A Nova Grande Crise – Parte I: Europa torna economia global instável e estraga a Pax Americana

Por Gustavo Galvão*, para o Duplo Expresso

A resposta europeia à crise de 2008 foi a mais potente política mercantilista da história. Isso significa que os europeus aplicaram ativamente uma política de exportar desemprego e empobrecer outros países, especialmente do Terceiro Mundo.

A crise de 2008 deixou os EUA e a Europa aterrorizados. Temiam que suas economias afundassem como na crise de 29/30, também chamada de Grande Depressão, quando o PIB de alguns países caiu quase a metade em 3 anos.

A grande depressão é basicamente um fenômeno dos EUA, Europa e regiões que lhe eram submissas.

Um dos diagnósticos principais sobre as causas da Grande Depressão é que o colapso do crédito externo e os consequentes ataques cambiais generalizados na periferia (incluindo a maior parte da Europa nessa periferia) fizeram todas as economias mundiais se fecharem às importações e, portanto, acabou com o mercado para as exportações de manufatura dos países industrializados, especialmente EUA, gerando ainda mais perda de emprego nos países desenvolvidos. O comércio mundial atingiu níveis mínimos que só foram recuperados décadas depois. Porém, sem reservas cambiais para fazer importações, muitos países, como Brasil de Vargas, aproveitaram esse período para iniciar seu processo de industrialização, derrubando novamente as exportações de manufaturas do mundo desenvolvido.

Com esse diagnóstico na mão, os países desenvolvidos que sempre se reuniram no chamado G7, dos sete países mais ricos do mundo, convidaram, dois meses após o início da crise de 2008, grandes países em desenvolvimento em um novo grupo, chamado desde então de G20. O G7, os ricos, à beira da falência, pediram para os pobres, pertencentes ao G20, para não adotarem nenhuma política protecionista e se possível abrissem mais seus mercados, não respondendo às políticas protecionistas que seriam implantadas pelos ricos.

Os ricos disseram que estavam na pior e era agora a hora dos pobres ajudarem os ricos. Ninguém se opôs, talvez porque os pobres tenham ficado muito felizes por terem sido convidados a participar de um clube tão seleto. E assim foi feito.

Essa política se consistiu em reduzir o consumo de importados na Europa, exportar o máximo e sugar o máximo de renda de outros países. O mercantilismo europeu chega ao limite de incentivar a imigração de ricos de países pobres para que gastem lá toda a riqueza que conquistaram explorando o trabalho ou as riquezas naturais em seus pobres países de origem.

O cúmulo nesse caso é o incentivo à imigração de aposentados de países pobres como o Brasil para gastar lá na economia europeia gerando emprego e renda lá. Os europeus estão convidando nossos aposentados a gastar todo o dinheiro da sua aposentadoria paga com impostos cobrados sobre os pobres daqui em troca de um passaporte de cor vinho. Ou de um green card no caso do Joaquim Barbosa.

Pior, não há contrapartida. Eles ainda possuem uma política explícita de impedir a emigração de aposentados europeus para que não gastem seu dinheiro em países pobres como o nosso. Se um aposentado europeu resolver morar no Brasil, perderá 50% da aposentadoria e ainda perderá os direitos à saúde pública europeia. Ou seja, os aposentados europeus vivem hoje prisioneiros à Europa. Inclusive aqueles imigrantes de países pobres que trabalharam toda vida para construir a riqueza europeia não podem mais realizar seu sonho de voltar a seus países de origem após a aposentadoria.

Por causa desse tipo de política, hoje, a Europa é a maior exportadora mundial de desemprego. Essa política é claramente evidenciada pelo superávit em conta corrente de 405 bilhões de dólares. A Zona Euro está sugando para si, numa postura individualista, boa parte da renda excedente Global.

Essa postura egoísta ajuda a explicar a surpreendente (para os europeus) indisposição de Trump com seus velhos aliados da OTAN.

