EUA: O mito da neutralidade da Suprema Corte
Da Redação do Duplo Expresso,
4/7/2018, David Schultz, Counterpunch
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
“Ao se autoatrelarem aos Supremos Tribunais, os liberais reciclavam o ceticismo dos impérios, que jamais levaram a sério a soberania do povo e a política de massas.” 6/10/2016, “Contra o(s) Supremo(s) Tribunal(ais)”, Rob Hunter, Jacobin Magazine, traduzido em Blog do Alok*
“Todas as condenações em processos de impeachment na história dos EUA (oito) foram contra juízes.” 28/8/2018,“Em defesa de dar um jeito na Suprema Corte”, Todd N. Tucker, Jacobin Magazine, traduzido em Blog do Alok**
Há nos EUA mito poderoso e persistente, que foi afinal detonado quando a Suprema Corte encerrou os trabalhos no final de 2017. Falo do mito segundo o qual haveria marcada separação entre a lei e a política, ou, pelo menos, que a lei poderia conter as escolhas políticas. Com decisões (todas essas aprovadas por 5-4 votos) a favor da proibição de viagens do presidente Trump, derrubando leis sobre a contribuição sindical de sindicatos do setor público, e a renúncia do juiz Kennedy, aquele mito afinal desabou.
O mito da lei foi bem descrito por um autor do século 19, Alexis DeTocqueville, que escreveu em Democracy in America: “Pode-se dizer que absolutamente não há questão política nos EUA, que, mais cedo ou mais tarde, não seja convertida em questão judicial.” A frase captura dois aspectos do mito da lei.
Primeiro, que em algum momento todas as questões políticas nos EUA sempre são convertidas em questões legais que possam ser ‘resolvidas’ nos tribunais, bem longe do povo que vota.
Segundo, dar solução judicial a controvérsias significa que a lei pode(ria) efetivamente resolver disputas políticas, talvez, mesmo, permanentemente, dado que a decisão sempre será tomada em campo estritamente constitucional.
Esse mito reapareceu ativo em vários aspectos, ao longo da história. Um desses aspectos está em assumir que a Suprema Corte estaria acima da política, e que decidiria a partir do que diz a lei, não a ideologia. Como o juiz John Marshall da SC-EUA disse em Marbury X Madison, talvez o caso mais importante em toda a lei norte-americana: “É enfaticamente província e dever do Departamento Judicial dizer o que é a lei.”
O outro aspecto vê-se ativo em muitos grupos que depositaram sua fé no judiciário como guardião ou protetor de seus direitos. Quem assim fez fê-lo porque não confiava na política real – eleições e votações – como meio para alcançar e manter seus objetivos políticos. Outra vez cito outro juiz, aqui Robert Jackson em West Virginia X Barnette, que pôs por escrito a opinião da maioria que derrubou a exigência da recitação do Juramento de Lealdade à Bandeira dos EUA: “O direito individual à vida, à liberdade e à propriedade, à livre manifestação do pensamento, a uma imprensa livre, à liberdade de culto e de reunião, e outros direitos fundamentais não serão submetidos a votação; não dependem do resultado de qualquer eleição.”
A lei aí está em oposição à política, a lei dá limites à política e, nos termos acima, é a lei que faz do judiciário o mais radical e absoluto protetor do aborto, dos gays, das minorias todas e dos direitos de livre manifestação do pensamento.
CONTUDO, a realidade que só faz crescer e crescer é que a lei não está acima da política; e que o judiciário não usa a lei para resolver questões políticas, mas, isso sim, as próprias decisões são políticas. Pesquisas de ciência política mostram que com alta frequência, os votos individuais de cada juiz da Suprema Corte refletem as próprias fés e crenças políticas do juiz. Na história recente nos EUA o melhor indicador para prever como cada juiz da Suprema Corte votará é considerar o presidente que o nomeou. Na pesquisa que fiz sobre o juiz Scalia, pode-se demonstrar nítido viés na direção de decisões baseadas no matiz político da questão apresentada ou dos litigantes. E o mesmo vale para os atuais membros da Suprema Corte.
Mas até o ano 2000, a Suprema Corte dos EUA conseguia administrar a própria reputação e escondia-se por trás do mito da lei.
Foi em Bush X Gore, quando a Suprema Corte decidiu o resultado de uma eleição presidencial, que a opinião pública claramente se dividiu sobre a ‘política’ da Suprema Corte. Essa divisão só cresceu, de lá até hoje. Pesquisas sugerem que a confiança na neutralidade da Suprema Corte está em forte declínio e que, cada dia mais, os juízes da Suprema Corte são vistos pela opinião pública como políticos togados.
