Um Golpe bem britânico – e outro bem brasileiro

Por Yorkshire Tea, para o Duplo Expresso

“A Very British Coup” (Um Golpe Bem Britânico) de Chris Mullin, um ex-político inglês do Partido Trabalhista, foi originalmente publicado em 1982. Mais tarde, o livro foi transformado numa minissérie homônima, inicialmente transmitida pelo canal inglês Channel 4, em 1988. Além de ter sido exibida em mais de 30 países, a minissérie foi premiadíssima, conquistando alguns prêmios BAFTA e um Emmy.

Resumidamente, a obra trata da eleição de um primeiro ministro britânico trabalhista, Harry Perkins, um ex-sindicalista genuinamente de esquerda, e do golpe que se segue, engendrado pelo establishment, reunindo a mídia, a banca, o alto escalão das FFAA e dos serviços de segurança, a elite do funcionalismo público e sindicatos cooptados. Além, claro, dos EUA. Onipresentes quando se trata de derrubar governos não alinhados.

A vitória de Harry Perkins é baseada na defesa de uma plataforma radical, que incluía, entre outras iniciativas, o desarmamento nuclear unilateral, a saída da Comunidade Econômica Europeia (futura União Europeia), a saída da OTAN, a quebra dos monopólios jornalísticos¹ e uma maior influência governamental sobre o sistema bancário. Um programa inaceitável para o establishment. Com isso, a conspiração contra o ex-metalúrgico se inicia já na noite de sua eleição. A contagem dos votos mal havia terminado, e as engrenagens do golpe já começavam a se mover simultaneamente nos dois lados do Atlântico, alinhavando todas as possibilidades de sabotagem, excluindo apenas uma invasão por fuzileiros navais: ataques especulativos contra a moeda, boicote às exportações, venda de ativos e fuga de capitais, ataques midiáticos, pressões diretas e indiretas, espionagem, grampos, chantagens, infiltração de sabotadores em manifestações, manipulação de sindicatos “amigos”. Enfim, todo o arsenal tipicamente utilizado para derrubar governos em Golpes de Estado.

Como não poderia ser diferente, o romance reflete as circunstâncias políticas existentes à época, quando Margareth Thatcher, no comando do Partido Conservador (Tory Party), já era a Primeira Ministra, mas ainda não tinha toda a influência e controle sobre o poder que viria a angariar anos mais tarde. O Partido Trabalhista (Labour Party) ainda não havia passado pela reforma liderada por Tony Blair, que levou à ascensão do “New Labour”, cuja forma de governar ficou conhecida como “Terceira Via”, um tipo de macronismo avant la léttre (vendia-se como não sendo nem de esquerda nem de direita, muito pelo contrário). Na verdade, a Terceira Via acabou solapando os vínculos que uniam o partido a suas bases tradicionais, formadas por operários, mineiros, estivadores, etc. Porém, quando o livro foi publicado, o Partido Trabalhista ainda estava muito ligado à esquerda².

Esse é o período imediatamente posterior à derrota, nas eleições gerais de 1979, do governo trabalhista, liderado por James Callaghan (1976-1979), para os conservadores, liderados por Margareth Thatcher (1979-1990). Callaghan havia assumido o governo após a misteriosa renúncia de Harold Wilson durante seu segundo período ocupando o número 10 de Downing Street (1974-1976). Existem algumas “teorias da conspiração” que tratam da tentativa de derrubar Wilson do poder. Como veremos adiante, havia um fundo de verdade nisso. Após o fracasso nas urnas, os trabalhistas amargariam um longo período longe do poder (1979-1997).

Como resultado do revés de 1979, ocorre uma disputa interna entre Tony Benn (representando a ala esquerda do partido) e Denis Healey (representando a ala direita). No entanto, em 1980, Michael Foot acaba sendo eleito líder do partido. E sua plataforma era radicalmente de esquerda. Os principais pontos defendidos por ele incluíam igualmente o desarmamento nuclear unilateral, a saída da Comunidade Econômica Europeia e da OTAN, uma maior influência governamental sobre o sistema bancário, além da criação de um salário mínimo e da proibição da caça à raposa (“esporte” tradicionalmente ligado à aristocracia). Na introdução do livro (vide abaixo), Chris Mullin menciona Tony Benn, como potencial liderança trabalhista nas eleições da época. Acredito que caberia também uma breve menção a Michael Foot. Afinal de contas, as políticas por ele defendidas na vida real formam a base da plataforma vencedora de Harry Perkins na ficção.

