O Papel do Islã na Geopolítica Mundial

A participação do professor Lejeune Mirhan no Duplo Expresso de 14 de fevereiro de 2019 está aqui:

 

Por Lejeune Mirhan*, para o Duplo Expresso

Não é possível entender em maior profundidade a região do Oriente Médio (países árabes mais Irã e Turquia) sem falarmos sobre a religião islâmica. Da mesma forma como do judaísmo e do cristianismo. Se é correto afirmar que com o advento do cristianismo criou-se uma nova aliança (política e religiosa), sem que se desprezasse o judaísmo anterior (seus dogmas, Profetas, normas e tradições), o Islã também não rompeu com as religiões anteriores. As que chamamos de mosaicas (de Moisés) ou abraâmicas (de Abraão) no caso do judaísmo, e nem as cristãs. Pretendo neste trabalho apresentar um panorama geral sobre essa grande religião, desde o seu surgimento, suas correntes internas e seu papel hoje na geopolítica mundial.

O mundo viu surgir a unipolaridade em 1991, quando o poder dos Estados Unidos consolida-se através da primeira agressão ao Iraque e com o fim da URSS. A potência estadunidense, ao romper com a bipolaridade vigente ao longo de décadas de Guerra Fria, ainda assim precisaria eleger algum “inimigo” para poder continuar dispendendo os maiores gastos em equipamentos de guerra, terror e morte. Afinal, os EUA gastam (sozinhos) metade de tudo o que o mundo inteiro consome em armamentos por ano.

 

O surgimento

 A região da península arábica no século VIII era pobre e pouco povoada. Muitos dos árabes que lá viviam cultuavam vários Deuses (eram politeístas), quando outros eram ou cristãos ou judeus (uma minoria). Digamos que não existia uma religião “dos árabes” que permitisse ter seus livros sagrados escritos na própria língua.

Essa situação começa a alterar-se no ano de 610, quando um comerciante analfabeto chamado Mohammed (que chamaremos de Maomé, como se faz no Ocidente), cujo nome completo e original era Abou Alcacim Mohammed Ibn Abdala Ibn Abdal Mutalibe Ibn Haxim, completa 40 anos e tem uma visão. Nascido na cidade de Meca (hoje Arábia Saudita) em 25 de abril de 571, e falecido na mesma cidade, em 8 de junho de 632. Era casado com uma mulher mais velha que ele, viúva, chamada Khadija. Teve com ela seis filhos, sendo que Fátima foi a que se casou com seu primo chamado Ali, que viria a ser o quarto califa (inclusive é o único reconhecido por todos, mas para os xiitas foi o primeiro Imam como se verá mais a frente). Maomé pertencia à tribo dos coraixitas (ou clã).

O Islã é uma religião monoteísta que encerra o ciclo profético, iniciado com Abraão (considerado patriarca para os judeus, cristãos e muçulmanos). Ainda que não se tenha provas documentais de sua existência, pode-se dizer que metade da população do planeta (dois bilhões de cristãos e 1,5 bilhão de muçulmanos) creem piamente nele. Estima-se que tenha vivido entre 2,1 mil e 1,8 mil anos antes de Cristo. Dessa forma, tanto o judaísmo, como o cristianismo e o islamismo são religião que se pode dizer também abraâmicas, [LM1] derivam de um mesmo tronco.

Ilustração do profeta Maomé (autor desconhecido)

Todos os anos Maomé ia para uma caverna no Monte Hira, próximo de Meca para fazer suas orações. Eis que um dia, reza a tradição, apareceu-lhe um anjo (ou arcanjo) chamado Gabriel (Jibril) que começou a ditar-lhe o que viria a ser chamada de ayas (versículos) e as suratas (capítulos) do futuro livro sagrado para os muçulmanos chamado Corão (ou Alcorão). É preciso lembrar que na história das religiões, registra-se que foi esse mesmo anjo que tería aparecido para Abraão para interrompê-lo do sacrifício de seu filho que ele iria fazer, bem como apareceu para Maria, mãe de Jesus, anunciando para ela que ela daría luz a um menino mesmo sendo virgem.

