Qualquer lugar deveria ser um Jardim de Rosas

Por Carlos Krebs*, para o Duplo Expresso

No último texto publicado procurei fazer um pequeno paralelo entre políticas habitacionais implementadas no mesmo ano de 1964 na Suécia (Miljonprogrammet – Programa do Milhão) e no Brasil (BNH/SFH – Banco Nacional de Habitação / Sistema Financeiro de Habitação). Usei dois conjuntos habitacionais daquela época para isso: o distrito de Rosengård, em Malmö (SWE) e o bairro Cidade 2000, em Fortaleza (BRA). Hoje vamos retroceder um pouco mais no tempo para poder avançar mais adiante…

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Nos países europeus que experimentaram um rápido processo de industrialização, levando das áreas rurais para as cidades um grande contingente populacional, houve um “vácuo regulatório” nas questões referentes aos direitos humanos. Principalmente na questão da moradia. A habitação dividia-se entre a oferta das companhias privadas, o interesse dos proprietários de fábricas ou a ação de filantropos. Países com o forte hábito do compromisso social e religioso deram o passo inicial para que fundações tomassem a frente na realização destas construções. A organização de como as pessoas viveriam dava-se em torno do núcleo habitacional.

Mas a combinação entre injustiças e discriminações com as pessoas, a saúde dos trabalhadores e a propagação de doenças contagiosas (que sempre ultrapassavam os limites entre as versões suja e limpa da mesma cidade) oportunizaram a criação de sistemas regulatórios para as moradias. Foi o caso da Holanda, por exemplo, com o Woningwet em 1901, país que ainda hoje conta com 35% dos seus aluguéis voltados para “moradia social”. Isso permitiu diferentes visões de como organizar as relações entre as forças de trabalho e o capital em um arranjo produtivo e rentável. Muitas formas de “como morar” surgiram ou foram experimentadas, embora sempre em quantidade insuficiente para impedir que as pessoas da classe trabalhadora vivessem em condições pouco mais que precárias ou marginalizadas.

No Brasil, a industrialização nem chegara ainda, mas as principais cidades do país entravam no século XX carregando o passivo oriundo de um regime escravocrata. Enquanto a Europa tentava regular o parcelamento e uso do solo urbano, nosso país vivia sob a égide da Lei das Terras (1850), estabelecida durante o segundo Império para favorecer os grandes proprietários e manter a concentração da propriedade nas mãos de poucos.

Isto repetia-se nas cidades, onde apenas no período do Estado Novo de Getúlio Vargas iniciou-se uma alteração. Com a reestruturação das caixas previdenciárias de algumas categorias profissionais, a extensão das garantias trabalhistas e a expansão da atuação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) para as áreas da alimentação, saúde e habitação, as primeiras ações concretas de implementação de conjuntos residenciais apareceram.

Imagem 1 e 2 “Tipologias na Vila do IAPI” por © Alberto Xavier e Ivan Mizouguchi (1987), imagem 3 “Vista Aérea da Vila do IAPI” por © Almanaque Gaúcho (sem data) | projeto original Arq. José Otacílio Saboia Ribeiro e projeto final Engº Marcos Kruter, Porto Alegre (1942-1954), e imagens 4 e 5 “Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes (Pedregulho)” | projeto Arq. Affonso Eduardo Reidy, Rio de Janeiro (1947-1958)

Entre vários exemplos de implementação de conjuntos residenciais no país, apresento dois: a Vila do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários – IAPI, em Porto Alegre, e o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes – Pedregulho, no Rio de Janeiro.

No conjunto de Porto Alegre, o projeto foi gestado no Rio de Janeiro pelo Arq. José Otacílio Saboia Ribeiro (NA2), e posteriormente “regionalizado” pelos engenheiros Edmundo Gardolinski e Marcus Kruter. Diferente de outros projetos construídos no país, a versão habitacional gaúcha era bem mais conservadora que o padrão modernista largamente empregado em outros estados. A Vila do IAPI estava muito mais próxima dos bairros-jardim ingleses, ou da proposta de cidade-jardim de Ebenezer Howard.

Apesar de praticamente descartada pela corrente hegemônica na crítica arquitetônica do país, o sucesso do empreendimento foi visível. Isso ocorreu pela facilidade em ser aceito pela população que o ocupou (e que se identificava com sua tipologia), por sua integração ao sistema viário desde a época da inauguração, e sua capacidade de resiliência em relação ao crescimento observado naquela região da cidade. Projetado inicialmente com 1.625 unidades, foi reinaugurado por Vargas com 2.533, em 1954.

