O Banquete de Herodes

 Por Carlos Krebs*, para o Duplo Expresso

Os quatro evangelhos do Novo Testamento apresentam um personagem de grande importância aos que tem fé na vida e obra de Jesus Cristo. Chama-se João Batista. Por seu nome, João testemunhou o nome de Jesus. Por seu nascimento, João testemunhou o nascimento de Jesus. Por seu batismo, sua vida, pregação, ele testemunhou Jesus. Mas foi com o sofrimento através da sua fé que ele proporcionou o maior testemunho de Jesus. O martírio de João Batista é uma representação simbólica muito forte na religião católica.

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O historiador gaúcho Francisco Marshall seguidamente faz uso de seu enorme talento (e cabedal científico) para resgatar na História Antiga exemplos capazes de permitir a compreensão do presente. Na semana passada, após a controversa sessão no Supremo Tribunal Federal, ele escreveu sobre a hipocrisia transformada em celebração pelo resultado. O prêt-à-porter da verdadeira impunidade foi ilustrado com um quadro de 1530 apresentando Salomé com a cabeça de João Batista em uma bandeja de prata.

A História de João Baptista

Em um resumo brevíssimo, o evangelho de Marcos apresenta Herodíades como uma mulher com profundo rancor contra João Batista. Este cometera a ousadia de criticar o rei Herodes Antipas por casar-se com ela. Herodes fora casado com a tia de Herodíades, que por sua vez, fora esposa do meio-irmão de Herodes – Filipe. Confundiu-se? Pois eu também.

Na celebração de aniversário do rei Herodes, a filha de Herodíades – Salomé, segundo Flavius Josephus no livro 18 da série “Antiques of the Jews” | Antiguidades Judaicas* –, dançara de maneira espetacular. O encantamento do rei foi tamanho, que este prometera a ela, como recompensa, qualquer coisa. Até mesmo metade de seu reino. Do que se sabe tantos séculos depois, Salomé ficou marcada muito mais pela representação do perigo da sedução feminina do que pela história do seu nome.

Herodíades viu nisso a oportunidade perfeita para vingar-se de João Batista, e fez a filha exigir a cabeça dele servida em uma bandeja. O rei, embora relutante, ordenou a execução para cumprir sua palavra.

Lugar

Apesar de não aparecer na Bíblia, o Livro das Antiguidades determina como local destes acontecimentos o Castelo de Mukawir em Machaeros, na atual Jordânia. Mukawir é uma palavra derivada do grego μάχαιρα (má-chaira), que significa faca ou espada em árabe. Por isso, o castelo era chamado de “Fortaleza das Degolas”. O cimo da montanha que guardava a construção é um local de peregrinações para fiéis católicos que visitam o país atualmente.

Imagem esq: “Plano Geral de Mukawir” por © Jordan Expert | Imagem dir: “Sítio Arqueológico em Mukawir” por © Jordan Expert, Machaeros | JOR (2018).

Questões

Por 48 horas no último final de semana, o Partido dos Trabalhadores recriou o Castelo de Mukawir: o Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo. Preparam um campo santo para resistir a lâmina cega daquilo que já foi justiça no país. Inflaram o ânimo dos peregrinos que correram à vigília. Prometeram uma celebração para a resistência democrática e pela defesa da Constituição brasileira.

Imagem “Luiz Inácio Lula da Silva” por © Ricardo Stuckert para o Jornal Grande Bahia.

Mas… Qual o propósito?

E quem atendeu a convocação e foi para lá, qual a história terá para contar daqueles dois dias? E quem gritou inconformado com a decretação de uma prisão ilegal? Qual o propósito de capturar o anseio de tantos, criar uma vigília, estabelecer um palanque para discursos multiplataforma, se dentro prédio, degolavam a cabeça de João BaPTista?

Quem representaria o rancor de Herodíades?

Quem seria o instrumento da vingança – a Salomé? Quem estaria seduzindo quem para obter o quê mais à frente?

Quantos carrascos fizeram fila para usar o fio da navalha como canga no ex-presidente?

Quem corresponderia o papel de Herodes, aquele “que não queria, mas já que prometera”, acabara cumprindo a encomenda da morte (ou o mandato ilegal de prisão)?

Banquete de Herodes

A diferença entre os gentis e a corte está na observação de uma cena onde há o povo representado, seus rostos e corpos são muitas vezes indistintos. Os corpos e cabeças são multifacetados. Há muitos braços e pernas e orelhas e barrigas, e onde o um são muitos.

Imagem “Degollación de San Juan Bautista y banquete de Herodes” (Degolamento de São João Batista e Banquete de Herodes) por Bartholomeus STROBEL, acervo CC Museo del Prado | SPA (1630-1633).

Na corte, cada algum, por mais nenhum que seja, quer ser uma pessoa. Olhem a representação acima de Strobel e percebam que até o martírio é recortado: fala-se dele, mas está fora de cena. Onde já se viu uma cena retratada onde todas as cabeças estão distintamente desenhadas? Onde há tantos olhos retornando ao pintor? Tudo aparece em pose exagerada. O rei está em destaque na composição, mas é retratado na altura de um infante, abaixo de sua corte, demonstrando o acolhimento do pedido como uma fragilidade quase infantil.

Desde as damas de um lado, ou os valetes de outro, o que parece ser mais importante? A cabeça servida – o tema do quadro –, ou a representação da cena? A participação daqueles figurantes é o protagonismo do vazio. Todos que buscam oferecer seu melhor ângulo são, na verdade, a repetição daquele corpo caído ao pé da cena, separado, apátrida, aquele corpo sem cabeça. Ele só tem uma coisa a oferecer: sangue. Tanto o sangue dos inocentes úteis que resistiram àquela decapitação, como o dos inúteis, que estavam junto, mas apenas assistindo.

A alegoria disso é baseada na visão daquele palanque-cadafalso, no intervalo espaço-tempo entre Mukawir e São Bernardo do Campo, entre a descrição do Novo Testamento e a indiscrição de uma leitura de carta-testamento pelo próprio degolado…

Imagem esq: The Feast of Herod por Peter Paul RUBENS CC National Galleries Scotland (1635-1638) | Imagem dir: The Feast of Herod (After Peter Paul Rubens) por Calum COLVIN CC National Galleries Scotland (1998).

 


* Carlos Krebs é arquiteto, cinéfilo, explorador de sinapses, conector de pontinhos, e mais um que acredita que o Brasil ainda tem tudo para dar certo.

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The particular vision of John the Baptist’s story and the correct location of where things happened was made possible by the provision of tripartite material and its clues – Catholic, Jewish and Arab – by my dear Jordanian friend Marwa AlKhalidi. Thank you! (A particular visão da história de João Batista, e a localização correta de onde as coisas aconteceram, foi possível graças ao fornecimento de material tripartite e suas pistas – católicas, judaicas e árabes – por minha querida amiga jordaniana Marwa AlKhalidi. Muito obrigado!)

* A passagem do Martírio de João o Batista pode ser lida no Evangelho segundo Marcos, Capítulo 6, versículos 14-29, na Bíblia Online.

** As Antiguidades Judaicas fazem parte do Projeto Gutemberg, que oferece de forma gratuita mais de 50.000 livros em formato digital.

*** Para ver em tamanho ampliado a obra de Rubens, clique aqui. Para ver em tamanho ampliado a obra de Colvin, clique aqui.

 

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