Maomé não sabia ler nem escrever, de forma que, ao sair da caverna, ele recitava o que tinha ouvido do anjo para seus parentes e seguidores mais próximos. Durante dois anos ele procedeu dessa maneira, recebendo os capítulos do Corão, mas sem fazer pregações mais amplas. O povo árabe não tinha tido nenhum Profeta até então. Os mais conhecidos anteriormente eram judeus/hebreus, inclusive Jesus (os muçulmanos não consideram Jesus um Deus ou filho de Deus, mas simplesmente um Profeta[LM2]). Assim, o anjo Gabriel anuncia que Maomé sería o último Profeta enviado por Deus e teria a missão de trazer aos humanos as suas últimas profecias e ensinamentos divinos.

Maomé não era Deus. Apenas um ser iluminado, digamos assim, que falava diretamente com um intermediário de Deus, que era o anjo. Pode-se dizer que seus escritos e ensinamentos são de ordem religiosa, mas também políticos, administrativos, militares e assim como de regras e normas de saúde e higiene.

“Maomé recebendo sua primeira revelação do anjo Gabriel” – Ilustração em miniatura no pergaminho do livro Jami ‘al-Tawarikh (literalmente “Compêndio de Crônicas”, mas muitas vezes referida como A História Universal ou História do Mundo), por CC Rashid al-Din, publicado em Tabriz, Pérsia (1307), e agora em uma coleção da Biblioteca da Universidade de Edimburgo (SCO).

 

Os primeiros anos do Islã

 A nova religião teve uma expansão muito rápida. A sua pregação inicial era apenas para os mais próximos, como Khadija – sua esposa –, Ali Ibn Abou Talib – seu primo –, Abou Baker e Othman Ibn Affan (esses últimos que virariam Califas), e outros menos conhecidos.

Originário de Meca, após dez anos de sua pregação, Maomé começou a ser hostilizado até mesmo por membros de sua tribo de origem. Assim, ele recebeu um convite de membros da aldeia vizinha – que se chamava Yathrib – e para lá mudou-se com sua família e muitos seguidores no ano de 622. Essa data é considerada o ano 1 do calendário islâmico, chamada de Hégira. A cidade passou a se chamar de Medina (que em árabe significa justamente “A cidade”), considerada a segunda mais importante para os muçulmanos.

Os árabes originários dessa península, como dissemos, eram politeístas ou eram pagãos. Apenas uma minoria era cristã e judia. Assim, o ambiente estava extremamente fértil para a pregação da nova religião por um mensageiro (em árabe, rasul), ou apóstolo de Deus. E o mais importante: Na língua que eles entendiam, sem que precisassem ler o livro sagrado.

Até sua morte em 632, Maomé recebeu por 23 anos as suratas ditadas diretamente pelo Anjo Gabriel. Todos esses textos – que eram transcritos pelos seus seguidores – viraram capítulos do futuro livro chamado Alcorão. Para uma pessoa iletrada, os árabes consideram que tenha sido um milagre de Deus que Maomé tenha conseguido repetir aqueles versos, pois são rimados (em árabe, claro) e considerados por muitos críticos literários como uma das mais belas peças da literatura universal.

Apesar de haver na região muitas guerras e batalhas entre tribos por territórios, o livro sagrado dos muçulmanos prega expressamente que todos os seguidores do livro (no caso a Bíblia hebraica e cristã), deveriam ser protegidos. Ou seja, nenhuma Igreja cristã ou Sinagoga judaica poderia ser violada (por isso que sempre dissemos que os que hoje se dizem “Exército Islâmico” e cortam cabeças das pessoas – em especial cristãos e xiitas –, jamais poderiam ser muçulmanos de fato).

O costume da época de que os homens poderiam ter várias mulheres – posteriormente fixado pelo Alcorão em quatro – tinha uma relação direta com o elevado índice de mortalidade da população masculina decorrente das muitas guerras na região. Assim, existiam uma quantidade também grande de viúvas e crianças órfãs que precisavam ser protegidas.

