Preparando o Estado para Soberania – Uma Questão Psicossocial: A religião
Por Felipe Quintas, Gustavo Galvão e Pedro Augusto Pinho
Pergunta o sociólogo Reginaldo Prandi: “Haverá lugar para uma religião uniformizada e consumível por todos os cidadãos do mundo, como o hambúrguer do McDonald’s, símbolo fabuloso do planeta global?”, (A Religião do Planeta Global, in Ari Pedro Oro e Carlos Alberto Steil (orgs.), Globalização e Religião, Editora Vozes, 1999, 2ª edição).
O mundo conheceu religiões com objetivos locais, regionais e universais. Também religiões ligadas a economias e isoladas dos sistemas econômicos. Max Weber, dos grandes pensadores ocidentais, dedicou parte de seus estudos às grandes religiões e suas ações econômicas ou vinculações com modelos econômicos.
Weber afirma que “nenhuma ética econômica foi determinada apenas pela religião”. Mas “toda ética religiosa contém uma boa dose de legalidade própria, que, por sua vez, depende em alto grau de condições de caráter histórico e geográfico-econômico” (Ética Econômica das Religiões Mundiais, volume 1 – Confucionismo e taoismo, tradução da Introdução e Consideração intermediária por Antonio Luz Costa, Editora Vozes, Petrópolis, 2016).
Ainda na obra referida, Max Weber consigna uma importante conclusão: a orientação religiosa para condução da vida é um dos fatores determinantes da ética econômica.
A primeira descrição sobre a religião dos brasileiros que conhecemos vem de Antonio Pigafetta (1491-1534), italiano que acompanhou a viagem de Fernão de Magalhães (A Primeira Viagem ao Redor do Mundo, tradução de Jurandir Soares dos Santos, L&PM Editores, Porto Alegre, 1985), onde se lê:
“13 de dezembro (1519) – entramos em um porto (Rio de Janeiro) no dia de Santa Lúcia. Os brasileiros não são cristãos, porém, tampouco são idólatras, porque não adoram nada. O instinto natural é a única lei. Andam completamente nus, tanto homens como as mulheres. Estes povos são extremamentes crédulos e bons e seria extremamente fácil convertê-los ao cristianismo. A casualidade fez com que dispensassem a nós veneração e respeito. Há dois meses fazia uma grande seca no país e justo com a nossa chegada o céu se desatou em chuva. Eles atribuíram isto à nossa presença”.
Na mesma obra, a religião de habitantes da Patagônia é assim descrita:
“Parece que sua religião se limita à adoração do diabo. Julgam que quando um deles está morrendo, aparecem dez ou doze demônios cantando e dançando ao seu redor” (19 de maio de 1520).
Podemos afirmar que o cristianismo foi a grande influência no psicossocial dos povos ocidentais e em grande parte do mundo, pelo efeito da colonização europeia. “Aqueles reis que foram dilatando a fé, o império e as terras viciosas andaram devastando”, não foram apenas os portugueses, cantados por Camões.
Eric Voegelin (Revolução e a Nova Ciência, volume VI da História das Ideias Políticas, tradução de Elpídio Mário Dantas Fonseca, É Realizações Editora, SP, 2017) entende que, de Joaquim de Fiore (1135-1202), italiano, abade cisterciense, defensor do advento da “idade do Espírito Santo”, até Martinho Lutero (1483-1546), alemão, professor de teologia, figura central da Reforma protestante, foi o tempo dos movimentos da consciência até o irrompimento dos movimentos de massa. “Período de incubação social” para ruptura das instituições medievais, criando uma pluralidade de igrejas e de estados soberanos.
Voegelin afirma: “a eliminação da igreja e do império como poderes públicos foi acompanhada de um crescimento de novas substância da comunidade que tendiam a tornar-se substitutivos da substância dissolvente da humanidade cristã. No interior dos estados nacionais soberanos, a intensidade da consciência nacional crescia notavelmente. A Revolução Inglesa do século XVII revelou pela primeira vez a força do novo paroquialismo demoníaco. Revelou tanto a fé na nação como o povo escolhido quanto a afirmação universalista de que a civilização nacional paroquial representa a Civilização numa escala maior”. E continua mostrando que não encontra, “antes de 1700 uma interpretação abrangente do homem na sociedade e na história que leve em consideração os fatores” que incluem:
a – o colapso da igreja como instituição universal da humanidade cristã;
b – a pluralidade de estados soberanos, como as unidades políticas últimas;
c – o descobrimento do Novo Mundo e a maior familiaridade com civilizações asiáticas;
d – a ideia de uma natureza não cristã do homem como o fundamento da especulação sobre direito e ética;
e – o demonismo das comunidades nacionais paroquiais; e
f – a ideia das paixões como forças motivadoras do homem.