O superávit da Zona Euro já é quase igual ao déficit dos EUA e isso ajuda a eliminar um dos principais fatores de estabilidade econômica da ordem global neoliberal: o déficit em conta corrente global dos países desenvolvidos, que permite que os países mais pobres, mesmo com menos tecnologia possam ter um nível razoável de exportações e reservas cambiais para manter uma economia estabilizada.

Poucos países tem o privilégio de emitir uma moeda de uso global. Essa moeda hoje é basicamente o dólar. O euro tem um papel secundário nesse aspecto. Todos os demais países dependem de exportar mais do que importar ou se endividar perigosamente no exterior (por pouco tempo) para poder abastecer suas populações com alimentos, energia, tecnologia ou bens de consumo.¹

Isso significa que a maioria dos países em seu comércio internacional vivam de pires na mão mendigando aos países ricos para juntar alguns dólares para suas chamadas reservas cambiais. Assim todos os países que não querem entrar no SPC, no SERASA dos países – chamado também de FMI – tem que exportar mais do que importar para acumular as tais reservas cambiais.

Isso não significa que os Estados Soberanos não possam ter déficit públicos em moeda nacional, podem sim, o quanto quiserem, o déficit público em moeda nacional não é um mal, ao contrário é um bem, é ótimo para a economia e para a sociedade dos países. O que faz realmente mal é a austeridade fiscal, como tem mostrado a história recente do Planeta. Obviamente, tudo o que falei é o contrário do que diz a Miriam Leitão da Globo, o que não deixa de ser um sinal de coerência ….²

Um grande déficit público além de gerar empregos, construir infraestrutura e oferecer serviços públicos essenciais, irriga a economia dos países de moeda e títulos de dívida pública que são fundamentais à boa saúde financeira das empresas, bancos e famílias. Se um governo não faz muito déficit público, vai faltar dinheiro e títulos públicos para esses diversos entes privados manter em seus patrimônios e, assim, se sentirem seguros para investir. Empresas e famílias sem dinheiro no Banco, bancos sem dinheiro em seus caixas eletrônicos estarão sempre em vias de estarem quebrados e não fazendo investimentos.

Assim, quanto mais déficit público, mais saudável estarão as carteiras de investimentos e menor será o endividamento dos diversos entes do setor privado. O setor privado quando está endividado não investe. Para o setor público, o volume de endividamento em moeda nacional não afeta sua capacidade de investimento.

Isso explica aliás, porque os Tubarões do setor financeiro não gostam de déficit público. Se os governos reduzem muito o déficit, a economia acabará em uma crise financeira por falta de dinheiro e títulos públicos na posse das pessoas e empresas. Na crise, os bilionários, que se prepararam, compram a preço de banana os bens daqueles que não se preparam. Por isso existe a expressão inglesa comum usada quando alguém pergunta como comprou aquela mansão ou castelo, a pessoa responde: “você não aproveitou a última crise?”

O mesmo vale para o sistema global dos países. Os EUA funcionam como o Banco Central, ou o Estado Global do mundo por oferecerem a moeda e os títulos públicos que os países precisam guardarem em suas reservas cambiais e assim se sentirem seguros para investir, consumir e importar.

Assim os EUA precisam estar sempre em déficit no balanço de pagamentos e também em conta corrente (de forma simplifica, importando mais do que exportando) para que os outros países acumulem superávits em conta corrente (ou seja, exportando mais do que importando). Quando isso acontece a economia global se mantém estável, porque existe reservas cambiais disponíveis para todos os países se sentirem seguros para estimular o consumo interno.

Os países tem uma certa meta informal de acumulação de reservas por ano (ou não perda de reservas), se os EUA não tiverem déficit em balanço de pagamento suficientemente alto, os países que estão buscando acumular ou não perder reservas começarão a entrar em crises para evitar o crescimento das importações, se obrigando a desvalorizar o câmbio, aumentar os juros, fazer austeridade fiscal, protecionismo ou dar calote na dívida externa. Quando muitos países fazem isso ao mesmo tempo, a economia, as finanças e a cooperação geopolítica mundial entram em colapso. Esse é exatamente o quadro dos anos 30 do século XX.