O Islã concedeu a emancipação das mulheres no século VIII, enquanto no Ocidente isso ainda hoje é objeto de uma luta constante das mulheres pelos seus direitos. Também o Islã repudia a escravidão. Tanto que Bilal – escravo torturado por seus proprietários por ser muçulmano –, não só foi emancipado e liberto, como converteu-se ao Islã e foi incumbido diretamente por Maomé de ser o Muezin, que é a pessoa encarregada de fazer a chamada do alto das torres (chamadas de minaretes) das mesquita para que os fiéis saibam que é hora da oração (cinco vezes ao dia).

“Minarete em Sidi Daoud, Tunis (TUN)” por © Mar!na (2009).

Registro finalmente, que os ditos do Alcorão e do Profeta são de que devemos ter amor e cuidar dos animais. Maomé mesmo era um apaixonado por gatos. Reza a lenda que, certa vez, ele se encontrava em Damasco (Síria), realizando seus trabalhos e, ao seu lado, ficava sempre o seu gatinho chamado Muezza. Em determinado momento, o gato adormeceu em cima de uma das mangas da túnica do Profeta. Este não teve dúvidas. Para não acordar o gatinho, cortou com sua espada a manga de sua vestimenta. Por isso até os dias atuais, os gatos podem entrar em todas as mesquitas.

Apesar do Corão nominar 25 Profetas e apresentar 99 denominações para Deus (Misericordioso, Clemente, etc.), existem cinco desses Profetas que são fundamentais para eles. São eles: Abraão, Noé, Moisés, Jesus e Maomé.

 

A sucessão de Maomé

 Os sunitas dizem que em vida, Maomé não deixou uma indicação expressa de quem deveria ser seu sucessor, ao contrário dos xiitas, que dizem que Maomé indicou seu genro e primo Ali. Esse é aceito como quarto sucessor pelos sunitas.

Houve uma espécie de grande cisma no Islã. De um lado, os que ficaram conhecidos como sunitas – diziam-se seguidores e aplicadores da Sunna, que é uma compilação de práticas e costumes do Profeta Maomé – que afirmavam que o mais devoto de todos os muçulmanos poderia ser escolhido pelo consenso da umma – comunidade de crentes –, sendo esse o califa (sucessor em árabe). Apenas os quatro primeiros são conhecidos como bem orientados (rashidun, em árabe), sendo esses, pela ordem: Abou Baker (632-634), Omar (634-644, que conquista Jerusalém em 638), Othman (644-661) e Ali (656-661).

Mapa do Mediterrâneo em 750 d.C.

De outro lado, os que ficaram conhecidos como xiitas – do Partido de Ali – que pregavam que apenas parentes do Profeta e seus descendentes poderiam vir a ser ungidos como Imames (guias, em árabe). Isso significaria recair a exclusivamente sobre Ali e seus descendentes a sucessão. Aqui é preciso também deixar registrado que, apesar dessa divisão, ambos os grupos (e outras correntes menores), seguem, leem, recitam exatamente o mesmo livro. Ele é absolutamente igual, diferente dos cristãos, que possuem várias bíblias com muitas traduções e adaptações livres feitas com o passar da história.

No caso dos xiitas, Ali era, além de primo do Profeta, mas também gerou com a sua filha – Fátima – Hassan e Hussein que eram, portanto, netos de Maomé e reivindicavam a sucessão. Essa concepção parte do princípio que a sucessão deve ser por transmissão espiritual que inclui a proximidade familiar.

Ainda sobre o caso dos xiitas. Como eles só reconhecem Ali como grande e único sucessor entre os califas sunitas, eles adotaram um sistema com a descendência de Maomé, o Profeta, de Imames, que são pessoas que dominam profundamente o Islã em seus aspectos exotéricos e esotéricos, seriam iluminados por Deus e líderes de seu povo. Eles acreditam em 12 Imames que são: Hassan Ibn Ali, Hussein Ibn Ali, Ali Ibn Hussein, Mohhamad Ibn Ali, Jaffar Ibn Mohhamad, Moosa Ibn Jaffar, Ali Ibn Moosa, Mohhamad Ibn Ali, Ali Ibn Mohhamad, Hassan Ibn Ali e Mohhamad Ibn Hassan (aqui não há como não fazermos um paralelo com os 12 apóstolos de Jesus, ou com as 12 tribos de Israel).

