A queda dum Anjo – A súbita mudança de Bento Albuquerque
Por Felipe Maruf Quintas
Em outubro de 2017, o atual Ministro de Minas e Energia, o almirante de esquadra Bento Costa Lima Leite de Albuquerque Junior – então diretor-geral de Desenvolvimento Nuclear e Tecnológico da Marinha – concedeu entrevista à revista Carta Capital[1]. O assunto era o Programa de Desenvolvimento de Submarinos da Marinha do Brasil (Prosub), do qual o principal empreendimento era a construção do submarino nuclear.
Na ocasião, Bento Albuquerque defendeu o Prosub como forma de ampliar o poder de dissuasão brasileiro, resguardando a independência e a soberania nacionais ante os dois blocos geopolíticos identificados: o estadunidense-europeu e o russo-chinês. Ele, muito corretamente, desenhou uma relação entre soberania nacional e desenvolvimento tecnológico autônomo.
Segundo o Almirante, em razão da diversidade e variedade dos recursos naturais do Brasil, em particular o pré-sal, nosso País poderia sofrer alguma ingerência estrangeira que prejudicasse a exploração desses recursos. Defendia que o Brasil tivesse poder naval, incluindo o submarino nuclear, para defender o pré-sal da cobiça externa e das interferências estrangeiras. Também alertava, corretamente, para os riscos da guerra cibernética e do terrorismo para a defesa do País.
Mesmo considerando, equivocadamente, a questão da nacionalização dos recursos como meramente econômica, e esquivando-se de uma posição firme sobre o assunto, o que transparece na entrevista concedida era a visão, em essência, nacionalista. A posição de Bento Albuquerque valorizava a liderança do Estado no desenvolvimento tecnológico a serviço da promoção da defesa e da segurança nacionais.
Contudo, enquanto Ministro de Minas e Energia, sua prática tem se mostrado contraditória ao que ele anteriormente defendia. O zelo estatal proposto por ele, há cerca de dois anos, contrasta com a abertura do pré-sal às corporações estrangeiras, tanto para o bloco estadunidense-europeu quanto o russo-chinês. A Rodada de Licitações dos Excedentes da Cessão Onerosa, ocorrida no dia 6 de novembro de 2019, evidencia que o pré-sal, para esses atores, não passa de mais uma mercadoria, uma commodity, sem qualquer atributo especial que lhe confira caráter estratégico e que justifique um programa governamental de construção de submarinos nucleares para protegê-lo.
Mais ainda, Bento Albuquerque defendeu, no dia seguinte ao leilão, que o marco regulatório seja alterado para acabar com a preferência dada à Petrobrás nos leilões, a fim de atrair mais empresas estrangeiras. Se o objetivo é entregar o pré-sal e os seus campos de exploração às corporações estrangeiras, qual a serventia de um programa naval de defesa? Defender e proteger o que, se o próprio Estado renuncia ao controle sobre as riquezas naturais do País? Bento Albuquerque agora avaliza o que, em outubro de 2017, ele chamava de “interferência econômica na exploração dos nossos recursos”.
Como o petróleo é um recurso natural altamente estratégico (de acordo com o próprio ministro há dois anos) que demanda grande escala de produção, nas sucessivas fases da sua indústria, todas as corporações são ligadas, direta ou indiretamente, ao Estado dos seus respectivos países-matriz. O complexo industrial petroleiro no mundo, seja pertencente ao bloco estadunidense-europeu, seja ao russo-chinês, tem fortes vinculações com o Estado. Para o Brasil “ter condições de preservar seus interesses e suas rotas comerciais, independentemente dos blocos geopolíticos”, como afirmou Bento Albuquerque na entrevista, é indispensável fortalecer a Petrobrás, enquanto empresa estatal de energia, e garantir o controle da empresa e, portanto, do Estado, sobre o pré-sal, a fim de que seja industrializado e transportado internamente, alavancando o desenvolvimento nacional. Isto é o contrário do que o ministro defende hoje.
Mas ainda não é tudo. Bento Albuquerque também defende o encerramento das atividades da Petrobrás na região Nordeste e do setor de refino da empresa em todas as regiões, exceto a Sudeste[2]. Essa decisão impacta negativamente na capacidade produtiva e tecnológica nacional, desmembrando inteiras cadeias produtivas e de serviços de alto valor agregado. Prejudica o potencial autóctone de desenvolver projetos como o do submarino nuclear. Bento Albuquerque, que em 2017 defendia a importância da tecnologia e do desenvolvimento para assegurar a independência nacional, hoje colabora justamente para a aniquilação dessa independência.
Esse desmantelamento também impõe um desperdício de divisas, orientando-as para o exterior na compra em dólares de derivados de petróleo, em vez de investi-los internamente na ampliação do parque de refino e das redes de distribuição. O Brasil torna-se não só mais pobre, como menos soberano e mais vulnerável às ingerências estrangeiras e às oscilações internacionais do preço dos derivados, determinado por grandes oligopólios, fora do raio de decisão da soberania nacional e popular brasileira.
A mudança súbita de posicionamento do atual ministro faz lembrar, por analogia, a personagem Calisto, protagonista do romance português “A Queda dum Anjo”, de Camilo Castelo Branco. Inicialmente provinciano e conservador inveterado, o angelical Calisto, ao mudar-se das serras portuguesas para Lisboa, vivencia uma “queda” e torna-se cosmopolita e liberal. Da mesma forma, Bento Albuquerque, outrora, em larga medida, nacionalista, ao assumir o Ministério de Minas e Energia no governo Bolsonaro, “cai” e passa a defender interesses antinacionais.
Felipe Maruf Quintas, doutorando em Ciência Política, especial para a AEPET.
Texto publicado originalmente na AEPET, em 09 de janeiro.
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