O juiz Roberts, que, na audiência de confirmação disse que “Meu serviço é gritar “gol” ou “bola fora”, não é driblar nem cabecear”[1] parece o gerente de um time político de quatro juízes jogando contra outro time de quatro, duelando para conseguir que o juiz oscilante Anthony Kennedy chute em gol e acerte a favor de um dos times.
Enquanto esteve na Corte, o juiz Kennedy foi voto crucial em casos decididos por 5 a 4. Em muitos anos esteve com a maioria 90% das vezes, e nas decisões por 5 a 4 em alguns anos foi o voto decisivo em 100% das votações. Nos últimos 30 anos, a Suprema Corte dos EUA foi o “Tribunal do juiz Kennedy”, porque promoveu o equilíbrio do poder naquela corte e conteve as ideologias mais extremadas. Mas até ele mostrou seus vieses políticos pessoais.
Em Citizens United[2] X Federal Election Commission, a Suprema Corte assinalou, depois da exposição oral inicial, que queria decidir questão mais ampla do que a apresentada originalmente. Quando afinal decidiu, o voto favoreceu o direito à livre manifestação do pensamento das grandes empresas, e definiu como censura os esforços para regular a ação político-eleitoral das empresas. E agora, em Janus X AFSCME [American Federation of State, County and Municipal Employees (Federação Norte-americana dos Funcionários do Governo Federal, Estadual e Municipal)], decidiu contra os sindicatos; e o quinto voto, de desempate, foi do juiz Kennedy.
Com a morte de Scalia, a demora planejada para impedir que Obama indicasse um sucessor, a indicação de Neil Gorsuch, escolhido por Trump e, agora, a renúncia/aposentadoria do juiz Kennedy e a política na indicação de quem o substitua só fizeram exacerbar – e assim continuará – a desmitologização da lei. Como é muito provável, os juízes continuarão a votar mais por ideologia que pela lei – como sugerem os estudos de ciência política.
É péssimo. Um dos últimos reinos ainda não marcados por polarização e política partidária dentro do poder nos EUA parece ter entrado em extinção. Extinta ou desmoralizada também a Suprema Corte, os cidadãos ficarão sem defesa ante o extremismo [e o golpismo] que é marca registrada da política contemporânea [essa, precisamente, é a situação desesperada que vivemos hoje no Brasil do golpe “com STF-com-tudo”… (NTs)].
Talvez a única parte luminosa e promissora disso tudo seja o reconhecimento dos limites de constitucionalizar a política.
[BARRA LATERAL: Hoje, em tuíto, o juiz Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal do Brasil, falou em “30 anos de judicialização intensa”, para o mesmo conceito, e em “desjudicialização”, como remédio. (São os 30 anos da chamada “redemocratização” que teria começado com Sarney… Quer dizer, só rindo. Mas, ok, parece que, em Londres, o juiz Gilmar Mendes vê com clareza, embora sem indignação, o Brasil do golpe).
Gilmar Mendes Conta verificada @gilmarmendes 4 de jul . Acabo de falar em um seminário na Universidade de Londres. Aproveitei para dizer que, nos 30 anos da Constituição, nós devemos planejar os 30 anos vindouros. Após 30 anos de judicialização intensa, devemos preparar, cuidadosamente, um processo de desjudicialização.
Li pelo menos uma resposta interessante:
XXXXXXXXX 9 h Há 9 horas Em resposta a @gilmarmendes
Concordo. Superjudicialização capou poder do VOTO e deu poder fake-democrático a agentes de DESCIVILIZAÇÃO e golpismo. Mto difícil q os fake-democratas superjudicializados juízes q temos se autodesjudicializem, mas a estratégia é a força dos oprimidos. Segue a luta. Venceremos.]
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Nessa linha, uma lição que se pode aprender é que o judiciário não é o melhor lugar, nem o lugar final onde promover uma agenda política.
Eleições são essenciais, e os grupos devem poder recorrer à urna, ao voto e à política para alcançar poder legítimo e proteger os próprios direitos ou promover os próprios interesses. Ninguém deve depender de cortes judiciais para fazer avançar a democracia.*******
* Epígrafe acrescentada pelos tradutores.
** Epígrafe acrescentada pelos tradutores.
[1] Orig. “My job is to call balls and strikes and not to pitch or bat”, do jargão do beisebol. Acima, ‘adaptado’ ao futebol, para facilitar a leitura (NTs).
[2] “Citizens United” é uma ONG de liberais conservadores, sem finalidades de lucro, fundada em 1988. Em 2010, a ONG venceu um caso na Suprema Corte dos EUA, que considerou ilegal uma lei federal que proibia empresas e sindicatos de fazer doações e gastos associados e eleições federais [NTs, com informações de Wikipedia].
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