Dessa forma, o imenso déficit em conta corrente dos EUA é que mantém a relativa estabilidade financeira e geopolítica global em torno dos princípios liberais, financistas e relativamente cooperativos em torno do livre comércio desde o fim do acordo de Bretton Woods, no início dos anos 70.

Antes do fim do acordo de Bretton Woods, essa política de produzir déficit no balanço de pagamentos em relação ao mundo gerava insegurança nos EUA por causa dos riscos de perdas de reservas em ouro, uma vez que o dólar possuía uma cotação fixa em relação ao ouro. Essa insegurança era resumida no chamado Dilema Triffin.

O Dilema Triffin se refere à ao dilema dos EUA ao buscar manter a estabilidade e a prosperidade global através da necessidade de manutenção de déficit na conta corrente do balanço de pagamentos³ ao mesmo tempo em que isso aumentava o risco dos EUA ficarem sem reservas em ouro. Se os países em geral acumulasse grandes volumes de reservas cambiais em dólar, poderiam trocar parte delas por ouro no Banco Central dos EUA. Esse processo, que foi inclusive iniciado pelo Presidente francês, Charles de Gaulle, o que deixou os EUA com ódio do mesmo.

Se o resto do mundo estiver continuamente acumulando reservas em dólar, por meio do déficit em conta corrente dos EUA, um dia, com uma pequena fração dessas reservas, comprarão todo o ouro dos EUA, que não conseguirão assim manter a paridade do ouro com o dólar.

Para evitar essa situação e superar o dilema Triffin e a política nacionalista das França Gaullista, os EUA romperam com o acordo de Bretton Woods em 1971 e a paridade do dólar com o ouro. A partir desse ponto, o mundo entra na era das taxas de câmbio flutuantes que permitem que os EUA aumentem continuamente o déficit comercial sem que isso causasse qualquer problema para si. Desde então, eles podem comprar tudo no mundo todo pagando em um papel-moeda que não lhes custa na produzir. E o engraçado é que o mundo lhe agradece por isso, porque sabe que guardar aquele papel era o que lhe garantia estabilidade financeira e segurança para investir no progresso material.

A crise que mudou tudo e o protecionismo europeu

Essa situação começa a mudar quando a Europa reage à crise de 2008 e à crise da Europa Mediterrânea de 2010 com uma política altamente protecionista baseada em:

1) desvalorização do euro por meio da crise financeira do sul do continente levar à fuga de capitais em direção ao dólar

2) taxas de juros extremamente baixas que favorecem o investimento industrial, as exportações industriais da Zona Euro e a competitividade dos bancos europeus nos empréstimos internacionais. Em tese, essas taxas são justificadas para não deixar que os europeus do Mediterrâneo quebrem em razão da política de austeridade fiscal que foram forçados a implementar.

3) austeridade fiscal para desvalorização do salário e redução das importações por limitações ao consumo

4) diversas políticas explicitamente de limitação das importações e subsídio às exportações

5) políticas de extração de renda, cérebros, aposentados e capitais de países em desenvolvimento

Esse conjunto de políticas protecionistas são muito bem sucedidas em produzir um imenso superávit na balança comercial e de rendas da Europa, que chegou pela primeira vez em décadas no mesmo patamar do déficit dos EUA, que tinha a função de prover os diversos países do mundo com moeda e títulos públicos compor suas reservas cambiais. Com excedentes de reservas cambiais, os países se sentiam à vontade para reduzirem as taxas de juros e expandirem o investimento público e assim crescer e gerar empregos em harmonia dentro do sistema da Pax Americana.

Enxugamento da liquidez europeia e a Pax Americana

Porém, nos últimos anos, a liquidez com que os EUA abastece o mundo, está sendo enxugada pela Europa e pelo Leste Asiático (Japão, China, Coreia e Taiwan). Consequentemente a grande maioria dos países do Terceiro Mundo está com um imenso déficit comercial com a Europa e o Leste Asiático, e, portanto, tomando emprestado, principalmente com bancos europeus, que conseguem taxas de juros melhores do que os bancos americanos, em razão da política de juros zero ou negativo que ainda prevalece na Europa. Um aspecto fundamental do protecionismo europeu são exatamente essas taxas de juros muito baixas.

