Uma Reflexão sobre a Energia como Política Pública

Este é o segundo artigo de uma série de quatro, iniciada em “Democracia ou Sequestro do Poder?”

Por Michaela Dellabianca* e Patrícia Vauquier*, para o Duplo Expresso

Esse artigo faz parte da série de questões que foram explicitadas pelos Coletes Amarelos na França e que se encaixam perfeitamente no contexto brasileiro. Ele apresenta uma discussão geral que foi exposta nos dois documentários franceses e que aborda o papel da energia na sociedade atual.

Na França a energia custa bem caro, e uma das razões dos protestos dos Coletes Amarelos é que um aumento em uma taxa de energia aumenta o preço final do combustível fóssil.

Dois documentários de Gilles Balbastre:[DE1]
– O primeiro EDF, Les Apprentis Sorciers (“EDF, Os aprendizes de Feiticeiro [NA1]) foi ao ar em 2006 conta como a energia foi privatizada na França. Ele dá os aspectos técnicos da produção e distribuição da energia e como a privatização desregulou completamente o mercado, comprometendo a manutenção das centrais nucleares e o fornecimento de energia.
– O segundo Main Basse sur l’Energie (“Mão grande na Energia”) foi exibido em 2018, e fala sobre o golpe das empresas privadas de energias renováveis – um grande assalto do capital financeiro à população francesa.

O primeiro documentário conta como a produção de energia elétrica funciona: buscando o equilíbrio constante entre o consumo e a produção. Se há mais produção que consumo, ou se há mais demanda que a oferta, o sistema entra em colapso. Algo como os apagões que ocorreram frequentemente no começo dos anos 2000 no Brasil, e que continuam acontecendo.

Um ponto importante deste documentário é a referência ao processo de privatização da energia do Estado da Califórnia (EUA)[DE2] e a reflexão do governo no sentido de reavaliar aquela privatização. A economia e todas as atividades do Estado – vide os serviços de primeira necessidade como transporte, hospitais e telecomunicações – sofreram terríveis consequências com os cortes do fornecimento de energia que as empresas privadas efetuavam para que pudessem renegociar os contratos e cobrar a tarifa que melhor lhes convinha.

Nesse sentido, o documentário Enron – the smartest guys in the room (“Enron – Os Caras mais Espertos na Sala”), de Alex Gibney (2005), dá uma perspectiva do que a empresa foi capaz de fazer para lucrar com o mercado da energia. Na década de 90, com a privatização das companhias estadunidenses de energia, surgem diversas empresas que vão participar do ciclo de produção da energia, algo antes uma atividade exclusiva do Estado. A Enron não produzia nada. Ela apenas intermediava os contratos entre quem queria comprar e quem queria vender. Um vale-tudo que afundou a economia do estado da Califórnia.

O documentário foi feito com o objetivo de registrar as experiências de forma a não se repeti-las. Vinte anos depois, essa organização não somente não foi esquecida, como tornou-se o modus operandi organizacional da maioria dos grandes grupos em dia. Esse modo de gestão de empresas será detalhado no próximo artigo.

O segundo documentário citado – Main Basse sur l’Energie revela como a privatização da empresa de energia colocou em risco o parque de usinas nucleares francesas. A manutenção das usinas é feita por terceirizados sob contratos de curta duração que não recebem o treinamento nem as ferramentas necessárias para o trabalho. Consequentemente, a manutenção dos equipamentos é mal feita, e as peças trocadas tem um nível inferior tanto em qualidade quanto em durabilidade. Isso porque, ao invés de produzidas sob medida pela indústria francesa, as atuais são produzidas na Índia e na China sob um menor custo. Vale ressaltar que a indústria nuclear é recente. Ainda não se tem um retorno de experiências consolidadas em relação ao comportamento e reatividade dos materiais, ou sobre o tempo de exposição antes da completa fissuração dos materiais, o que a longo prazo representa um grande risco que não é levado em conta pelos acionistas destas empresas.

Um segundo ponto é a manutenção das barragens dos rios nas margens onde as usinas estão localizadas. Um problema numa barragem provocaria a inundação de todas as usinas nucleares à jusante. O que significaria um desastre nuclear muito mais impactante que Fukushima ou Chernobyl.