Esse golpe fictício foi muito parecido com o golpe real sofrido pelo Brasil. As semelhanças entre os grupos envolvidos (mídia, instituições financeiras, empresariado, sindicatos cooptados, a parte do funcionalismo público capturada pelos interesses do establishment, além do deep state norte-americano) e as ações por eles implementadas é impressionante! Na obra de ficção e no país de verdade, os mesmos grupos se movem concertados, visando o mesmo resultado: dar um Golpe de Estado e derrubar um governo legítimo eleito com base numa plataforma popular. Na ficção e na vida real, o desfecho é idêntico. A diferença é que, no livro, a conspiração é mantida em segredo até sua conclusão. Já aqui, sabemos muito bem, o conluio não só vem sendo transmitido ao vivo como é feito às claras desde o início. E, para nossa tristeza, essa ópera bufa e surreal ainda não acabou. Continua sendo exibida e explorada por políticos de todos os matizes todos os dias, uma vez que os objetivos principais – a eliminação de Lula da vida pública e a destruição do PT como alternativa eleitoral progressista viável – ainda não foram atingidos. Infelizmente, para nós no Brasil, a realidade do golpe é sentida concretamente, todos os dias. Antes, fôssemos ficção. Antes, Um Golpe Bem Brasileiro fosse apenas um romance.

Voltando ao campo da ficção, eis algumas informações (reais) importantes, para quem for encarar o livro (infelizmente, apenas em inglês): como a estrutura burocrática britânica é bem diferente da brasileira, é preciso levar em conta algumas dessas peculiaridades, para que não haja confusão na cabeça do leitor. Lá, o que aqui chamamos de Ministro de Estado, é conhecido por Secretário de Estado (Secretary of State). O problema é que eles também têm o cargo de Ministro de Estado (Minister of State). Este último se reporta àquele. Hierarquicamente abaixo dos dois, encontra-se o Subsecretário Parlamentar de Estado (Parliamentary Under Secretary of State ou simplesmente Parliamentary Secretary). Além disso, há o Secretário Permanente (Permanent Secretary ou Permanent Under Secretary of State), cargo ocupado por funcionários mais graduados do serviço público, que se encarregam de administrar o dia a dia dos respectivos Departamentos/Ministérios. E, para aumentar ainda mais a confusão, os ministérios lá podem ser chamados tanto de Ministério (Ministry of Justice, por exemplo) quanto de Departamento (como o Department for Business, Energy & Industrial Strategy). Com o Brexit (que, obviamente, não entra no escopo do livro), criaram até um Departamento para a Saída da União Europeia (Department for Exiting the European Union)!

Outro dado curioso a respeito da obra é que, com a exceção do DI5, que foi uma maneira que o autor encontrou de evitar citar o MI5 (o Serviço de Segurança Interna Britânico), todos os nomes de locais, prédios e estabelecimentos são reais. Portanto, o Annabel’s é o nome de um clube e restaurante sofisticado no centro de Londres, o Athenaeum é o nome de um clube privado também em Londres, e assim por diante. Todos existem (ou existiram) de verdade. Por isso, quem quiser matar a curiosidade e ver a aparência real desses locais, pode fazê-lo por meio de uma pesquisa na Internet.

Já em relação à minissérie homônima – excelente, por sinal –, não há dúvida de que buscou ser fiel à trama original, divergindo, porém, em dois aspectos: no livro, parte do enredo se centra numa usina nuclear. Na minissérie, esse foco é transferido para o arsenal nuclear. E os finais do romance e da minissérie também seguem direções distintas. Outro elemento importante aos interessados na obra audiovisual: aos olhos do público de hoje, acostumado com alta definição, efeitos especiais, ação incessante e diálogos acelerados, a minissérie parecerá arrastada e de baixa qualidade. Recomenda-se tentar relevar esses dois “ruídos”. Deixe-se absorver pela trama, respeitando seu ritmo original. Com isso, acredito, consegue-se extrair o máximo proveito da obra.