Eric Voegelin ressalta o poder do “cosmion político, espiritual e civilizacional”, como o mito de sua universalidade, “dominando os sentimentos públicos por tanto tempo que a pluralidade de outros mundos” não conseguia se imprimir fortemente nas mentes. Mas, por outro lado, as mudanças nas relações de poder poderiam a qualquer ponto romper esta equilíbrio. O descobrimento das Américas, um conhecimento maior da China e da Índia foram o ponto de ruptura da universalidade medieval.
Uma das notáveis mudanças de nossa época é a velocidade nas transformações. Pela breve citação de Pigafetta e da análise de Voegelin vemos que as mudanças foram sendo construídas ao correr de séculos. Agora poucas décadas provocam novas condições psicossociais que resumimos na religião.
Da emergência das individualidades nacionais, com o fim da colonização política na África, na Ásia e na América, o mundo retorna a uma ideologia universal, global, do neoliberalismo e sua religião do deus mercado financeiro.
É o tempo que denominamos da banca, do sistema financeiro internacional.
Há uma nova classe que atua para a banca e tem, crescentemente, maior importância dentro dos Estados Nacionais. Esta nova classe, formada pelo sacerdotes, bispos, teólogos da banca, sempre busca as mais elevadas funções nos bancos centrais, nas secretarias da receita, do tesouro, nos ministérios da economia ou da fazenda, ou seja, onde se adotem decisões, ou se exerçam controle, gestão da moeda, dos tributos e de toda economia.
Robin Cohen (Global diasporas. An introduction, Routledge, Londres, 2008) ao descrever a nova classe surgida com as finanças globais tratou do “renascimento religioso”, ou seja, uma necessidade surgida da dispersão territorial, do abandono das relações familiares, de novos critérios de reputação e do sentido de transitoriedade das ocupações. As igrejas neopentecostais, com sua teologia da prosperidade, se candidatam a preencher este vazio da vida dos serviçais, operadores, agentes ou executivos internacionais da banca.
O Instituto Humanitas UNISINOS publicou, em 10/11/2013, sob o título Missão reversa. A diáspora das religiões brasileiras em Londres, entrevista com Olivia Sheringham, doutora em Geografia Humana pela Universidade Queen Mary, em Londres, e pesquisadora no Programa Diáspora da Universidade de Oxford, na Inglaterra,.
Afirma a pesquisadora: “Estima-se que hoje existam cerca de 90 igrejas protestantes, sobretudo pentecostais, em Londres. Isso inclui a Igreja Universal do Reino de Deus, que tem 16 templos na capital britânica. Há, ainda, a Assembleia de Deus e igrejas evangélicas menores, como o Ministério de Luz para os Povos. Algumas dessas igrejas têm vínculos com as igrejas no Brasil”. E, ainda, “o contexto da globalização dos meios de comunicação influenciou a globalização da religião. Isso teve um impacto no movimento dos credos ao redor do mundo”. “Por outro lado, a igreja evangélica onde trabalhei, em Londres, é parecida com outras igrejas evangélicas, que dão ênfase na universalidade do Reino de Deus, e não ao Brasil especificamente. Para essa religião, Cristo é mais global “(sic).
Como apontamos, igrejas neopentecostais têm mais facilidade para se tornar, com sua teologia da prosperidade e desvinculação de questões nacionais e culturais, a igreja da banca. Dando assim um refúgio espiritual, na contraprestação financeira, ao desenraizamento desta nova classe. Estas igrejas pentecostais cultuam o individualismo e o egoísmo da auto salvação pelo trabalho e por mérito exclusivamente individual, assim como defendia Adam Smith quando formalizou o liberalismo econômico.
Ao longo dos séculos, a espécie humana procurou ideias, processos, instrumentos que impusessem a outros humanos sua sujeição. Encontrou dois: a religião e a moeda, agora fundidas no sistema financeiro internacional: sob a forma de uma nova classe operadora e de como ocupar seu desarraigamento, de como preencher seu vazio existencial.
Deste modo não é difícil entender, por exemplo, que pastores sejam partidários do atual presidente do Brasil, que é um agente das imposições da banca, ou seja, adote ações administrativas e decisões políticas de interesse do sistema financeiro e dos evangélicos neopentecostais, que lhe estejam dando seus apoios.