O terceiro ponto é a produção de energia renovável. A energia eólica e a fotovoltaica são as novas empresas de geração de energia renovável. O governo francês paga um preço fixo pelo watt (W) gerado por essas empresas, independente desse watt ser gerado ou não. Quer dizer que, na tarifa de energia, cerca de 15% do valor de cada fatura é destinado ao pagamento da energia renovável – produzida ou não – às empresas responsáveis pelas eólicas. Elas embolsam esse valor sendo ou não produtoras; um escândalo público.

E por que esses documentários guardariam alguma relação com a realidade brasileira?

Porque a energia é um fator de desenvolvimento. Quanto mais complexo um sistema econômico – e por complexidade entenda-se parque industrial, transporte ferroviário, redes linhas de telecomunicações complexas – mais desenvolvido será o país. Basta ver a necessidade da energia numa cidade.

O cidadão comum está totalmente alheio à importância da energia, do papel do Estado para o desenvolvimento do parque gerador, transmissor e distribuidor de energia. E mais alheio, principalmente, sobre os atores que participam da verdadeira ciranda financeira no setor elétrico.

A ignorância da população de qualquer país sobre o que realmente seja/signifique energia, sobre as fontes e meios de transformação, e até a sua disponibilidade nas tomadas de suas casas, a torna apenas a pagadora da fatura.

O Estado deve ser o defensor dos interesses dos cidadãos comuns no setor energético. E, principalmente, no setor elétrico, devido à grande importância deste insumo para a vida cotidiana das pessoas. Mesmo atividades como a agricultura precisam de um mínimo de energia elétrica atualmente, nem que seja para bombear a água para irrigação ou para o transporte da colheita. Não é mais possível retornar à era colonial. O território brasileiro é extenso, e ele precisa de um mínimo de desenvolvimento. Se o Estado Brasileiro não tomar a iniciativa para atender a demanda de infraestrutura das regiões mais afastadas, outros o farão. E por “outros” entenda-se o capital financeiro internacional. Aquele que explorará tudo o que puder sem oferecer nenhuma contrapartida.

Hoje, no Brasil, há intensa substituição do interesse público no setor elétrico. Não apenas com a privatização de empresas, mas pela total ausência de instâncias e representações dos consumidores comuns nas discussões sobre o futuro da energia elétrica.

Em 2017, foi publicada a Nota Técnica nº 5 da consulta pública no33 pelo Ministério da Minas e Energia – MME, visando a revisão do Marco Regulatório do Setor Elétrico. O período de consulta e de contribuições não passou de dois meses e, apesar das inúmeras contribuições enviadas, a maior parte tem como autoria os players do próprio setor. Não se pode identificar o interesse público no texto que foi encaminhado ao Congresso em forma de Projeto de Lei, e que está em análise por uma comissão especial.

No máximo, versa sobre micro e minigeração, e estabelece que os consumidores-geradores terão que pagar pelo uso do sistema de distribuição. Ou seja, não terão o benefício da compensação integral. Ocorrerá apenas um encontro de contas entre os quilowatts (kWh) consumidos e gerados do próximo período.

As estatais de energia são a última instância de defesa do interesse público no setor. Ou eram. Atualmente, os seus empregados, além de estarem proibidos do direito à greve, estão sendo “doutrinados” a omitirem-se politicamente dentro e até fora das empresas pelos conselhos de ética! O que deveria ser regra básica para qualquer um que ingressasse na administração pública (seja ela direta ou indireta) – a defesa do bem e do interesse públicos –, agora passa a ser visto como conduta antiética, com normativo específico para isto e cursos de “formação”.

O ano de 2019 promete ser de grande avanço privatista e de alienação do patrimônio público do setor elétrico brasileiro. Traduzindo: Um ano dos maiores crimes de lesa-pátria da história nacional. O patrimônio da Eletrobras, construído desde a criação da Chesf há 70 anos e integralmente pago pelo povo brasileiro, pode ser transnacionalizado com uma simples canetada. A própria direção do estatal, à revelia da Lei, tem suplantado o Congresso nas decisões sobre a alienação de seus bens. Foi isso que ocorreu quando decidiu-se pela extinção da Eletrosul. Tudo sob o olhar desinteressado do STF.

O avanço privatista sempre encontra brechas na legislação. Costuma abrigar-se na participação lesiva de gestores nas estatais e com a paralisia da população. É essa que assiste alheia ao seu próprio furto aquilo que pode configurar-se como o maior “gato” de energia da história.

Em um país com a extensão territorial do Brasil, só o governo federal é capaz de desenvolver um plano de energia unificado que corresponda ao projeto de desenvolvimento da nação.

