A década de “novos” movimentos sociais no Brasil

Série: Emerge a “outra” esquerda nos anos 80

 

Do artigo “A corrente autonomista no Brasil e a classe operária: apontamentos críticos sobre a revisão do marxismo nos anos 1980”

 

De Angélica Lovatto*

Neste artigo, a autora analisa a corrente autonomista, que existiu no Brasil, ao longo da década de 1980, e tinha o objetivo de revisar o marxismo, especialmente na revista Desvios. Esta revisão crítica se deu a propósito do que, à época, ficou conhecido como a emergência de “novos” movimentos sociais. Dentre os principais participantes desta corrente, destacavam-se o sociólogo Eder Sader e a filósofa Marilena Chauí, cujas formulações, no período, serão privilegiadas aqui.

Este apresenta apontamentos críticos à análise de textos em que a filósofa Marilena Chauí empreendeu uma revisão do marxismo nos anos 1980, no Brasil, especialmente das formulações da corrente autonomista, onde figura com grande destaque o sociólogo Eder Sader. O espaço privilegiado para essa crítica teve espaço na Revista Desvios, que alcançou quatro números no início dos anos 1980, mas também em outros textos publicados naquela década por esses autores¹ . A crítica se deu a propósito do que, à época, ficou conhecido como a emergência de “novos” movimentos sociais.

O movimento de revisão do marxismo no Brasil nos anos 1980 seguia uma tendência surgida nas Ciências Sociais desde o fim dos anos 1960 e início dos anos 1970, que ficou mundialmente conhecida como “crise dos paradigmas”. Nesta leitura, que procuro refutar, o marxismo estaria ultrapassado, em função de “novas” manifestações dosfenômenossociais, que exigiriam um “novo” modelo analítico (Evangelista, 1992). Esta perspectiva de revisão e crítica anunciava o que foi denominado como uma “nova” esquerda que, por sua vez, estaria associada à derrocada da centralidade operária no processo revolucionário, em função da emergência de uma pluralidade de sujeitos políticos.

Defendo a hipótese de que, como corrente teórica, o autonomismo é um subproduto da chamada “onda crítica” que girou em torno da teoria do populismo na vertente elaborada pelo cientista político Francisco Weffort, cujo alvo central era a atuação do movimento operário-sindical do pré-1964. Embora a teoria do populismo não seja o centro da discussão deste artigo, demarco que o contexto da produção teórico-política desta vertente weffortiana constituiu-se no pano de fundo da corrente defendida por intelectuais então empolgados com os chamados “novos” movimentos sociais e sua suposta autonomia, nos anos 1980.

 

O movimento de revisão do marxismo e o autonomismo

Dentro do discurso das novidades na década de 1980, a perspectiva de revisão e crítica do marxismo no Brasil anunciava uma “nova esquerda” como resultado direto da crise do marxismo, ou seja, da derrota do pensamento político que considerava o trabalhador como sujeito do processo revolucionário. Portanto, o questionamento do ideário marxista como um todo, passava também pela revisão do projeto socialista. Argumentava-se que as rápidas transformações vividas pela sociedade moderna teriam levado à emergência de uma pluralidade de “novos sujeitos políticos”, “novos espaços sociais”, “novas práticas sociais” e “novas falas e representações sociais”, que haviam substituído “velhos” sujeitos sociais como, por exemplo, a classe operária. Haveria uma lacuna na teoria das classes sociais que o marxismo, em sua leitura tradicional, tinha dificuldade de preencher.

A “crise dos paradigmas” impunha uma nova compreensão do que se entendia por atores coletivos plurais. Os eventos mundiais do Maio de 1968 tinham trazido à tona a ideia da participação política das chamadas minorias. Para preencher o suposto vazio na teoria das classes sociais, seria necessária a apreensão de sua dimensão cultural, acrescentando a noção de “imaginário coletivo” à compreensão desses fenômenos pluridimensionais. Portanto, crise do marxismo e negação da centralidade do trabalho estariam umbilicalmente ligadas.

O Maio de 1968 trouxe um descontentamento no campo político-econômico do capitalismo avançado, especialmente nas manifestações de Paris, Berlim e Berkeley. Mas fundamentalmente colocava nua e cruamente o esgotamento do chamado socialismo real, principalmente em Praga, na então Checoslováquia. Toda a convulsão gerada a partir dessa “Primavera de Maio”, nos limites históricos em que se desenvolvia, levou quase inevitavelmente a uma agudização da chamada “crise do marxismo”. Como consequência, “o aparecimento de novos movimentos sociais(estudantil, feminista, homossexual, ecológico, pacifista, entre outros) deslocou, para segundo plano, o ‘velho’ movimento operário nas lutas por transformações sociais”. O argumento principal que fazia terra arrasada do papel da centralidade operária era o de que os “novos sujeitos políticos” questionavam a ordem estabelecida, mas também o conjunto de suas instituições, “inclusive aquelas que ocuparam o papel de questioná-la como os sindicatos e os partidos operários” (Evangelista, 1992: 16).

Qual a diferença principal nesta nova participação e neste novo sujeito? Nas palavras de Eder Sader (1988: 53-54), com a “emergência de uma pluralidade de sujeitos políticos assumindo a centralidade de sua condição, rompe-se a ordenação do campo político, hierarquizada a partir do lugar hegemônico reservado -por direito teórico- à classe operária ou seus representantes”.

