A Arte da Solidão
Por Carlos Krebs*, para o Duplo Expresso
Mimésis, do grego mímesis, é a ação ou a capacidade de imitar (imitatio, em latim). Em termos críticos ou filosóficos, o termo abrange uma variedade de significados, incluindo a imitação, a representação, ou os atos de assemelhar-se ou expressar-se.
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Morar fora do país, ainda que circunstancialmente, é uma lição diária de como conviver muito mais consigo do que com todos aqueles que se vê, que passam pela gente, que levam suas vidas para lá e para cá. O primeiro impacto é o enfrentamento do “si por si”. Em geral, nós brasileiros somos mais extrovertidos e calorosos, mesmo com estranhos. E claro que esperamos uma reciprocidade que não foi fácil de receber. Aliás, no começo achei que os suecos nem dentes tinham…
Acabei por desenvolver uma necessidade maluca de tentar compensar a distância com outras formas de conexão, ainda que virtuais. Os ex-colegas, os que ficaram lá em casa, o meu companheiro de quatro patas, o cara do açougue ou da padaria ou da loja de especiarias ou da entrega do gás. Todos viraram gigantes no tamanho da saudade que sinto.
Com base nessa sensação de estar sozinho e conectado, e por imaginar que outras pessoas possam passar por situações similares em qualquer outro lugar, gostaria de apresentar o trabalho de um artista oriental que me fez pensar um pouco mais nisso. Antes, porém, seria bom que avaliássemos como se pode interpretar o estar de só e o sentir-se sozinho. Será que é algo provocado pela distância, ou será que é um fenômeno induzido?
Observem a diferença entre as duas campanhas de venda da Apple na virada do milênio… Antes, a marca era vendida dentro de um conceito em que se mirava a projeção em alguém com um valor expresso como relevante para a sociedade, alguém que poderia servir como nosso espelho. A partir de 2002, o produto era exposto como o objeto de desejo. Naquele momento, trocou-se a ideia do ser pelo desejo de ter.
Não estou defendo aqui o culto de personalidades. Apenas quero discutir o jeito como a propaganda pode nos atingir. Ao invés do incentivo em espelhar-se em algo de determinado humano, há o incentivo em identificar-se com qualquer outro que tenha determinado algo, objeto, coisa. Mas quando se admira mais esse algo em detrimento do alguém, transforma-se a pessoa em mais um número no inferno.
Queimam-se todos na busca pelo pertencimento: pertencer a um grupo, assemelhar-se aos demais, mas não pelo que se é, e sim pelo que se tem como pertence. Se a pessoa tem o gadget x, y e z (nas versões up to date xn, yn e zn), então ela corresponde; caso contrário, restarão as chamas do isolamento, do banimento, do cantinho no pátio da pré-escola ou na cantina da universidade.
O domingo de Páscoa é um momento propício para pensarmos na questão do renascimento, na ideia do novo purificado. Mas o que sempre me causou estranhamento era o homem na cruz, o homem da antevéspera. Não pela violência praticada no ato em si de crucificação, mas pelo exemplo de barbárie que aquilo continha. Mesmo que os filmes bíblicos sempre mostrassem o Cristo ladeado por outros dois homens, a imagem dele pregado na cruz lembra-me a mesma silhueta solitária citada anteriormente na campanha comercial. Minha comparação não está tratando desrespeitosamente símbolos ou crenças, mas identificando a solidão que há quando não somos alguém. Quando sós. Quando abandonados.