No ano de 878 da nossa era, o 12º Imam, chamado Mohammed Ibn Hassan – que tinha o título de Mahdi (o guiado) –, desapareceu. Eles dizem que ele nem morreu, nem foi alçado aos céus. Que ele se encontra entre os vivos na terra. Um dia, ele retornará na cidade de Meca e terá Jesus ao seu lado, na construção de um mundo de justiça e igualdade, como pregam os xiitas. Assim, eles acabam vivendo, como diz Pace, uma contradição entre o batin (escondido) e o zahir (manifesto).[LM3]

Quero também registrar algo que até mesmo eu incorri em erro. De que os xiitas é que são os radicais. Ledo engano. Nós incorporamos em nosso vocabulário esse termo para designar radicais: É comum dizer “ala xiita” do partido tal. Na verdade, a corrente xiita é a mais tolerante de todo o Islã, sendo que os fundamentalistas, em sua esmagadora maioria, são todos da corrente sunita (claro, nem todo, ressalvando-se que muitos são também tolerantes).

 

 Os preceitos islâmicos

O Islã não possui uma hierarquia, um clero propriamente dito, como conhecemos na Igreja Católica Romana, com as figuras de padres, bispos, arcebispos, cardeais e papa. Cada sheik é um estudioso que também pode exercer o papel de Imam (guia da oração em uma mesquita; não confundir com o título dos sucessores dos xiitas). Assim servem de fonte de informação das leis religiosas, entre outros papeis acadêmicos e sociais.

Os muçulmanos devem obedecer às leis elaboradas diretamente por Deus (recebidas por Maomé no Alcorão e na Sunna). Para ser um sheik é preciso, claro, estudar muitos anos em determinadas universidades e escolas islâmicas espalhadas pelo mundo, e que são reconhecidas como centro de formações dessas pessoas. Praticamente todos eles sabem, inclusive, recitar de memória o Alcorão inteiro.

Para o Islã, diferentemente da religião dos judeus e cristãos, a religião requer que “as pessoas vivam de uma certa maneira, mais do que aceitem os credos propostos”.[LM4] O Islã enfatiza a ortodoxia da prática, e não a doutrina em si.[LM5] O processo de conversão de um seguidor é o mais simples possível: basta recitar a Shahada que é uma surata importante do Corão. Ali está expresso claramente: “Não há divindade fora Alá, e Maomé é o seu último Profeta”.[LM6]

Existem alguns autores que consideram o Islã como sendo uma religião progressista, e até mesmo socialista. Pelo seu postulado principal, como veremos a seguir, que determina a socialização de parte da riqueza de seus seguidores. Entre esses, está o conceituado filósofo francês e ex-membro do Partido Comunista Francês, Roger Garaudy (1913-2012).[LM7]

Quero registrar aqui duas passagens de Garaudy que expressam bem o significado da religião islâmica. “O Islã é uma visão de Deus, do mundo e dos humanos, que confia às ciências e às artes a cada pessoa e a cada sociedade, o projeto de construir um mundo indivisivelmente divino e humano que comporta as duas dimensões maiores, a da transcendência e da comunidade”. Vejam aqui a simbiose e união entre os dois mundos – secular e espiritual – a que os seguidores do Islã devem observar. Vejam que o Islã mistura todas as coisas, como aponta esta outra passagem: “O Islã é indivisivelmente uma religião e uma comunidade, uma fé e um código de vida”.[LM8]

Os cinco pilares do islamismo podem ser assim resumidos:

