A classe média, o sequestro ideológico e o cativeiro midiático

Por Yorkshire Tea, para o Duplo Expresso

No Brasil, um dos principais obstáculos à melhoria de condições de vida da maioria esmagadora da população é a classe média tradicional. Aquela que nasce com um bilhete premiado na loteria da vida, mas não hesita um segundo sequer em afirmar que tudo o que conquistou foi fruto do próprio esforço, que nada lhe veio de graça.

É até possível que, na classe média, haja aqueles que tenham nascido em famílias paupérrimas. No entanto, esses formam a exceção que confirma a regra. Parte considerável dos privilégios econômicos e sociais desfrutados pela classe média tem relação com a origem familiar. O grosso desse extrato nasce em famílias que já dispõem das condições materiais que franqueiam o acesso ao que há de melhor em termos educacionais e culturais. Assim, seus filhos são matriculados nas melhores escolas (majoritariamente particulares), o que permite que conquistem vagas nas melhores universidades (majoritariamente públicas). Graças a essa enorme vantagem inicial, após a conclusão dos estudos, conseguem ocupar os melhores cargos e posições na vida profissional, tanto no setor público (por meio de concursos disputadíssimos e que, muitas vezes, requerem anos de dedicação exclusiva) quanto no privado (que, além da educação formal, dependem, frequentemente, de uma rede de contatos formada por parentes, amigos e conhecidos, com acesso a informações privilegiadas, as quais permitem que estejam no lugar certo, na hora certa e que falem com a pessoa certa, aumentando, assim, suas chances de contratação). Enfim, é como se, na corrida da vida, uma criança de classe média nascesse com dez voltas de vantagem sobre uma criança pobre numa prova de nove voltas.

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Esse extrato da população, por conviver praticamente o dia inteiro exclusivamente entre iguais, acaba adotando atitudes, ideias, modismos e padrões que vê espelhados entre os pares. E isso acontece dentro e fora de casa: filhos imitam pais, colegas imitam colegas (primeiro, na escola, e, depois, no trabalho), amigos imitam amigos. Todos repetindo uns aos outros, passando e repassando esse conjunto de valores, acriticamente, incessantemente, incansavelmente. Qual caixas de ressonância, a repetir um discurso pra lá de previsível, mas extremamente prejudicial.

Mas, em grande medida, a culpa dessa situação não é verdadeiramente da classe média. O fato é que, apesar de se considerar senhora de si e dona do próprio destino, ela é vítima de um crime do qual raramente consegue se aperceber: o sequestro ideológico. A classe média nasce, cresce, vive e morre presa num cativeiro midiático, no qual vive imersa numa realidade paralela 24 horas por dia, sofrendo uma viciante lavagem cerebral ininterrupta desde a mais tenra idade.

Assim, ao chegar à idade adulta, ainda presa nessa masmorra invisível, onde as informações que recebe, seja qual for o meio, seja qual for o veículo, muitas vezes, é quase que idêntica (bastando apenas trocar o nome do veículo), essa pessoa acaba tomando por verdadeiro aquilo que lhe vendem como realidade, não se dando conta de que, por trás da notícia “exclusiva”, da entrevista com o(a) “especialista”, do seriado “premiado”, do jornalismo “investigativo”, do humorístico “descolado”, da reportagem “denúncia”, do talk show “bacana”, das manchetes “bombásticas”, há uma série de mecanismos sofisticados, operando para distorcer a realidade, para fazer com que acredite que determinadas ideias são genuinamente suas. E esses conceitos se confundem com aquilo que é escutado em casa, dito na escola, falado no escritório, discutido no bar, entreouvido no supermercado, numa cacofonia de mensagens cujo objetivo é mesmerizar a vítima. Essas mensagens, às vezes, aparentemente contraditórias, no frigir dos ovos, seguem sempre numa mesma direção, num mesmo sentido, como um tsunami contra o qual é impossível lutar, servindo ao mesmo propósito: fazer com que a pessoa tome para si e defenda como seus interesses de terceiros. Interesses que lhes são extremamente prejudiciais, mas que, por conta dessa realidade fabricada, aceita com naturalidade, sem o menor questionamento, sem o menor constrangimento.

