A palavra-chave no “show” Trump-Kim

Da Redação do Duplo Expresso,

13/6/2018, Pepe Escobar, Asia Times

Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu

O reality-TVshow geopolítico de Trump-Kim – para alguns, evento surreal – recebeu atenção sem igual nos anais da diplomacia internacional. Será difícil superar a cena em que o presidente dos EUA abre um iPad e mostra a Kim Jong-un um trailer estiloso à moda dos filmes de ação classe “B” dos anos 1980s – completado com a efígie de Sylvester Stallone – em que os dois líderes são apresentados como heróis destinados a salvar os 7 bilhões de habitantes do planeta.

Longe da TV, o ex-“Homem Foguete”, hoje já tratado respeitosamente por Trump como “Chairman Kim”, marcou formidável gol de placa, ao fazer varrer completamente a temida sigla CVID – de “completa, verificável e irreversível desnuclearização” – do texto final da declaração conjunta.

Ao longo das negociações pré-encontro, a República Popular Democrática da Coreia (RPDC) sempre destacou uma estratégia de “ação em troca de ação” para chegar à desnuclearização, com Pyongyang recebendo compensações a cada passo do caminho, em vez de só haver compensações depois de a desnuclearização estar completada – processo que pode demorar mais de uma década.

A declaração conjunta de Singapura consagra exatamente o que a parceria estratégica Rússia-China – formalizada na recente reunião de cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) – já vinha sugerindo desde o início: congelamento recíproco.

A RPDC abstém-se de quaisquer novos testes nucleares e de mísseis, e EUA e Coreia do Sul param com seus “jogos de guerras” (como disse Trump, “war games“).

Esse desdobramento lógico do mapa do caminho sino-russo baseia-se no que o presidente da Coreia do Sul Moon Jae-in decidiu, em comum acordo com Kim Jong-un, na cúpula intercoreana realizada em abril último. E isso se conecta com o que a Coreia do Norte, a Coreia do Sul e a Rússia já haviam discutido na cúpula do Extremo Oriente em Vladivostok em setembro passado, como Asia Times noticiou (traduzido aqui), de integração econômica entre a Rússia e as duas Coreias, incluindo a conexão crucialmente importante entre uma futura ferrovia Trans-coreana e a Trans-siberiana.

Mais uma vez, tudo aí tem a ver com a integração da Eurásia; maior comércio entre Coreia do Norte e Nordeste da China, mais diretamente com as províncias de Liaoning, Jilin e Heilongjiang; e total conexão física das duas Coreias com as regiões centrais da Eurásia.

É ainda mais uma instância de encontro das Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE), com a União Econômica Eurasiana (UEE). E não por acaso a Coreia do Sul quer conexão cada vez mais profunda com os dois blocos, da ICE e da UEE. Qualquer dúvida, releia a “Declaração de Panmunjom pela paz, prosperidade e unificação da península coreana“, de 27/4/2018

A declaração conjunta de Singapura não é acordo: é declaração. O item absolutamente chave é o n.3: “Reafirmando a Declaração de Pahmunjom de 27/4/2018, a RPDC compromete-se a trabalhar para a completa desnuclearização da Península Coreana.”

Significa que EUA e RPDC trabalharão rumo à desnuclearização não só da RPDC, mas de toda a Península Coreana.

Muito mais que isso, em “…a RPDC compromete-se a trabalhar para a completa desnuclearização da Península Coreana”, as palavras-chave são de fato “Reafirmando a Declaração de Pahmunjom de 27/4/2018“.

Mesmo antes de Singapura, todos sabiam que a RPDC não se “desnuclearia” [ing. “de-nuke“, terminologia de Trump) em troca de nada, especialmente quando só recebera dos EUA vagas “garantias”.

Como se podia prever e previu-se, os dois lados, neoconservadores e imperialistas humanitários dos EUA estão unanimente babando de fúria, imprecando contra a falta de “carne” na declaração conjunta. Verdade é que há ali muita carne. Singapura reafirma a Declaração de Panmunjom, que é acordo entre as duas Coreias.

Ao assinar a declaração conjunta de Singapura, Washington foi dado por notificado quanto à Declaração de Panmunjom. Em termos de lei, quando você é notificado de um fato você deixa de poder dizer, adiante, que ‘não sabia’ ou que ‘nem quero saber’. O compromisso da RPDC de abrir mão de seu armamento nuclear nos termos da declaração de Singapura é reafirmação de seu compromisso nos termos da Declaração de Panmunjom, naqueles termos, não em outros termos, com todas as condições associadas àqueles termos. E Trump confirma esse entendimento, ao assinar a Declaração de Singapura.

A Declaração de Panmunjom destaca que: “A Coreia do Sul e a Coreia do Norte confirmaram o objetivo comum de alcançar, através da desnuclearização completa, uma península coreana livre de armas nucleares. A Coreia do Sul e a Coreia do Norte compartilham a opinião de que as medidas iniciadas pela Coreia do Norte são muito importantes e cruciais para a desnuclearização da península coreana e concordaram em buscar ativamente o apoio e a cooperação da comunidade internacional para alcançar a desnuclearização da península coreana.”

Esse é o compromisso. “Comunidade internacional”, como todos sabem, é palavra em código para “EUA o Grão Decididor Universal.” Se Washington não retirar seus militares da Coreia do Sul, não haverá desnuclearização. Na essência, foi esse o acordo discutido entre Kim e Xi Jinping nos dois encontros crucialmente importantes que tiveram antes da reunião de Singapura. Tirem os EUA da península, e podem contar com ela.

É isso. A palavra-chave na declaração conjunta de Singapura, para a qual deve convergir o foco é “reafirmando”.*******

 

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