  1. Profissão de FéÉ a shahada, ou seja a declaração que o fiel e seguidor aceita a existência de apenas um único Deus e reconhece em Maomé um enviado desse mesmo Deus (Alláh em árabe, Alá em português);
  2. OraçãoChamada de saláh, em árabe. Aqui, combinando-se algumas passagens do Alcorão e usando também os hadices (narrações históricas islâmicas) e a sunna (hábitos e costumes do Profeta), os sábios e doutores do Islã acordaram para que todos os fiéis têm que orar cinco vezes ao dia e voltados para Meca (os horários são determinados de acordo com o calendário lunar). No início, eram voltados para Jerusalém, cidade sagrada também para os muçulmanos. Foi de lá que Maomé teria ido aos céus. Aqui também registro a complexidade da religião. No Corão, existem normas não só de fé, mas de hábitos de higiene. O livro determina que antes de cada oração, os fiéis devem estar limpos e purificados, ou seja, devem ou banhar-se e/ou abluir-se. Isso para a região e para a época foi um grande avanço;
  3. JejumEm árabe é o sawm. Todos os anos, no mês sagrado de Ramadã (não se pode comparar com algum dos nossos meses pelo fato que a cada ano cai em um mês diferente, pela contagem de tempo diferenciados dos muçulmanos), todos os seguidores do Islã devem jejuar desde o raiar até o por do sol. Não se pode comer absolutamente nada (nem sequer beber água) e nem praticar sexo, entre outras interdições, como o tabagismo, por exemplo. Claro que os enfermos, idosos, crianças e mulheres grávidas estão dispensados de cumprir essa determinação religiosa, assim como mulheres em estado menstrual e viajantes (que devem repor o jejum em momento mais conveniente);
  1. CaridadeEm árabe se diz zakat, que muitos autores ocidentais traduzem erroneamente como “esmola”. Aqui, há uma determinação que todos os seguidores do Islã doem para os mais pobres ou para obras de caridade, em torno de 2,5% de todo o seu rendimento anual ou de certas posses. Também com relação às suas propriedades, está no Alcorão que elas só serão reconhecidas como de uma pessoa se elas forem adquiridas pelo seu trabalho;
  1. PeregrinaçãoEm árabe se diz hajj. Está também determinado que todos os fiéis que tiverem condições (físicas e financeiras, claro) têm que ir uma vez em toda a sua vida para a cidade de Meca e dar sete voltas em torno da Caaba, que é uma estrutura cúbica que seria a primeira construção dedicada a adoração de Deus que fica em Meca, na Arábia Saudita. Estima-se ao ano que cinco milhões de pessoas fazem essa peregrinação. Alguns a fazem mais de uma vez na sua vida.

Decorrentes desses preceitos, e com base no Corão e na Sunna do Profeta (entre outros critérios como lógica, consenso e costume local), constroem-se o que é chamado de Sharia, que é o direito islâmico. São quatro escolas de jurisprudência de orientação sunita, a saber: Hanafi, Maliki, Xafyy e Hambali e uma de orientação xiita, que é a Jafari. Nos países teocráticos, como a Arábia Saudita, não existe “poder judiciário” separado do governo, independente e laico. Todas as querelas, pessoais ou não, onde é necessária a atuação de um juiz para dirimir as dúvidas e proferir quem está certo, são realizadas nos tribunais regidos única e exclusivamente pela Sharia.

Diferente do judaísmo e do cristianismo, onde a verdade já está dada e o conhecimento não é o mais importante, no Islã isso é fundamental. Na verdade o Islã obrigado seus seguidores a aprender e a conhecer. Há um dito de Ali, o quarto Califa, onde ele menciona que se deve procurar a ciência e buscar o conhecimento. “Nem se for na China”, entendido aqui a citação desse país como quem quer dizer: Não importa quão longe possa estar o conhecimento, as pessoas devem procurá-lo mesmo assim.

Outra dessas passagens Ali menciona que o ignorante sempre parecerá pequeno e velho, mesmo sendo jovem e grande. Assim como o velho e pequeno, parecerão sempre grandes quando eles tem conhecimento. Também o próprio Maomé menciona um dito que “se a ciência estiver lá na sharaia (nome de um planeta muito distante), os muçulmanos devem buscá-lo”.[LM9] Por isso entre outros movimentos, sob o Império Árabe-Muçulmano as ciências de um modo geral floresceram e as bibliotecas eram de mais de meio milhão de volumes, como a de Bagdá, enquanto na Europa os livros eram queimados e pessoas sábias, mulheres progressistas e pessoas avançadas para a sua época eram submetidas aos tribunais da inquisição e queimadas na fogueira.