Essa sensação de isolamento, de distanciamento, de enxergar o indivíduo como único, e não apenas como mais um, talvez seja a síntese do arquiteto estadunidense de poucas obras, mas de um discurso poderoso: John Hejduk (1929-2000). Graças a um artigo* da arquiteta Dra Lais Bronstein Passaro (FAU-UFRJ), pude conhecer os projetos dele em concursos para a renovação urbana no Internationale Bauausstellung Berlin – IBA Berlin**. Ele trabalhava em uma linha que, em alguns momentos era figuração, em outros, pura abstração. Sempre como uma ruptura do movimento moderno (seja a visão estadunidense, seja a visão europeia). Com isso, ele fugia da interpretação mimética comum aos arquitetos, justamente para acolher a importância do indivíduo, de quem usaria o lugar projetado, e da cidade que escolheria o como ocupar e desenvolver o espaço reinterpretado.
E a partir dos dois projetos dele discutidos pela arquiteta – “Berlin Mask” e “Victims” –, fui remetido às instalações realizadas em homenagem ao dissidente checo Jan Palach, um estudante que ateou fogo ao corpo como protesto contra a invasão soviética de 1968. Ele serviu como mártir contra o governo comunista que se instalou na antiga Tchecoslováquia.
O trabalho chama-se “Casa do Suicídio e Casa da Mãe do Suicida”, e foi concebido para uma exposição temporária nos jardins do Castelo de Praha em 1991. Depois de 25 anos, foi remontado na antiga Praça do Exército Vermelho na cidade, atual Praça Jan Palach. O monumento é baseado no poema “O Funeral de Jan Palach”*** do poeta estadunidense David Shapiro, e faz parte da instalação. Shapiro era amigo tanto de John Hejduk, como do escritor, dramaturgo e político Václav Havel – último presidente da Tchecoslováquia (1989-1992) e primeiro presidente da República Checa (1993-2003).
O caminho aqui proposto atravessa o discurso publicitário, a simbologia da Páscoa e suas interpretações via música e cinema, a arquitetura e a representação escultórica da qual ela se vale, para chegar na obra gráfica que me impactou há algumas semanas.
Para quem ainda não conhece, trata-se do Avogado6. Pouco sabe-se sobre o artista japonês que atende pelo pseudônimo. Semelhante ao artista Banksy, ele é uma personagem. Tem-se apenas um ícone repetido na conta do Instagram, no perfil do Twitter e em um canal do Youtube que usa a imagem do físico e advogado italiano Lorenzo Avogrado (1776-1856), responsável pela constante que leva seu nome e trata da composição das moléculas com suas interações e combinações – credo!
O que me arrebatou foi a capacidade crítica desse artista na hora de retratar a sociedade atual, aliando qualidade gráfica com sensibilidade na abordagem de um tema tão árido. Eis um pouco de sua obra:
Para mim, Avogado6 realiza a mimésis desta sensação de vazio em que estamos mergulhados hoje. Há uma crítica da nossa ausência com nossos semelhantes, ora induzida, ora consentida. Isso reforça nosso espelhamento, a saturação de como estamos sendo expostos, o exagero de auto exibir-se ao ponto de não enxergarmos, ouvirmos, falarmos do outro.
Agradeço essa provocação proposta pelo artista. A representação da solidão é capaz de ajudar na sua compreensão de como ela pode aparecer para cada um. Isso oferece a força necessária para que se vença o grande temor: o monstro do abandono que cochila em nós. Com um sono leve, muito leve.
* Carlos Krebs é arquiteto, cinéfilo, explorador de sinapses, conector de pontinhos, e mais um que acredita que o Brasil ainda tem tudo para dar certo.
…
* Artigo “Arquitetura e solidão: John Hejduk em Berlim”, Revista Risco, nº 1, 2003, págs 44 a 53.
** O IBA Berlin foi um projeto de renovação urbana com uma série de intervenções visando reabilitar o centro da cidade, realizadas entre 1979 e 1987, visando as comemorações dos 750 anos da cidade. Coincidentemente, o IBA foi tema da primeira palestra que assisti sobre Arquitetura, no já distante ano de 1989, no auditório da FAUFRGS.
*** Texto integral da poesia “The Funeral of Jan Palach” de David Shapiro em Bomb Magazine.
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