Apesar de serem fruto de outra era – estamos falando, afinal de contas, de um outro mundo, no auge da Guerra Fria, quando as diferenças entre esquerda e direita eram visivelmente demarcadas –, tanto o livro quanto a minissérie são prescientes, na medida em que, a despeito de nos mostrarem um golpe fictício num Reino Unido que não mais existe, baseiam-se em fatos que, mais tarde, se provariam verdadeiros. Vale a pena aqui darmos a palavra ao autor, Chris Mullin, na introdução da edição de 2017 de Um Golpe Bem Britânico:

Introdução à edição de 2017³

No mesmo dia das recentes eleições gerais – 8 de junho de 2017 –, o Daily Telegraph publicou um artigo de capa, alertando que a eleição de Jeremy Corbyn poderia ser algo “extremamente arriscado para o país”. O artigo prosseguia, “… em outra época, ele teria sido investigado ativamente pelo MI5. Não podemos depositar o destino da Grã-Bretanha em suas mãos.”
O autor desse texto era Sir Richard Dearlove, um ex-chefe do MI6 e um dos responsáveis por nos empurrar para a catástrofe iraquiana, um tema no qual o discernimento de Corbyn provou-se superior ao dele. Até ler esse texto, achava que os dias em que os serviços de segurança e informações interferiam na vida política britânica eram coisa do passado. Agora, já não tenho tanta certeza.

Um Golpe Bem Britânico foi concebido há quase quarenta anos, sob uma atmosfera política que, ao menos até recentemente, era muito diversa daquela que predomina atualmente. Em outubro de 1980, estava num trem, retornando da conferência do Partido Trabalhista em Blackpool com Stuart Holland, que havia sido recém-eleito Membro do Parlamento (MP) por Lambeth Vauxhall, e Tony Banks e Peter Hain, que mais tarde viriam a se tornar MPs também. Estávamos discutindo como o Establishment reagiria à eleição de um governo trabalhista de esquerda. Nesses dias distantes, Margareth Thatcher estava à frente do governo britânico, mas ainda não havia consolidado seu domínio sobre o poder. O Partido Trabalhista desfrutava de bons números nas pesquisas de opinião, e havia uma possibilidade concreta de que, nas próximas eleições, os trabalhistas fossem liderados por Tony Benn. A imprensa de direita estava entrando em frenesi com essa possibilidade. “Não se trata mais de se, mas sim de quando”, gritava uma manchete de um dos jornais dos Harmsworth acima de uma foto de página inteira de Tony Benn. Coroando tudo isso, o anúncio de que os norte-americanos estavam planejando instalar mísseis de cruzeiro em suas bases britânicas havia dado novo ânimo à Campanha pelo Desarmamento Nuclear (CDN).

“Um bom tema para um romance”, observou um dos meus companheiros, fazendo com que Peter Hain revelasse que ele e um amigo estavam fazendo circular junto a editores um esboço de um romance que tratava exatamente desse assunto. Mas Stuart Holland havia dado um passo além. Ele disse que, naquele verão, havia datilografado, à beira de uma piscina na Grécia, os capítulos iniciais de um romance sobre o mesmo assunto. Apesar disso, acabei chegando à frente de todos, mas por uma margem muito pequena. Anos mais tarde, Peter Hardiman Scott, um ex-correspondente político sênior da BBC, me disse que, quando Um Golpe Bem Britânico foi publicado, ele já havia escrito dois terços de um romance baseado numa premissa similar. O livro dele era tão extraordinariamente parecido que, depois de consultar seu editor, ele decidiu abandonar a obra. Dei muita sorte. O resultado poderia muito facilmente ter sido o oposto.

