Haddad é a última pá de cal no PT

Por Mário Maestri

Em 1979, o Brasil era estremecido por avassalador movimento grevista, dirigido pelas oposições sindicais e pelos sindicalistas autênticos. A vaga grevista foi, em grande parte, um movimento expontâneo. No norte do RS, camponeses retomavam a luta pela terra. Metalúrgicos, bancários, professores, vigilantes, construção civil etc. exigiam a reposição salarial de seus salários depreciados pela inflação. Em geral, obtiveram poucos ganhos e foram duramente reprimidos. O Milagre Econômico ficara para trás e o país mergulhava na crise econômica. Porém, a maré grevista ensejou enorme vitória política, consolidando a consciência da vanguarda operária da necessidade de construir partido anti-capitalista e central classista. A seguir, nasceriam o PT, CUT, MST sob a liderança das direções daqueles duros combates – Lula da Silva, Olívio Dutra, Pedro Stédile, etc.
Atualmente, há quarenta anos daquele Ano Vermelho, os capas-pretas petistas pedem a cabeça de Gleisi Hoffman, propondo elevar o acadêmico Fernando Haddad à presidência do PT no congresso de novembro. Os mastodontes petistas – Washington Quaquá, Jaques Wagner, Tarso Genro – reclamam que a deputada federal fala sobretudo para a militância petista, procurando alianças com os partidos ditos – com boa vontade – de esquerda e centro-esquerda – PC do B, PSOL, PDT, Rede. Os sectários de Haddad sonham com alianças que perscrutem os extremos mais obscuros do arco-íris eleitoral e social. A pressa para conquistar o controle do aparato partidário se deve às eleições municipais de outubro de 2020. Gleise tem por ela sobretudo Lula da Silva, o ás petista, cada vez mais fora do baralho. O MST anda encolhido. A Articulação de Esquerda, que ninguém sabe onde se meteu.
Há diferenças apenas de quantidade entre o paulista e a paranaense. E Lula da Silva apoia Gleisi concordando com as propostas de alianças pragmáticas, sem bússola e fronteiras. Há muito que essa é sua orientação. E, como todos os esdrúxulos apoiadores de Haddad, não aprendeu nada ao se engolfar nos mares da defesa do grande capital, que lhe passou enorme rasteira, apesar dos bons serviços que lhe prestou. Ele, Haddad e a cáfila de dirigentes petistas, cutistas e associados temem o povo na rua, atirando pela janela as lideranças e as classes que eles sempre cortejaram. Assustam-se com novos Anos Vermelhos, transbordando o ódio profundo de um povo humilhado como jamais.
Lula sabe que o time de Haddad manobra para uma refundação petista que rompa com as próprias lembranças já esmorecidas – foi o que sobrou – das lutas, idéias e programas simpáticos ao anti-capitalismo e classismo das origens do PT e da CUT. Não que o projeto de refundação lhe desagrade. Foi ele que o impulsionou, a partir dos anos 1990, desde as alturas do “Instituto Cidadania”, o clube particular de Lula, de onde manobrava despreocupado com a direção do PT, propondo programas e alianças, em contubérnio sobretudo com os mandões da política e do capital.

Atirando Lula ao Mar
A discordância é que o capital e o imperialismo exigem, para referendar esse projeto, a liquidação de Lula como direção política. Exigência à qual Haddad e sua troupe se submeteram com obediência canina antes e quando das eleições de 2018. Haddad visitou o general cadeirante, ministro do Exército, organizador-mor do golpe. Ungido como candidato, propôs que não anistiaria Lula; elogiou Joaquim Barbosa, do Mensalão; pediu a bênção a Sérgio Moro, da Lava Jato; cortejou Ciro, FHC e a cáfila de conservadores excelentes; reconheceu a legalidade das eleições farsescas e desejou, acredite quem quiser, bom governo a Bolsonaro. A participação nas eleições fraudadas serviu para desviar a população da luta contra o golpe e santificar Haddad, intelectual inodoro, o “mais tucano dos petistas”, como direção da oposição, ao lado de sua jovem estepe esquerdista, Boulos, caído de para-quedas no PSOL, igualmente pasteurizado e desnatado.
Haddad, Boulos, Gleisi, Lula, Wagner Freitas, presidente da CUT -o “homem invisível da Central fantasma”- e as direções petistas, com raras excessões, mantém o bom comportamento exigido pelos golpistas, ao propor e comandar o abandono da luta contra o golpe nas ruas, em favor da eterna encenação parlamentar. Arena institucional onde a oposição com vocação a “chapa branca” acaba de receber, sem muxoxos, surra histórica, quando da primeira votação da destruição da Previdência. Reforma que, aquelas lideranças, é bom não esquecer, quando no governo federal, promoveram e prometeram radicalizar, apenas em forma menos desatinada.
Lideranças de oposição que gritam e esbravejam contra Bolsonaro, filhos e ministros. Mas se negam a chamar a luta pelo “Fora Bolsonaro e Mourão, Eleições diretas e limpas, já”! Tudo para se qualificarem, junto ao golpismo, como oposição permitida na nova institucionalização conservadora e militarizada. Não rejeitam, se for o caso, após reformas políticas, confluir em um grande partido de oposição de “faz de conta”, ao igual do comportado MDB dos anos ditatoriais. Partido que, no frigir dos ovos, se manteve se sempre na “oposição” permitida e querida pela ditadura.
Nas entrevistas dadas desde a prisão, Lula exige ter sua inocência reconhecida pela Justiça … que organizou o seu julgamento carnavalesco! Esquece que é reconhecido mundialmente como prisioneiro político. Propõe como caminho para a retomada da economia as receitas de seus governos, quando a economia mundial bombeava. Iniciativas que contribuíram para o descalabro em que vivemos hoje. Jamais chamou os trabalhadores a lutarem para retomar sem complexos o que perderam, com juros bancários, botando por terra o governo e o sistema golpista. Jamais pediu que repetissem as grandes jornadas de 1979, que impuseram o início da retirada à ditadura militar.