Já no Rio de Janeiro, o projeto do Pedregulho concebido pelo arquiteto Affonso Reidy no bairro operário carioca de São Cristóvão, correspondia a vanguarda do pensamento arquitetônico e urbanístico defendido pelos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAMs. Plasticamente perfeitos, os prédios deste conjunto eram ajustados à geografia do lugar e apresentavam uma sofisticação na solução de seus detalhes. Projetado inicialmente para abrigar 570 famílias, o projeto ficou incompleto e ofereceu apenas 328 unidades aos funcionários do então Distrito Federal.

Infelizmente, o déficit habitacional brasileiro sempre forçou que se buscasse o caminho das respostas rápidas, tentando construir mais em menos tempo. Os dois exemplos acima, preocupados em encontrar soluções apropriadas para uma realidade e um momento, só puderam ser replicadas parcialmente em outras décadas. Voltando ao presente, vamos observar brevemente três empreendimentos que poderiam indicar-nos uma direção do que perseguir no Brasil, ou o que poderia constar na pauta de reinvindicações da habitação de interesse social.

Imagem 1 “Torre Plaça Europa” por © Jordi Surroca | projeto Arqs. Roldan + Berengué, Barcelona, SPA (2005), imagens e projeto 2 e 3 “Willhavana” por © Arq. Iwo Borkowicz (POL), Havana, CUB (2016), e imagens 4 e 5 “Habitação Monterrey” por © Ramiro Ramirez | projeto Arq. Alejandro Aravena (CHI), Santa Catarina, MEX (2010)

Torre Plaça Europa | R + B (SPA) O prédio (imagem 1) de 75 unidades encomendado pela INCASÒL através de concurso público vencido pelo escritório dos hispânicos Roldan e Berengué em 2005, apresenta características no objeto arquitetônico que poderiam ser replicadas em outras situações, tornando viável que se construa mais com a mesma quantidade de recursos:

1. Bloco com dois planos de fachadas e ventilação cruzada;

2. Medidas incorporadas de redução de custos de construção com adoção de produtos naturais e reciclados (85%) e recicláveis (100%);

3. Redução do uso de energia

4. Sistema de fachada pré-industrializado

5. Uso de materiais simples empregados de forma inusitada;

6. Uso de fachada ventilada com eliminação de pontes térmicas.

 

Habitação Monterrey – ELEMENTAL (MEX) Conjunto residencial (imagens 4 e 5) com 70 unidades no México, projetado em 2010 pelo escritório do arquiteto chileno Alejandro Aravena, vencedor do prêmio Pritzker em 2016. Alguns quesitos extremamente interessantes:

1. O poder público entrega ao futuros proprietários a parte “dura” da obra em 40m2 – banheiros, cozinha, escada e paredes de sustentação;

2. Os futuros proprietários poderão customizar e concluir como quiserem de acordo com seu tipo – até 58m2 ou nos duplex, até 76m2;

3. O projeto é de domínio público, assim como outros três disponibilizados pelo escritório, e qualquer pessoa pode utilizar livremente tanto o projeto executado quanto todos os seus detalhes construtivos.

 

Willavana – Iwo Borkowicz (POL) Projeto desenvolvido por este polonês – vencedor do Prêmio Jovem Talento Arquitetônico 2016 por seu trabalho de mestrado em uma universidade belga, com um projeto no setor da Havana Vieja, em Cuba. Assim como em qualquer empreendimento no mundo real, este arquiteto apresenta a viabilidade do negócio antes de apresentar soluções arquitetônicas. Aliás, neste caso, os cinco protótipos apresentados não interessam quanto à materialidade que normalmente pensamos na construção. Seus pontos inovadores:

1. Aborda a questão do déficit habitacional de praticamente 10% da população da ilha caribenha vinculando a uma causa, não como consequência;

2. Enxerga em outro problema – a falta de infraestrutura hoteleira – a solução para a moradia;

3. Extrapola a possibilidade de que os habitantes hoje possuem de locar quartos aos turistas, e com isso oferece uma real capacidade de recuperação e ampliação de prédios históricos degradados.

“Visão Geral da Implantação Alternativa” – Residencial Aneyde Beiriz por © Arq. Marco Suassuna (2011), baseado no projeto desenvolvido pela Secretaria Municipal de Habitação de João Pessoa (2010-2012) como a primeira obra do PMCMV no estado da Paraíba

Olhando para o Brasil, é difícil achar que neste momento em que tantos direitos adquiridos estejam em questionamento, possamos pensar em política habitacional. Mas eu afirmo que ela é essencial! E não estou pensando sozinho.