Um Golpe Bem Britânico foi publicado no outono de 1982 e atraiu algum interesse. Na época, eu trabalhava no semanário de esquerda Tribune, e vendíamos o livro por meio de um anúncio na última página do jornal. O primeiro pedido veio da embaixada norte-americana e foi seguido por um convite para almoçar com o Ministro, a autoridade mais importante depois do embaixador. O romance foi convenientemente achincalhado nas colunas de correspondentes do The Times e, com isso, por um breve período, as vendas na livraria da elite londrina, a Hatchards, em Piccadilly, superaram aquelas da livraria de esquerda, a Collets (desde então, percebi que, quando se trata de vender livros, uma condenação pública de alto nível vale tanto quanto meia dúzia de críticas positivas). A primeira tiragem em capa dura vendeu rapidamente e foi seguida por uma modesta tiragem em brochura. O interesse posterior poderia ter desaparecido, não fosse a ocorrência de eventos que reavivaram a atenção pelo livro.

Em agosto de 1985, o Observer revelou que um membro do MI5, o Brigadeiro Ronnie Stoneham, podia ser encontrado na sala de número 105 da Broadcasting House (sede da BBC), literalmente carimbando árvores de natal de ponta cabeça nas fichas cadastrais dos funcionários da emissora que ele considerasse ideologicamente inadequados. Aqueles que leram ou assistiram a Um Golpe Bem Britânico sabem que o meu diretor do MI5, Sir Peregrine Craddock, também avaliava funcionários da BBC, além de ter um espião no conselho geral da CDN. Mais tarde, uma dissidente do MI5 revelou que realmente tinha havido um espião desse tipo. Seu nome era Harry Newton. Finalmente, em 1987, Peter Wright, um agente aposentado do MI5, causou furor com a alegação de que um grupo de agentes do MI5, do qual ele fazia parte, havia tramado sabotar o governo de Harold Wilson. De repente, a possibilidade de que o Establishment britânico pudesse conspirar com seus amigos do outro lado do Atlântico não podia mais ser rejeitada como sendo paranoia da esquerda.

Em 1988, o Channel Four transmitiu uma minissérie baseada no livro. Nela, o meu primeiro ministro foi maravilhosamente interpretado pelo excelente ator Ray McAnally e acabou ganhando vários prêmios BAFTA e um Emmy. Depois disso, o interesse pela obra diminuiu. Após os escândalos da década de 1980, o MI5 passou por uma faxina (“nós nos livramos de vários pesos mortos”, um Secretário do Interior conservador confidenciou para mim certa vez) e parou de se imiscuir na vida política britânica. Sob Tony Blair, o Partido Trabalhista retornou de maneira determinada para o centro do espectro político britânico e foi calorosamente recebido pelo Establishment, ou pela maioria dele.

Com a ascensão de Jeremy Corbyn, de repente, Um Golpe Bem Britânico voltou a chamar a atenção. Inicialmente, a possibilidade de um governo Corbyn parecia tão remota que a ideia de que ele pudesse ser vítima de um golpe do establishment parecia não passar de uma fantasia deliciosa. Com o resultado das recentes eleições gerais, porém, o que antes parecia inimaginável, agora é uma possibilidade distinta. Não é impossível imaginar que ele possa ser o primeiro ministro na virada da década. Ainda assim, o meu instinto continua dizendo que, apesar de muito barulho, o sistema deixará que os eventos sigam seu curso. Mas nunca se sabe. Com Trump na Casa Branca e uma parte considerável da nossa suposta liberdade de imprensa controlada por ideólogos dementes e imbecis – como Richard Dearlove – fazendo barulho, tudo é possível. Bom proveito.

Chris Mullin
Agosto de 2017

 

Notas

1 No Reino Unido, a propriedade cruzada de meios de meios de comunicação é proibida por lei. Assim, não existem ali monopólios midiádicos. Mas há, sim, grandes grupos jornalísticos no país.

2 Somente agora, com a recente ascensão de Jeremy Corbyn à liderança trabalhista, é que está havendo uma reaproximação do partido com suas origens.

3 Publicado com a expressa autorização do autor.

Yorkshire Tea é leitor e colaborador do Duplo Expresso.

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