Decorrentes tanto das escolas do direito, quanto da divisão entre sunitas e xiitas, podemos dizer, de modo geral e resumido, que o Império Islâmico se dividiu basicamente em três: o Safávida (que floresceu no Irã), o Mongol (que foi forte na índia) e o Otomano (que vigorou entre 1453 e 1919). Assim, como diz a pesquisadora e escritora Karen Armstrong, “o espírito empírico que deu à luz à modernidade de fato se originou do Islã”.[LM10]

 

Passagens Importantes do Corão

 Fala-se que o Islã seria uma religião da espada. Isso causou uma imensa saia justa entre o Papa anterior, Bento XVI (Joseph Ratzinger), que disse isso em uma homilia para fiéis. Na verdade, isso não encontra base legal. O Corão condena expressamente em várias passagens a violência e mesmo a própria acumulação de riquezas.

Vejamos algumas dessas passagens: Há uma crítica expressa sobre a acumulação de riqueza quando diz “àquele que é avaro e se acha bastante rico por prescindir dos outros” (XCII, 5).[LM11] Ou ainda “àqueles que acumulam e entesouram” (LXX,17)[LM12] e “àqueles que amam as riquezas com um amor sem limites” (LXXXIX, 18).[LM13] Além de dizer que as pessoas só podem ser donas de propriedades que adquiriam com seu trabalho, aceita por herança e doação. “Deus diz que só pode ser proprietário de terra aquele que nela aplica o seu trabalho”.

 

Uma religião radical e intolerante é completamente avessa aos preceitos corânicos. O Islã prega a tolerância e até proteção a outras crenças. Essa imagem de muçulmano radical e intolerante é fruto um pouco da indústria cinematográfica estadunidense (Hollywood) – toda elas nas mãos de sionistas –, bem como de uma visão distorcida dos próprios enunciados do Corão, que diz assim em uma das suas passagens: “E combatei pela causa de Deus, os que vos combatem. Mas não sejais os primeiros a agredir. Deus não ama os agressores”.

O Islã mais fanático e apegado excessivamente ao texto literal escrito no Corão é chamado de wahabita ou salafista. Pregam o retorno ao século VIII, defendem a pureza do Islã e, por isso, a sua pregação de estados teocráticos ou islâmicos. Não são seguidores das quatro escolas sunitas, mas inspiram-se em suas bases. Acreditam que todos os demais muçulmanos são hereges e que podem ser mortos ou perseguidos.

De um ponto de vista sociológico podemos dizer do Islã e do Corão:

  1. Um texto que fala de Deus e das coisas que um ser humano tem que fazer para estar em harmonia com ele;
  2. Código normativo para as organizações sociais;
  3. Tratado de Filosofia, História e Antropologia; e
  4. Código linguista árabe.[LM14]

 

O Islã na geopolítica mundial

 O intertítulo que coloquei acima não é bem preciso… Não é uma religião que atua em um papel no cenário político mundial, mas sim seus seguidores. Aqueles que interpretam as escrituras que lhes são sagradas. Mas, deixemos assim. Até porque sabemos que, por exemplo, o papado de Francisco irá acarretar mudanças profundas não só na estrutura de sua Igreja, como pode interferir na geopolítica mundial. No caso do Islã é a mesma coisa, ainda que este não possua uma figura central como o papa.

Podemos dizer que existem hoje dois tipos de muçulmanos no mundo. Os mais politizados e progressistas, que defendem uma luta anti-imperialista e pregam pela soberania nacional de todos os povos e países. Ou seja, a não interferência das potências mundiais nos assuntos internos dos países. Existem outros, no entanto, que defendem exatamente o contrário. Como podemos ver no caso da República Árabe da Síria, que sofre ataques de “jihadistas” vindos de várias partes do mundo pelo simples fato que querem depor o seu presidente democraticamente eleito pelo povo sírio. Acabam por fazer, na prática, o jogo do imperialismo estadunidense.

Isso fica mais claro quando vimos, no passado não tão distante que, entre 1979 e 1989, a CIA e os EUA deram total apoio ao homem que depois foi caçado – e morto – como o terrorista mais procurado do planeta – Osama Bin Laden. Ele recebeu treinamento, armas e apoio de inteligência para formar a sua organização terrorista, posteriormente conhecida como Al Qaeda, hoje funcionando quase que como uma franquia, com “filiais” espalhadas pelo mundo. Eles combatem única e exclusivamente os cristãos e os xiitas, em vários países.