O arquiteto Marco Suassuna recebeu menção honrosa na X edição do prêmio Jovens Profissionais em 2011 com sua crítica ao primeiro condomínio doPrograma Minha Casa Minha Vida – PMCMV na Paraíba, em João Pessoa. Ainda em execução, ele ofereceu uma dura reflexão não somente à qualidade do projeto oferecido pela Secretaria Municipal de Habitação, mas ao programa como replicador edificações com baixa qualidade arquitetônica, má localização, com baixo aproveitamento do solo e alto custo agregado de infraestrutura (excesso de arruamento para veículos e extensão da rede de serviços). Para as 584 unidades do projeto entregues em 2012, ele reprojetou o conjunto com 824 unidades, 60 boxes de comércio local, espaços de convivência e oferta de serviços fundamentais para quem viveria ali (tão distante do centro) não poderia abrir mão.

Após um hiato na produção de habitação de interesse social no país entre o fim do BNH em 1986 e a implantação do Ministério das Cidades em 2003, a questão da moradia novamente foi inserida na agenda política do país, mas com consequências bastante previsíveis para urbanistas e planejadores.

Mas antes de ser uma política habitacional, o PMCMV serviu como um modelo de negócio onde definem-se as condições econômicas que viabilizam determinado projeto. As atribuições de cada uma das partes são claras: O governo federal oferece o recurso financeiro a baixo custo e um leque de isenções tributárias; o governo municipal diminui o valor imobiliário e, por consequência, o IPTU da área; o setor privado procura estas glebas de terra para desenvolver projetos e negocia diretamente com as administrações municipais; e o agente financeiro (também do governo federal, através da CEF, ou conveniado a ela) procede a análise técnico-financeira destes projetos, e libera os recursos de acordo com aquilo que os bancos entendem por “boas práticas.

Como modelo de negócio voltado a aquecer a economia, foi uma jogada sensacional. Lembremos que o “mercado” estava muito assustado com a crise provocada pela bolha americana em 2008, justamente no setor imobiliário. Mas as unidades habitacionais foram planejadas como estatística, não como lugar. Como lugar, na minha opinião, seria interessante pensar no tripé equivalente entre a cidade criativa, a cidade verde e a cidade para as pessoas.

A cidade criativa é aquela em que o desenvolvimento urbano é planejado e fiscalizado pelo poder público, e não por quem obtém lucro com a transmissão da propriedade. Não que ele seja indesejável, mas ele deve atuar como aplicador da política pública, não o condutor dela. Os objetivos desta cidade seriam:

A. Criação de ambiente viável para a diversidade das atividades econômicas;

B. Associar o desenvolvimento esparso de atividades comercial e produtiva, associadas às áreas residenciais de forma a diminuir as distâncias trabalho-casa;

C. Potencializar recursos de forma a que a cidade não só produza produtos, mas também seja capaz de desenvolver conhecimento e servir como polo de sustentação para quem nela vive.

A cidade verde é aquela em que se alinha como prioritária a manutenção e conservação do ambiente natural, de forma que este seja usufruído pelos habitantes amparados pela economia – o inverso do que normalmente se assiste. Como objetivos, nesta cidade observaríamos:

A. Estímulo da criação de uma qualidade ambiental em que as pessoas (e não o poder público) tomem para si a defesa de seu ecossistema, cuidando do solo, da água e ar com base em seu interesse de preservação;

B. Uso racional do parcelamento do solo de forma a otimizar os recursos naturais, o uso energético, a densidade e ocupações, ao invés de seguir um modelo numérico padrão de índices que servem apenas ao patrimonialismo;

C. Estabelecer planos e critérios simples para o desenvolvimento econômico das regiões urbanas sempre qualificando o espaço público e o ambiente natural, planejando de forma integrada infraestrutura, serviços, transporte e ocupação.

A cidade para as pessoas, aquela onde a rua é o principal espaço público, onde a cidade acontece e por onde se encontra a identificação do eu e do nosso. Nesta cidade, os objetivos são mais próximos ao que teríamos de direito:

A. Qualidade do ambiente construído, onde a Arquitetura e a Engenharia se abraçam ao Design em um esforço conjunto, nunca em carreiras-solo;

B. Preservação da memória urbana e da história do lugar para proporcionar empatia e identificação;

C. Escala de construção, onde a altura dos prédios proporcione a sensação de conforto para quem circula, não de opressão e sombra;

D. Casa para qualquer um!

 

Precisamos pensar que nossa necessidade de habitar não é incomum, não é única, não é extraordinária. A minha e a sua necessidade habitam o mesmo lugar de troca que a do cidadão do outro lado da rua. Aquela lá, que ali não tem roupa, mais além nem comida ou teto. Enquanto ele – mesmo lá longe – não for sequer um dado estatístico. As pessoas não são os tijolinhos que se empilham… Porque nas cidades de verdade, pessoas não se contam; pessoas encontram-se! Qualquer dia desses, a gente se vê ao vivo, à cores e abraços.

 


* Carlos Krebs é arquiteto, cinéfilo, explorador de sinapses, conector de pontinhos, e mais um que acredita que o Brasil ainda tem tudo para dar certo.

 

 

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