Esse conjunto de políticas faz com que a Zona Euro tenha se tornado um problema para a estabilidade financeira global da Pax Americana, pois está tornando o Terceiro Mundo novamente dependente de financiamento externo crescente e propenso a uma nova onda de crises cambiais, como temos vistos na Turquia, Argentina e Brasil em 2015 e agora novamente em 2018. A diferença é que os bancos europeus agora tem um papel mais relevante nesses empréstimos do que os bancos americanos, em razão da sua política protecionista e de estímulo à permanente crise bancária no Mediterrâneo.

Trump percebe os riscos e surpreende

Melhor do que o Deep state militar, Trump ou seus velhos assessores nacionalistas ou de Wall Street parecem que estão percebendo de forma mais clara esse papel desestabilizador do novo regime econômico europeu imposto pela austeridade alemã. Ele quer os EUA liderando uma nova era de progresso global enquanto que o Deep state parece que tem como prioridade manter o apoio político europeu à OTAN e suas aventuras militares no entorno do mediterrâneo e da Rússia.

Ao contrário dos anos 90, quando os ataques cambiais eram apenas aventuras especulativas para enriquecer bilionários de Wall Street, agora elas passam a ter novas consequências geopolíticas. A China, com mais de 3 trilhões de dólares em reservas, portanto, quebrou o monopólio do FMI como emprestador em última instância para os países quebrados por ataques cambiais.

Se os emergentes começarem a quebrar agora, como está acontecendo com a Turquia, eles não ficarão reféns do FMI e de suas políticas de submissão, privatização, desnacionalização e massacre das políticas sociais e da classe trabalhadora. A China não exige nada disso para conceder seus empréstimos e investimentos em infraestrutura.

E esse fenômeno começa a colocar dúvidas sobre a política monetária americana. Na última semana, em talvez um momento único na história, um Presidente, Trump, exige publicamente que o FED, o Banco Central dos EUA, não aumente os juros, destruindo a áurea sagrada de independência do Banco Central que os EUA sempre tentaram impor ao resto do mundo.

Se os EUA aumentarem mais os juros, vai ser um massacre generalizado sobre as moedas do Terceiro Mundo. Quando isso acontecer, veremos um enxame de jatos presidenciais voando para Pequim para beijar a mão de Xi Jinping. Afinal isso é muito melhor do que ajoelhar no milho da austeridade do FMI. Infelizmente não podemos esperar do governo Temer e da maior parte dos seus potenciais sucessores nada mais do que ajoelhar no milho e seguir as ordens egoístas do chamado “Ocidente”.******

Notas

1 Isso faz com que, em termos de dólares, mas não em termos de moeda própria como dizem os neoliberais da Globo, os países funcionariam um pouco uma “dona de casa”, que também não pode emitir a moeda que usa para seus pagamentos.

2 Aliás, pode-se interpretar tudo o que ela diz pelo contrário, se ela diz alto, pode saber que é baixo, se ela diz forte, pode saber que é fraco. Ela não vacila, podemos sempre confiar na diligência dela em atender os desejos dos patrões, que não tem interesse em informar e levar conhecimento real ao povo.
3 Ao contrário do que dizem alguns autores, não basta aos EUA terem déficit no balanço de pagamentos (renda, comércio ou movimento de capitais), ele tem que ter déficit em conta corrente (renda e comércio) porque os países desenvolvidos ou que pretendem se industrializar não querem acumular reservas cambiais por meio de endividamento externo, mas por meio de acumulo de saldo comercial (exportações menos importações).

*Gustavo Galvão é economista pela UFMG, doutor em economia pela UFRJ, funcionário do BNDES, assessor parlamentar e comentarista de economia do Duplo Expresso.

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