Voltemos à diáspora escolhida por uma nova classe como seu modo de vida. Como fica evidente assumir comportamento e profissão, de vida agressiva aos padrões de relacionamento estabelecidos pelos grupos humanos por séculos ou milênios, ainda gera desconfortos de diversas ordens.
A religião que os abrigará e os confortará deve ter na riqueza, na concentração de renda, na ausência de padrão ético a ideologia que lhes apazigue. Também ser a avaliação máxima de uma existência compatível com o objetivo de lucro monetário permanente.
O controle das comunicações de massa foram das primeiras medidas da banca, ainda nos primórdios do século XX, quando partiu para enfrentar o industrialismo em geral e o estadunidense, em particular. Usou das emergentes questões ambientais e as elevou ao patamar de salvação da humanidade.
Para tal a banca foi constituindo/destruindo uma filosofia e um ideal de vida cada vez mais descolado de questões nacionais: hippies, maio de 1968 em Paris, barbas e cabelos compridos, Woodstock, ecologias, identitarismos (malgrado suas naturezas afirmativas) são fruto da comunicação de massa da banca ou a serviço da banca. E as drogas, que hoje fazem parte do poder mundial, o consumismo desenfreado, poluindo a vida e o planeta, também decorrem desta filosofia da banca. Se formos buscar os donos das maiores empresas de comunicação no planeta iremos encontrar empresas financeiras.
Muitas vezes esta qualificação – empresa financeira – não faz a pessoa imaginar do que está sendo tratado. Tomemos qualquer uma: BlackRock, Vanguard, Wellington, State Street, Fidelity ou a JP Morgan Asset Management, que foi recentemente flagrada transportando, em navio de sua propriedade, 20 toneladas de cocaína, avaliadas em um bilhão de dólares.
Estas empresas captam recursos por todo mundo, mas a maioria é proveniente de paraísos fiscais, que não se encontram apenas nas paradisíacas ilhas caribenhas. De acordo com a instituição internacional Tax Justice Network, pelo critério do volume depositado, os países que são considerados os maiores paraísos fiscais são: Suíça, Ilhas Cayman, Luxemburgo, Hong Kong, EUA (Dakota do Sul, Wyoming, Nevada e Delaware), Cingapura e Ilha Jersey, que é uma propriedade da Coroa Britânica.
As dez maiores empresas financeiras tem um volume de capital superior ao trilhâo de dólares, igualando-se ou superando os Produtos Internos Brutos (PIB) dos mais ricos Estados Nacionais. Seu poder destruidor é imenso.
A recente aprovação, por expressiva maioria, da contrarreforma da previdência social pública no Brasil sem que houvesse um movimento nacional de revolta é uma clara demonstração de que:
a – o Governo seguindo a linha do Ministro Paulo Guedes corrompeu grande parte dos parlamentares de todos os partidos;
b – não há oposição à banca no Brasil, pois sindicatos, partidos da oposição e associações profissionais apenas fizeram inúteis discursos para inertes agentes, moucos ouvidos. Nenhuma medida concreta de oposição foi sequer discutida;
c – a manutenção da cotação baixa do dólar pela ação do Banco Central indica que a situação econômica brasileira vai piorar muito, derrubando os preços de todos os ativos e facilitando sua compra por estrangeiros. Em junho de 2019 já houve enorme volume de evasão de capital. Agora que a reforma da previdência está praticamente aprovada, a bolha financeira já pode explodir; e
d – mais um passo é dado para estilhaçamento do Estado Nacional Brasileiro, que ficará mais endividado à banca, e onde ocorrerão novas ondas migratórias. Não nos surpreenderemos com movimentos separatistas, em especial isolando as áreas mais ricas do Brasil.
Boaventura de Souza Santos (Portugal Ensaio contra a Autoflagelação, Almedina, Coimbra, 2012, 2ª edição revista) escreve: “Quando a usurpação política por parte de uma econopolícia selvagem atinge os lugares sagrados da democracia, dos direitos humanos, do contrato social e do primado do direito, que até pouco serviam de santuário de peregrinação para os povos de todo mundo, a perturbação e o desassossego são o que resta de solidez. A grande incógnita é de saber até que ponto o empobrecimento do mundo e da democracia produzido pelo cassino financeiro vai continuar a ocorrer dentro do marco democrático, mesmo de baixa intensidade”.
Felipe Quintas, doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense
Gustavo Galvão, doutor em economia e autor de “As 21 lições das Finanças Funcionais e da Teoria do Dinheiro Moderno (MMT)”
Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado
(Publicado em 21/08/2019 no jornal Monitor Mercantil, pag. 2, Opinião)
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