A Percepção da Verdade

Por Carlos Krebs*, para o Duplo Expresso

Simulacro é a imagem usada para imitar algo ou alguém. Mas a definição do filósofo Jean Baudrillard (1929 – 2007), é mais intrigante. Ela começa com uma negação para definir o termo: “O simulacro nunca é o que esconde a verdade; é a verdade que esconde o que não há. O simulacro é verdade.” (NA1)

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Roteiros cinematográficos transportados do universo teatral para a tela são muito comuns. Alguns, inclusive, são apresentados como se estivéssemos na plateia de um teatro, e não nas poltronas de uma sala de cinema, ou no conforto do sofá da sala. Entretanto, este tipo de filme pode exigir um grau maior de atenção para quem assiste. Há alguns bons exemplos:

“O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante” (The Cook, The Thief, His Wife & Her Lover, GBR, de Peter Greenaway, 1989), onde há uma apresentação do exagero, do mau-gosto e da maldade que nos tipifica como humanos. O filme acontece basicamente em quatro ambientes de um restaurante, onde o banquete visual sacia a gula e a luxúria do espectador com pitadas de violência. Merece ser visto porque é tido como uma alegoria da Grã-Bretanha da cartilha liberal dos anos 80, com o cozinheiro representando os trabalhadores, o ladrão como a mão poderosa de Margaret Thatcher, a esposa como a pátria presa a um casamento insatisfatório com o partido no poder, e o amante atuando como a oposição política.

Outro exemplo é “Dogville” (DEN, de Lars von Trier, 2003), parte inicial da trilogia sobre os Estados Unidos como a “Terra das Oportunidades”. Contrapondo falsa bondade com relações de toma-lá-dá-cá, o filme desfila em um cenário a arrogância humana fazendo jus ao título – Cidade do Cão, com os personagens atuando de forma instintiva e cruel. Um filme onde as verdadeiras intenções são veladas, e ouve-se a todo momento os moradores dizendo para Nicole Kidman como “eu só estou pensando no seu bem”. O diretor faz uma (auto) crítica ao movimento do qual é um dos idealizadores – Manifesto Dogma 95, o qual invocava por um cinema mais real e menos comercial.

Entretanto, meu favorito é outro: “12 Homens e uma Sentença” (12 Angry Men, USA, de Sidney Lumet, 1957). Oriundo de uma peça para televisão em 1954 (por Reginald Rose), a linha argumentativa deste clássico do cinema é bem simples: trata-se do julgamento de um jovem de origem hispânica acusado de assassinar o pai. Os doze jurados convocados para decidir a sentença estão isolados em uma sala abafada em um dia de semana muito quente. Seguindo razões que evidenciam egoísmo ou preconceito próprios, onze deles abrem o voto pela condenação assim que sentam-se em volta da longa mesa de reuniões. Apenas o jurado de número oito – Henry Fonda – vota inicialmente contra a acusação (o conhecido “not guilty). Ele defende a presunção de inocência do jovem.

Imagem esq: cartaz do filme “12 Homens e uma Sentença” (12 Angry Men) por © United Artists Corp. (1957) | Imagem centro: rascunhos sobre os personagens do filme por © Sean Phillips (2012) | Imagem dir: cena do filme com o ator Henry Fonda por © MGM Studios (1957)

Este jurado interpreta um arquiteto e serve como fio condutor da história. O que mais chama minha atenção é o requinte na desconstrução de uma verdade. Mesmo que claustrofóbico – dos 96min do filme, 90min são dentro de uma mesma sala – a narrativa é ágil, e nos obriga a pensar a todo instante:

– E se eu estivesse julgando, o que eu teria para por naquela mesa?

Conheço muito pouco de filosofia. Ou muito menos do que minha curiosidade gostaria de ver saciada. Mas acho que sempre é interessante em alimentar-se das proposições de filósofos (o estudioso acadêmico) e pensadores (o autodidata) em prol da construção da verdade. Ou melhor, da percepção da verdade. Comecei o texto aqui comentando sobre o filósofo Baudrillard porque ele antecipou em décadas que nossa sociedade estaria trocando a realidade pela simulação dela. Por uma questão de simplificação pessoal, estipulo que realidade seja verdade. Então assumo que na Arquitetura a verdade estará na materialização do discurso projetivo: uma vez construído, ele passa a existir, e portanto, torna-se verdadeiro, real.

Mas em qual dimensão? Não há algo que possa servir como referência a não ser o desenho do projeto que lhe dá origem. Se Arquitetura é uma arte aplicada, e não uma arte representativa que possa representar ou copiar, não se pode afirmar “é falso!” ou “é verdadeiro!”.