Da mesma forma ocorreu com o Iraque de Saddam Hussein entre os anos de 1980 e 1988, quando este aceitou apoio dos EUA para agredir o Irã durante oito longos anos. Para isso, da mesma forma que Saddam Hussein recebeu todo tipo de apoio dos EUA para essa agressão. Vejam que não é coincidência essas agressões tanto no Afeganistão quanto no Irã e que ocorrem simultaneamente. Ainda que o Irã nada tenha de socialista e jamais tinha sido um país de influência soviética desde a sua revolução islâmica em 1979, era preciso desgastar de uma só vez tanto o Irã, quanto a URSS. Assim age o imperialismo estadunidense.

Os xiitas tem, no meu modo de observar a realidade geopolítica mundial atual, uma percepção bastante clara sobre o significado da luta anti-imperialista. O país chave de onde emanam essas orientações, que vem sendo duramente perseguido, é o Irã, em especial após a sua revolução islâmica de 5 de fevereiro de 1979, que completou recentemente 40 anos.

Mas também não só o Irã. Hoje tanto a Síria quanto o Iraque, como o Líbano, vivem sob governos de orientação anti-imperialista. E no Líbano, em particular, vemos a presença de uma das organizações mais conscientes do significado da luta contra o EUA. Chama-se Hezbolláh (Partido de Deus, traduzindo-se do árabe). Os militantes e combatentes do Hezbolláh têm forte presença na Síria, na defesa do povo sírio e do governo do presidente Bashar Al Assad. Mesmo no Líbano, os cristãos libaneses e sunitas sabem que a proteção dos ataques de Israel ao país é feita mesmo por essa organização revolucionária.

As estimativas mais recentes dão conta de que existem no mundo em torno de 1,5 bilhões de muçulmanos, dos quais 400 milhões seriam xiitas. Estes fazem uma peregrinação, além de Meca, para a cidade de Carbala, que fica a 85 Km de Bagdá no Iraque. Hoje essa cidade tem pouco mais de 600 mil habitantes. Foi nela que, em 2 de outubro de 680 da nossa era (e ano 61 da era Islâmica), Hussein – filho de Ali e neto de Maomé – foi martirizado. Esse dia é conhecido como ashura, dia que Maomé jejuou enquanto em vida segundo os sunitas, e que os xiitas relembram o martírio do neto do Profeta. Se achamos que cinco milhões de pessoas indo à Meca todos os anos é muita gente, a cidade de Carbala, onde está o túmulo de Hussein, é visitada todos os anos por mais de 20 milhões de pessoas! Diz-se que é a maior concentração de seres humanos em deslocamento (não naturais do local) na Terra.

Atualmente, há 47 países que integram a Organização da Conferência Islâmica no mundo. Dos 1,5 bilhões de pessoas que seguem a religião islâmica, apenas 400 milhões de pessoas são árabes. Muitas vezes nós confundimos povo com a religião. Jamais podemos dizer “povo cristão”. Qual seria a semelhança de um cristão inglês com um brasileiro? Nenhuma! O que os une é apenas a religião. Não podemos dizer “povo muçulmano”, e muito menos achar que todos os árabes são membros da religião islâmica.

Como dissemos acima, vemos nos xiitas uma compreensão melhor da luta anti-imperialista. Mas não que entre os sunitas não existam combatentes anti-imperialistas. Mas boa parte destes, por influência Saudita com o wahabismo e do salafismo (mais forte no Qatar), tem dado combate mesmo tanto aos xiitas quanto a cristãos em países como o Líbano e a Síria. Lamentamos isso, pois o imperialismo bate palmas para esse comportamento.

No Oriente Médio, formou-se o que vem sendo chamado de Arco da Resistência, com os países acima mencionados, mais os nasseristas, socialistas, comunistas e patriotas em geral que defendem um Oriente Médio sem a presença e a influência nefasta dos EUA. Em especial os xiitas, não aceitam jamais que os EUA mantenham duas bases militares exatamente ao lado das cidades mais sagradas para a sua religião, que são Meca e Medina. Eles dizem que a Arábia Saudita está nas mãos de infiéis e traidores do Islã, por entregar parte de seu território aos EUA. Muitas vezes eles usam o termo “grande satã”.