E é por meio desse artifício que acreditam em coisas como “meritocracia”, “vencer na vida”, “conquistar o sucesso”, identificando-se com valores e ideais dos verdadeiros “donos do poder”, aquela ínfima fração da sociedade que acumula sua riqueza sem produzir absolutamente nada. Aquela porção microscópica de cidadãos que vive de extorquir financeiramente o Estado e a Sociedade (incluindo-se aí, obviamente, a própria classe média), manipulando tanto os juros da dívida pública (por meio da SELIC) quanto os da dívida privada (por meio dos spreads bancários). E esses cidadãos, apesar de serem de carne e osso e terem endereço e telefone certos, escondem-se por trás de uma abstração propositalmente criada para desviar a atenção dos incautos: o tal do “mercado”, essa entidade fictícia que não tem cara, não tem nome, não tem RG nem CPF. E, no entanto, as ilusões do “mercado” são propagandeadas ininterruptamente, e “compradas” gostosamente – ainda que a prestações a perder de vista e embutindo juros estratosféricos – como algo natural (“a ordem das coisas”) pela classe média, cujos membros acreditam piamente no logro de serem “investidores”, “especiais”, “exclusivos”. Mera ilusão.

É justamente essa identificação com valores que não são seus – martelada no inconsciente dessas pessoas desde a mais tenra idade – que faz com que a classe média não consiga se ver nem se aceitar como sendo o que, na essência, efetivamente é: assalariada. Não importa o tamanho do contracheque, quem responde a patrão, quem depende de emprego, é e continuará sendo assalariado. Tão assalariado quanto o motorista de ônibus, o porteiro do prédio, a faxineira do escritório. E os interesses dos assalariados, certamente, não são os interesses dos rentistas, não são os interesses do “mercado”, não são os interesses do “1%”.

As políticas defendidas pelo “1%” visam um único objetivo: aumentar ao máximo possível o montante de riquezas que acumulam, não importando absolutamente as consequências que tais políticas trarão para o resto da população. E essas riquezas não surgem do nada. São extraídas da sociedade, são extraídas das famílias, são extraídas das empresas. O “1%” vive da espoliação dos “99%”. E isso tem consequências concretas na vida de todos: uma das consequências mais imediatas e visíveis do aumento da desigualdade social e da expansão do número de excluídos, é a ampliação da criminalidade e da violência urbanas. Aí, quando a classe média – que defende ferrenhamente as políticas do “1%” – sente na própria pele o resultado da concentração de renda, passa a reclamar (“Não dá mais para sair de casa!”, “Nem em shopping a gente tem segurança mais!”, “Assaltaram fulano na porta da escola!”), como se fosse a vítima das consequências dessas políticas, ignorando completamente as causas primeiras dessa situação. Ora, ao defender a ideologia do “1%”, a classe média ajuda diretamente a criar as condições que a tornam vítima do “trombadinha” da esquina, do “arrastão” na praia, do assalto na saída do cinema.

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A grande questão é: como dialogar com pessoas que vivem presas no fundo da caverna, que acreditam ser realidade as sombras que veem projetadas na parede? Como acreditarão em algo diferente, se sempre viram o mundo através das lentes da grande mídia? Não é por outro motivo que é tão difícil dialogar com representantes típicos desse extrato socioeconômico. Porém, apesar de ser uma tarefa difícil, não é impossível. Afinal de contas, boa parte das pessoas que conseguiram ler este texto até aqui, sem dúvida, faz parte dessa mesma classe média. Se todos vocês – se todos nós – conseguimos romper os grilhões que nos prendiam no cativeiro midiático, se conseguimos furar a bolha informacional que nos relegava à ignorância e nos fazia defender interesses que não são os nossos, não há motivo para que outras pessoas não consigam fazer o mesmo. Como foi que você se libertou desses sequestradores? Será que não é esse um dos caminhos possíveis para libertar outras pessoas?

 

Yorkshire Tea é tradutor e colaborador do Duplo Expresso

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