Então em qual verdade se aplica a explicação entre o que é edificado e aquilo que abriga? Ao abrir a porta qualquer dentro de um arranha-céu chinês de 70 andares, e olhar dentro do apartamento identifica-se que ele é uma célula onde cozinha-quarto-banheiro poderão estar no mesmo ambiente, então ele parecerá falso como moradia de acordo com a realidade que vivo, com a minha experiência. Se estivermos em São Paulo, caminhando distraidamente e observarmos um destes prédios novos com cara antiga, com fachada estilizando um padrão neoclássico, de cor creme e textura rugosa imitando pedra, mas que apresenta apartamentos convencionais com paredes fininhas e uma quantidade enorme de coisas agregadas ao condomínio (sala de ginástica, spa, cozinha gourmet, cinema, brinquedoteca, biblioteca, enoteca, eca, eca, eca) fora da residência, então ele também parecerá falso em relação à expectativa que sua imagem sugere.

Imagem esq: Auguste Palais cercle des Beaux-Arts por CC Henri Adolphe Deglane (1881) | Imagem dir: Condomínio Parque Cidade Jardim – Pablo Slemenson + JHSF (2008) por © Igor_SP (2015)

Independente da situação e do entendimento de cada um, o que se apresenta de um jeito e é vendido de outro, é apenas um truque.

Um pouco disso está exemplificado em “12 Homens e uma Sentença”. Há necessidade de questionar-se onde está a percepção da verdade. Em qual lógica? Sob quais argumentos? A verdade se apresenta pela voz de alguém, ou por nossa voz interna com base em nossa vivência?

Como descreve o cientista social Maurício Puls (NA3) parafraseando Karl Marx:

“Nenhuma obra arquitetônica alcançará o efeito desejado se não incorporar, em seu significado manifesto, algo da visão de mundo das demais classes. É por isso que a arquitetura não é apenas um discurso ideológico, mas também uma expressão da consciência coletiva de cada sociedade.”

Novamente Baudrillard antecipa-se ao tempo presente quando antes da virada do milênio afirma que a arquitetura não está na realidade, mas na ficção do que a sociedade pretende para ela (NA4). Imagine-se na frente do prédio da Procuradoria Geral da República, em Brasília – uma das últimas obras inauguradas na capital federal com Niemeyer vivo. Um prédio todo envidraçado e sem arestas vivas; um desejo por transparência no local que abrigaria a reserva moral dos poderes do país. Novamente, apenas um truque

Imagem maior: ” Sede da Procuradoria Geral da República” por CC Luis Dantas (2008) | Desenho do projeto da PGR por © Oscar Niemeyer (1995) – prédio inaugurado em 2002

Todo aquele vidro não mostra; serve muito mais para esconder, para mimetizar o prédio com a claridade do Planalto Central. A ideia de leveza dos blocos, que não tocam o solo tentam transmitir que ali a justiça paira sobre todos. Entretanto, os usuários – aqueles que sempre acabam com as boas intenções do projetista – poderão usar isso como afirmação de suas próprias divindades. E nós, que assistimos do lado de fora, que verdade reconhecemos nesta obra?

A Arquitetura é importante porque ela se manifesta nas ruas. Ou melhor, é percebida nos intervalos entre as ruas, ou entre o espaço que não é meu e aquele que deveria ser nosso: O espaço público. A cidade restrita, demarcada e impedida faz com que a resposta arquitetônica às pressões de quem contrata o ofício provoquem uma resposta excludente, individual, um simulacro que nos espelha. Mudemos nós, antes que todos mudos, sejamos condenados por antecipação.

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NA1 – “Le simulacre n’est jamais ce qui cache la vérité – c’est la vérité qui cache qu’il n’y en a pas. Le simulacre est vrai”, por Jean Baudrillard, Simulacres et Simulation”, ed. Galilée, Paris, 1981, pg 9.

NA2 – Há uma versão mais recente, chamado simplesmente “12”, (RUS, Nikita Mikhalkov, 2007). Esta versão russa transporta a ação para o ginásio de esportes em uma escola, onde um jovem checheno (um estrangeiro, assim como o porto-riquenho do original) está sendo acusado da morte de seu padrasto, um oficial do exército russo. A diferença é que o personagem/jurado discordante tem menor importância na condução da narrativa, que está centrada no valor da vida e nas respostas que a consciência de cada um tem para oferecer.

NA3 – Maurício Mattos Puls, “Arquitetura e Filosofia”, Centro de Documentação e Informação Polis Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Socias, Annablume, São Paulo, 2006, pg 523.

NA4 – Jean Baudrillard, artigo “Verdade ou Radicalidade na Arquitetura”, tradução de Haifa Yazigi Sabbag, Revista AU, 84, ed. PINI, São Paulo, 1999, pgs 49-50.

 


* Carlos Krebs é arquiteto, cinéfilo, explorador de sinapses, conector de pontinhos, e mais um que acredita que o Brasil ainda tem tudo para dar certo.

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