Lula na Prisão, o Bloco Eleitoral na Rua
“Lulinha paz e amor” não pode despir-se de sua natureza profunda, colaboracionista e pró-capitalista. Vargas deu-se um tiro no coração para não chamar o povo às ruas e vê-lo exigindo o que não pretendia e não lhe podia dar, como líder burguês industrial. Lula conta para sair da prisão com os acordos na Justiça e no Parlamento, com a pressão de intelectuais, artistas, comunicadores, etc. Não vê que a justificativa do golpe foi o combate à corrupção petista, da qual ele seria o grande arquiteto. Reconhecer sua inocência e o julgamento frajuto seria negação da narrativa originária da nova ordem ditatorial em institucionalização.
Manter Lula preso é demonstração de poder do golpismo e de submissão das lideranças da oposição colaboracionista, que não movem um dedo para libertá-lo. Fora o MST, sob ataque, e o pequenino PCO, poucos mais se mobilizam pela liberdade do velho sindicalista que acreditou, ao se sentar com os poderosos, que fora acolhido por eles. O fato de se manter saudável, lúcido, ágil, envergonhando em cada entrevista ao capitão troca-letras desmiolado, incapaz de articular frase com sujeito, verbo e predicado, contribui para que sequer receba o direito de prisão domiciliar.
Para Haddad e seus iguais, Lula na prisão é o instrumento simbólico da rejeição de um passado que já não mais existe. E, solto, afastaria para um segundo plano os hoje encastelados na direção do PT e da oposição. Ainda que sua soltura pouco modificasse a orientação colaboradora. Agora, as eleições de 2020, 2022, et passim são a obsessão fixa da oposição, pouco lhe importando que a população seja massacrada e o país arrasado, se avança o espetáculo eleitoral mambembe. O fundamental é salvar os aparatos partidários, as candidaturas, as investiduras eleitorais e administrativas, fontes de polpudas remunerações simbólicas, sociais, econômicas. A vida passa rápido e temos que aproveitá-la como se nos apresenta.
Há muito o PT passou de solução a parte do problema. Não foi a causa, mas é imensa sua responsabilidade na desorganização do movimento social e desarrumação da consciência dos trabalhadores. Prestou no governo e presta agora na oposição de “faz de conta” excelentes serviços aos donos das riquezas e do poder. Com razão Lula disse que em seu governo os ricos lucraram como nunca. E os trabalhadores, sequer as 40 horas de trabalho semanal receberam! Haddad é apenas a última pá de cal em um corpo que há décadas perdeu a força e vida que nele um dia pulsou. Haddad na presidência do PT não é um salto de qualidade na decomposição petista, mas apenas um pequeno avanço em processo há muito encetado. Uma cambalhota final do palhaço, de riso forçado, antes que caiam as cortinas do circo.