O Brasil vai desenvolver seu parque industrial?
Onde?
Como vai escoar a produção?
Como será a comunicação e o deslocamento entre as diferentes regiões?
Qual será o modo de energia a ser desenvolvido e implementado nas regiões mais afastadas dos grandes centros?
Qual será o investimento nas energias renováveis e onde isso será realizado? Como garantir sua geração e a distribuição?
São perguntas básicas que qualquer cidadão deveria se fazer.

O tema da estatização da energia é um tabu pior que o da legalização do aborto. Não se discute esse assunto mais sequer no meio acadêmico. Menos ainda no meio governamental, como salientou o Dr. Paulo César Ribeiro Lima. Afinal, o que está valendo para o cidadão comum, dentro do discurso oficialista, é que “o consumidor precisa ter o direito de escolher de quem vai comprar a energia”, ou que “o Estado não pode ter o monopólio da energia porque ele é ineficiente”, pois “a empresa privada é muito mais eficaz que a burocracia estatal”. Fragmentos de discurso repetidos à exaustão até tornar-se um mantra em qualquer sociedade. E por quê?

Porque o interesse do capital financeiro é o mesmo no mundo inteiro. E como a mídia tradicional faz coro ao capital financeiro, ela repercute o que lhe convém. Uma mesma ladainha repetida no Brasil, na França e nos EUA: O estado é ineficiente; ele não consegue concorrer com a iniciativa privada. E é lógico que o Estado não concorre com a iniciativa privada! Os dois tem missões completamente diferentes. O principal objetivo da empresa privada é o lucro, enquanto o principal objetivo do Estado é oferecer um serviço que atenda as necessidades da população. O que ninguém fala é que a iniciativa privada embolsa o que seria destinado a um serviço com qualidade mínima, afinal os acionistas precisam dos dividendos. Dividendos e qualidade mínima são incompatíveis entre si…

O que Gilles Balbastre transmite nos documentários, e que corresponde ao posicionamento deste artigo, é que a energia não é um bem de consumo. A energia é um bem vital. O watt que uma bactéria consome ao transformar matéria é o mesmo watt que acende uma lâmpada. Nós, seres humanos, precisamos comer para produzir energia. Usamos isso para pensar, respirar, falar, andar. Na atual organização das cidades, que se tornaram verdadeiros organismos complexos, as redes de distribuição de energia cumprem o papel de um sistema circulatório responsável pelo seu funcionamento básico. Desde o mais humilde vilarejo até as megalópoles de milhões de habitantes, a energia é tão vital quanto o alimento para o ser humano que nelas habitam. É por essa razão que ela deva ser considerada como um bem essencial porque, na atual configuração das cidades, não há nem água ou mesmo oxigênio se não houver energia.

 


* Michaela Dellabianca é engenheira eletricista concursada pela Eletrobras – Chesf, onde trabalha com projeto de linhas de transmissão, mestra e doutora em Engenharia Mecânica na área de Energia pela UFPB, além – é claro –expressonauta assídua.

* Patrícia Vauquier é arquiteta, mestra em Engenharia Civil, doutora em Administração de Empresas e comentarista do Duplo Expresso às quartas-feiras.

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NA1 – EDF é a companhia Électricité de France, maior produtora e distribuidora de energia do país, fundada em 1946 após um programa de nacionalização do setor na época. Foi uma empresa estatal até 19 de novembro de 2004, quando adotou personalidade jurídica de direito privado.

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DE1 – Aqui um texto em português de Gilles Balbestre, do Acervo Online do Le Monde Diplomatique Brasil no início de 2014. Ele aborda um assunto recorrente na mídia francesa: “o trabalho aos domingos” ou, em uma leitura transversal, como a ideia de que pouca regulação e livre negociação são o paraíso nós, capitalistas. Claro, desde que estejamos no lado do balcão onde sentam os patrões.

DE2 – Quem quiser saber um pouco mais sobre o criticado modelo de desregulamentação do setor elétrico da Califórnia, poderá ler a transcrição da declaração de dois convidados estadunidenses na sessão ordinária na Câmara dos Deputados em 24/mai/2001, o Dr. Lawrence J. Makovich, diretor-senior da Cambridge-Massachussets Energy Research Association e especialista na indústria de energia elétrica (discurso está entre as páginas 406 e 411 da transcrição), e Eugene Coyle, consultor da American Public Power Association (discurso entre as páginas 411 e 416 da transcrição), que faz um interessante paralelo entre o mercado cafeeiro no Brasil àquela época e o mundo do setor elétrico.

 

 

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