Nesse sentido, entendemos que o Islã e seus seguidores jogarão cada dia um papel mais preponderante e decisivo na luta contra o mundo unipolar, pois acabam defendendo a multipolaridade, que os beneficiaria. Por isso essa aliança ampla, que em algumas localidades não é formalizada, mas apenas tácita.

Eu arrisco dizer que ela começou na Índia no dia 1º de março de 2006, quando George W. Bush (filho) foi recepcionado com uma das maiores manifestações políticas que esse país já tinha presenciado. Ela só foi esse sucesso por uma aliança estabelecidas entre os comunistas indianos – país onde são fortes – com os muçulmanos e patriotas em geral que repudiaram a visita do chefe do imperialismo ao seu país.

Acredito que essa aliança, que não é formal, mas apenas tácita, deve se consolidar em torno de uma plataforma comum, que leve em conta a política da não interferência nos assuntos dos países (autodeterminação dos povos), a soberania nacional e a busca de um mundo multipolar. Acho que veremos em breve isso acontecer.

 


* Lejeune Mirhan é sociólogo, escritor e analista internacional. Foi professor de Sociologia da Unimep (por 20 anos). Presidiu a Federação Nacional dos Sociólogos do Brasil (1996-2002).  É colaborador dos portais Fundação Grabois, Vermelho, do Duplo Expresso, B247, entre outros, e da revista Sociologia, da Editora Escala.

* * *

LM1 – Para o aprofundamento sobre o tema das religiões monoteístas, recomendo a leitura de Os monoteístas – Os povos de Deus (volume 1), de Francis Edward Peters, editado pela Editora Contexto, em SP, em 2007, com tradução de Jaime A. Clasen, com 360 páginas.

LM2 – Garaudy justifica isso com a seguinte passagem: “Deus revela a sua palavra e a sua lei e não a si mesmo. Para um muçulmano, acreditar que o ‘verbo se fez carne’ ou ainda aplicar a Deus em ‘nome do pai’ seria alterar a transcendência de Deus”. Página 50 do livro referenciado em nota posterior.

LM3 – Para entender melhor essa questão dos Imãs xiitas, veja o verbete Os Doze Imãs na Wikipédia, acessado em 18/fev/2019, às 14:40h.

LM4 – Ver o livro de Karen Armstrong, uma ex-freira católica de Londres, das mais respeitadas pesquisadores das três religiões monoteístas. Um de seus livros é O Islã editado no Brasil pela Editora Objetiva, Rio de Janeiro em 2001, página 112. Ela tem 12 dos seus inúmeros livros traduzidos para o português (do Brasil), dos quais eu li nove deles.

LM5 – A comprovação disso está no sugestivo do excelente livro, cujo título é Islã: o credo é a conduta, também editado pela Vozes, no Rio de Janeiro, em 1990, organizado por Roberto S. Bartholdo Jr. e Arminda Eugênia Campos, com 340 páginas.

LM6 – Adoto em minhas citações do Corão a edição da Folha de São Paulo, da sua coleção intitulada “Livros que mudaram o mundo”, editada em São Paulo em 2010, cuja tradução primorosa foi feita pelo meu amigo Prof. Samir El Hayek. O livro possui 704 páginas e exatas 2.598 notas explicativas.

LM7 – Recomendo expressamente a leitura de um de seus livros com tradução para o português do Brasil, intitulado Promessas do Islã, traduzido por Edison Darcy Heldt, da Editora Nova Fronteira, publicado no Rio de Janeiro em 1988, com 192 páginas.

LM8 – Estas duas passagens estão no seu livro já referenciado, nas páginas 23 e 24.

LM9 – Essas são passagens do livro Beharol Anvar, de Allame Majlesi, volumes 1 e 2, páginas 32 e 195.

LM10O Islã, obra já citada, página 208.

LM11 – Alcorão, edição citada da Folha de São Paulo, página 386.

LM12Opus citatus, página 353.

LM13Opus citatus, página 383.

LM14Sociologia do Islã, de Enzo Pace, editado pela Editora Vozes, , Rio de Janeiro, 2005, página 91.

 

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Redação D.E.

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