Quinta-Colunas
Não há salvação fora da luta dura para derrubar o governo e o regime em consolidação. Para tal, a vanguarda e o movimento social devem passar por cima das políticas colaboracionistas e seus dirigentes. Trata-se de luta de longo fôlego, em que é necessário plantar agora para colher nessa e nas próximas safras. Os parlamentares e burocratas petista e associados vão seguir empurrando com a barriga a luta contra conclusão da destruição da Previdência. Para salvarem a cara, farão algumas mobilizações, sem muito alarde e organização. E para garantirem suas biografias e carreiras, farão discursos furibundos e inócuos no parlamento, rebatidos aos milhares em posts na internet. A caravana golpista seguirá tranquila, enquanto os gordos parlamentares oposicionistas se manterão ladrando em uníssono.
Os colaboracionistas infiltrados na oposição se comportarão do mesmo modo quando das reformas fiscal e política. Esperam retornar a uma maior integração à administração do Estado, seja ele qual for, e ao aumento das benesses correspondentes, é lógico, após o ataque geral do grande capital vergar os trabalhadores, despir de real poder as instâncias política, aniquilar a nação. Já hoje, nos estados que governam, o petismo quinta-coluna e associados apoiam, radicalizam e antecipam as políticas golpistas – reivindicam extensão aos estados da destruição da Previdência; aplicam as PPP; arroxam os funcionários; etc. Rui Costa, governador petista da Bahia, propôs que o pagamento nas universidades públicas não deva ser tabu, logo após os grandes protestos de maio contra a destruição do ensino público.
As eleições de 2020 serão o próximo grande embate político. Faltando quatorze meses para elas, os infinitos profissionais do parlamento e dos cargos administrativos já excitam a população com o delírio da conquista das grandes capitais e de milhares de prefeitos e parlamentares, como o grande objetivo da oposição. Operação que exige, dizem, as mais largas alianças, com os programas mais estreitos, reduzidos às questões locais e municipais. E isso em eleições certamente ainda mais sujas e manipuladas do que as de 2018. A atual ação inócua – quando não deletéria – dos governadores, prefeitos, senadores, deputados e vereadores da chamada oposição, comprova já a inconsistência desse recurso como forma de luta contra a maré avassaladora golpista. Mas não é melhor com eles, do que sem eles? Não seria o cretinismo eleitoral sem travas e sem programa o únicos caminho, quando a oposição está tão fraca? Muitos cínicos e manipuladores propõem que, nesse momento, a única alternativa é o desbunde parlamentar ou a luta armada desesperada e sem destino.

Como Votar, como Não Votar
No contexto da enorme demagogia eleitoreira e da fragilidade política e orgânica da oposição, a grande questão atual não é ser a favor ou contra as eleições. Trata-se de como votar e como não votar no próximo pleito. As eleições são cordas que no geral enforcam os condenados. Elas podem porém, o que é mais difícil, mas não impossível, servir para atar as mãos dos algozes, nem que seja por pouco tempo. Temos que fazer portanto das tripas coração. Ou seja, servir-se dessa armadilha das classes dominantes para fortalecer a luta por melhores condições de vida e avançar a emancipação dos explorados. E não dar mais corda aos verdugos dos trabalhadores e da população em geral.
As próximas eleições devem servir para denunciar os responsáveis pelas terríveis condições de vida da população e lembrar que, sem abatê-los, não há salvação, mesmo parcial, para os ofendidos. Deve ser momento para chamar e organizar a luta contra o segundo governo golpista e a ordem ditatorial em construção, nas escolas, fábricas, associações, campos e quartéis. Deve ser o momento de organização das forças populares, em torno de um programa concreto, que tenha como mira sua emancipação social e política, no aqui, no agora, no após.
A agitação eleitoral deve propor que o parlamento é um caminho sem saída, eterna partida de cartas marcadas, nas quais os poderosos sempre se arranjam para vencer, ainda mais agora. Não deve deixar espaço para as ilusões e esperanças de salvação através do jogo eleitoral e parlamentar, que só engorda os ricos e os eleitos, da situação e oposição. Devemos impulsionar as eventuais candidaturas combatentes que exijam o “Fora Bolsonaro, Fora Mourão, Eleições Gerais sem farsa já!” e a liberdade imediata e incondicional de Lula da Silva e dos presos políticos do golpismo.
As candidaturas pretensamente de oposição, com programa reduzido às questões locais, em torno de alianças espúrias, apontando como objetivo eleger um vereador ou um prefeito, deixando todo o demais para depois, para 2022, devem ser rejeitadas. Sem a denúncia do golpe, sem a exigência de seu fim imediato e da liberdade dos presos políticos, elas devem ser denunciadas e sofrerem o boicote eleitoral e político através do voto nulo, por constituírem verdadeiras “quinta colunas” eleitorais do golpismo.

Mário Maestri, 71, historiador, é autor de Revolução e contra: revolução no Brasil. 1530-2018. https://clubedeautores.com.br/livro/revolucao-e-contra-revolucao-no-brasil#.XW2RdS3Oogt

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