos a ver as pequenas intersecções entre as pessoas, os postos de comando e as decisões. Tenho quase certeza que nenhum civil hoje consegue ver o quadro completo e saber exatamente quem está ocupando cada linha de força nisso aí. Nem um estudo de rede com um monte de variáveis resolveria esse mapa. Mas há coisas que podemos identificar. Se vocês olharem, por exemplo (e isso é uma mera ilustração), entre esses 3 elementos acima vemos aproximações a 2 polos: um digamos, “da projeção externa”, poderia estar bem identificado com a política externa petista; o outro, que contempla ONGs e guerrilheiros/narcos, visa um polo híbrido, com aproximações a um “inimigo interno”. esse é um dualismo que vota e meia pode ser reposto no tabuleiro. Vejam, então, que hoje muitos deles aproximam o PT aos “narcoguerrilheiros”, como frequentemente venho chamando a atenção (ver “n” publicações no defesanet assinadas por militares).

Então, isso começa a acontecer com maior intensidade a partir do Governo Dilma 1, quando a bússola gira de novo, e a CNV praticamente pavimenta o caminho para uma teoria que estava engatinhando dentro das FFAA. Trata-se da teoria da guerra de 4a geração, ou disso que está se chamando de “guerra híbrida”. Não vou entrar em detalhes sobre o que é exatamente ela, mas vou me ater ao fato de que ela foi lida pela lente do Exército (e depois das outras duas Forças) como uma tentativa de desestabilizar suas próprias estruturas. No fundo, para trocar em miúdos, o que se fez foi adaptar a noção de “inimigo” que a guerra de 4a geração trabalha à ideia de que este estaria galvanizado em um conjunto de forças que compreende as ONGs, índios, etc., de logo antes ao próprio Partido dos Trabalhadores, que estaria usando a CNV como parte de uma estratégia de guerra.

Mas a bala de prata veio com o tal “Documento de Conjuntura” que o PT produziu, e saiu assinado por Rui Falcão, em 2016. Lá se dizia que o governo petista falhou na missão de “mexer nas promoções” e “nos currículos militares”. Como isso foi lido? Como tentativa de politização de uma Força Armada que com muito custo se livrara da política dentro dos quartéis.
Então olhem que ironia: tudo isso que vemos como um movimento de politização dos quartéis foi, na lógica deles, uma reação contra uma politização provocada pelo PT. Então há uma consideração aqui a ser feita, para voltar ao problema das supostas “Alas”, que, reafirmo, não existem.

O que vejo que está acontecendo, e não é difícil constatar isso vendo a produção de teses e dissertações nas escolas militares, é o modo pelo qual essa versão da noção de “guerra híbrida” emplacou dentro das FFAA. Trata-se hoje de uma leitura bastante difundida, e que aproveita substancialmente o que os Manuais doutrinários (por exemplo, os Field-Manuals de contra-insurgência dos Marine Corps) das FFAA norte-americanas colocam. Note-se que não estou falando com isso que as nossas FFAA estão se deixando aparelhar pelas dos EUA, mas que essas ideias circulam. Tal como se Marx faz parte de minha teoria, não posso dizer que estou me “alemanhizando”.

Porém, essa tropicalização que aqui é realizada, como a entendo, ainda coloca o PT como um vetor de irradiação da “guerra híbrida”. Isso explica em parte os acontecimentos dessa semana, envolvendo Villas-Boas.

Sua posição anti-Ongueira, anti-movimentos indígenas, etc., é conhecida de longa data. O que ninguém tinha noção é o quanto ele tinha passado para esse novo “agregado pós-amazônico”, incluindo o PT. Quando li aquela entrevista que ele falava da CNV e do documento, para mim caiu a ficha de que não restava mais nada para salvar ali. Já era. Ele é um democrata, mas entre a pressão interna e a opinião pública só havia uma casca de ovo. Seu “tuíte” foi para acalmar os ânimos internos, pois o zunzunzun devia estar insuportável. E, como sabemos, o risco de um substituto seu ir para uma linha muito politizada não é baixo. “Micro-politizar” em 140 caracteres foi, na minha leitura, uma tentativa de não “macro-politizar” na sucessão do Comando do Exército.

É claro que a consequência, e a leitura que se fez disso amplificou o sinal. Entendeu-se que o STF agiu com a baioneta apontada, o que pode ter sido lá dentro assim ou não.

O que fazer então? Claro que não tenho essa resposta, mas acho que podemos estar atentos a algumas coisas. A primeira, a depender do que acontecer hoje, podemos ter certeza que vai ter muito militar pregando intervenção em SP, causada por desobediência civil conduzindo a estado de sítio. Não sei se todos vão cair nessa, mas É HORA DO PT EXPLORAR AO MÁXIMO QUE ESTÁ FAZENDO RESISTÊNCIA AO FATO DE QUE A PF E O MPF ESTÃO QUERENDO SUCATEAR AS DEFESAS BRASILEIRAS, INTERFERINDO NO SUBMARINO E NA CONCRETIZAÇÃO DOS CAÇAS GRIPEN. A Força Aérea já pôs “panos quentes” nas declarações do Villas-Boas, o que mostra que o jogo não está tão jogado assim. O SEGUNDO APELO QUE O PT TEM QUE FAZER É PARA O EXÉRCITO FICAR LONGE DESSA HISTÓRIA, POIS O PROBLEMA NÃO É COM ELE. ISTO É ESSENCIAL PARA UM SEGUNDO MOMENTO.

EM TERCEIRO, É PRECISO DIZER, MESMO CONTRA A VONTADE, QUE AS RELEITURAS DA HISTÓRIA DEVEM NESSE MOMENTO SER DEIXADAS DE LADO, EM NOME DE UMA UNIDADE MAIOR QUE É A SOBERANIA NACIONAL. QUE SEJA TAREFA PARA ACADÊMICOS. Claro que isso é um problema para nós, mas sinto muito, essa teremos que engolir seco se quisermos vislumbrar qualquer possibilidade de um relacionamento futuro.

Finalmente, É PRECISO DIRIGIR UM MANIFESTO AOS MILITARES, PEDINDO UNIDADE ENTRE ELES, DEFESA DA SOBERANIA NACIONAL, E EXPONDO TODO TIPO DE DADOS QUE TEMOS QUE MOSTRAM UMA SISTEMÁTICA AÇÃO DE DESESTABILIZAÇÃO VINDA DOS EUA. É preciso que eles tenham consciência que a guerra híbrida vem de lá, e não de Moscou. Isso é difícil, mas não é impossível, já que o paradigma anterior era esse. Nuca vou me esquecer do que um coronel me disse, em plena Escola de Comando, em 1992: “Hoje, nossos maiores inimigos são os Estados Unidos”. Ponto.

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Romulus Maya

Advogado internacionalista. 12 anos exilado do Brasil. Conta na SUÍÇA, sim, mas não numerada e sem numerário! Co-apresentador do @duploexpresso e blogueiro.

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