Seguindo esta lógica, num âmbito mais global da teoria, entendia-se que o cotidiano tinha sido descoberto como um espaço de reprodução da dominação ou de resistência contra ela, produzindo-se uma “politização do social”, que teria gerado um estilhaçamento da política. Ou seja, uma velha política teria sido substituída por uma nova política. O raciocínio era que os novos movimentos sociais tinham atacado o “ponto fixo da política”, aquilo que gravitava exclusivamente em torno do Estado e suas instituições (Evangelista, 1992). Portanto, a estratégia de tomada de poder teria caducado e deveria forçosamente ceder lugar à contestação imediata e cotidiana de cada relação de dominação. Embora essa discussão esteja presente em Sader (1988), ela revela claras ressonâncias de todo o movimento teórico pós-moderno, que se fortaleceu a partir do Maio de 68 e que levou a essa mudança de paradigmas às Ciências Sociais
No Brasil, no entanto, esta discussão começou a ganhar fôlego no final dos anos 1970, justamente no momento das greves operárias do ABC Paulista. Paradoxalmente, essa discussão sobre os “novos” atores sociais surgia no momento do notável ressurgimento do “velho” (e supostamente ultrapassado) protagonista operário do meio sindical metalúrgico. Mas, neste caso, a novidade alegada estava no fato de que estas greves haviam trazido uma “nova” classe operária, formada depois do golpe de 1964 e, portanto, sua gênese e desenvolvimento teriam se dado sem as influências do sindicalismo comunista e/ou trabalhista do pré-1964. Portanto, este novo sindicalismo estaria fora da influência nociva do período identificado como populista.

Esse ressurgimento do movimento operário e sindical no fim dos anos 1970 foi de fato um divisor de águas. Foi também o momento da anistia de 1979, quando o país recebia o retorno de um grande número de intelectuais e políticos exilados. Nesse contexto, algumas correntes teóricas e/ou políticas quiseram se apresentar como a vanguarda desse “novo” movimento operário, mas uma delas tinha inicialmente a concepção de não se colocar numa perspectiva de vanguarda. Embora recusasse ser rotulada, essa corrente ficou conhecida como autonomista.

Assim, o chamado autonomismo, ao invés de defender algumas coisas, definia- -se contra outras. Exemplo: era contra as vanguardas, contra o chamado populismo do pré-1964, contra o comunismo em geral e contra o PCB em particular. Além de contar com a articulação de Marilena Chauí, essa corrente ficou notabilizada pela contribuição daquele que é considerado a maior expressão teórico-política dessa vertente, o sociólogo uspiano, Eder Sader. Envolvido em todo o processo de fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980, foi um dos fundadores da Revista Desvios, lançada em novembro de 1982, destinada a influir, entre outras coisas, no debate interno do recém-fundado PT. Chauí também publicou artigos nesta revista. Grosso modo, os autonomistas queriam desviar, a todo custo, o movimento operário de qualquer espécie de concepção de vanguarda.

Importante destacar que, como corrente política, o autonomismo não chegou a ter grande presença dentro da própria classe operária. Se teve, jamais foi majoritária. Por paradoxal que possa parecer, a corrente autonomista era conduzida por intelectuais que se punham contra a presença de intelectuais na direção dos movimentos sociais e principalmente da classe operária. Isto é, tinha mais força no meio intelectual do que nas bases. Na verdade, apresentava-se como uma discussão intelectual que colocava a proposta de como as bases “não deveriam” ser conduzidas. E teve seu valor social e histórico, evidentemente. Sabe-se inclusive que as bases de movimentos sociais daquele período estavam fortemente marcadas por uma militância católica progressista, afinada especialmente nas CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) -e que pouco ou nada sabiam sobre a corrente autonomista. O que poderíamos chamar de “basismo” pregado pela corrente, podia até encontrar guarida na prática daqueles movimentos. Mas, como já se disse, sem ser majoritária em nenhum momento.

 

O autonomismo como rejeição às vanguardas: uma historigrafia

Na historiografia da corrente autonomista, a Revista Desvios figura como o instrumento que mais serviu à divulgação de textos que demarcaram os parâmetros da discussão em torno de uma nova teoria das classes sociais e da revisão do projeto socialista. Nessa revista, dois textos notabilizaram-se como portadores da novidade que a discussão trazia: “Por uma nova política”, de Marilena Chauí (1982) e “Onze teses sobre a autonomia” (Sader, 1983). Um trabalho coletivo, mas com a autoria principal atribuída a Eder Sader.

A revista Desvios iniciou seus números em novembro de 1982, com uma proposta explícita de romper com o que chamava de esquemas viciados da esquerda tradicional. Com bom humor, na apresentação do segundo número da revista em agosto de 1983, os editores assim se auto-anunciavam: “Persistindo em nossa vocação para a heterodoxia, rompemos com mais uma tradição da esquerda de não ir além do nº1 de suas publicações” (Desvios, 1982: 5).

O texto de Marilena Chauí, Por uma nova política, foi republicado em sua coletânea Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas (Chauí, 2003a) com o novo título “Representação ou participação?” (Chauí, 2003b).Além da dificuldade de encontrar a publicação original esgotada da Revista Desvios, esta republicação foi importante porque Chauí acrescentou notas2 e uma homenagem à memória de Eder Sader (1941-1988).

Outro texto de muita importância à época foi o livro de Eder Sader, Quando novos personagens entraram em cena (Sader, 1988), que teve importante repercussão nos círculos políticos e acadêmicos, naquele cenário dos anos 1980. Figura também o livro de Chauí, Seminários: o nacional e o popular na cultura brasileira (1984), bastante propagado nos meios teórico-políticos que discutiam o papel dos intelectuais naquele contexto histórico, e que pode ser resumido na seguinte expressão de seu apresentador: “Os‘não intelectuais’ expressam-se de formas diferenciais que, muitas vezes, escapam ao entendimento do intelectual. Mas pensam!” (Novaes, 1984: 10).

* Pós-Doutoranda pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), Rio de Janeiro-RJ, Brasil. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESP/Marília-SP.

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