Brasil: Terra do Nunca ou Terra em Transe?

 

Por Niobe Cunha

‘Todos somos simpáticos, desde que ninguém nos ameace”
Jornalista fictício Paulo Martins, narrador do filme Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha

“Esse é um país que vai pra frente, ho…ho….ho….ho….ho”, cantavam alegremente as crianças no auge da ditadura militar (pois é, dizem que houve mesmo) perfilados pra entrar em aula. Mas a frase que sempre nos orgulhou é “O Brasil é o país do futuro”, título de um livro incomodamente ufanista, em plena ditadura militar, escrito pelo grande biógrafo Stephan Zweig. Fugido da II Grande Guerra, o cara chegou aqui, viu a abundância de verdes e águas, o poder do Amazonas, a luz calorenta deitando as cores na Baia de Guanabara e deve ter pensado: “que tirol que nada. Nicht! Vou ficar é por aqui mesmo”.

Fico procurando essa coisa de futuro e o localizo sempre no amanhã, no por vir, no mais à frente. Como apostar corrida em esteira ergométrica, sem nenhum deslocamento à frente, sempre no mesmo lugar. No outro dia, o futuro se deslocou mais para a frente, no outro amanhã e assim segue o burro a sua cenoura vindoura que ele nunca alcança. O burro nem se dá conta de que nunca vai comer a cenoura, e sua vida acaba se desenrolando em segui-la apenas, conformado, dia após dia. O que era o deslumbramento futurístico do Zweig, com seu olhar estrangeiro em fuga, sob as luzes e cores tropicais, virou a Terra do Nunca, do Peter Pan, dos Meninos Perdidos, do pó de pirlimpimpim que nos faz voar mas nos derruba das alturas. Capitão Gancho mandou escopeta atirar. Lá estamos estatelados, meio manquitolas, ajeita daqui e dali, toca em frente.

O amanhã que nos chegou depois desse voo de galinha já se deslocou mais à frente e viramos uma Terra em Transe. Governantes corruptos, partidários e aliados assassinos, direita e esquerda brincando vertiginosamente de trocar de lugar. Diz o candidato fictício: “Estou anotando tudo, tudinho!”. Saúde, educação, terra, alimento, trabalho, o de sempre. Glauber Rocha, com olhos de enxergar, traduziu imageticamente o Brasil e a América Latina que ou descrevemos com o desprezo, como se as mazelas não nos pertencessem, ou do alto do nosso púlpito piedoso nos compadecemos, imóveis. O filme traça uma linha entre a ascensão e a queda do poder e todo o invólucro que questiona a ética, ou a falta dela, ou se ela realmente algum dia existiu.

Glauber gênio, visionário, maluco-beleza, baiano porreta nos dava a exata medida de nossa situação ao construir o jornalista Paulo Martins, aparvalhado, acreditando ter algum controle sobre os fatos que se desenrolavam como deve ser: sem nenhum controle, pra nossa absoluta desgraça. Tragado pela crença cega no discurso que promete mudanças sociais, se viu apoiando, traindo, degradando, difamando e ajudando a eleger gente que antes desprezava. As cenas filmadas de forma inovadora nos contam histórias antigas, que sempre estiveram na nossa tela, à frente, sob tiros de metralhadora, Villa Lobos, jazz, comícios sobre a terra prometida. O futuro mais do que nunca como a cenoura do burro, e no nosso caso a cenoura não é simbólica: a fome, a necessidade, o desamparo, ganham mais importância do que o pensamento e a ação política. O povo, em Terra em Transe, é retratado como a própria rede de sustentação do sistema que o explora.  O filme é um túnel helicoidal de situações desorganizadas no tempo, pra frente, pra trás, e propositalmente levanta a pergunta: já vimos esse filme? Isso é passado ou futuro? Qual nosso papel nessa trama? O futuro foi ontem e agora devemos nos conformar com um presente com pinta de pretérito? Porque o Brasil tem que ser a Terra do Nunca? Porque Terra em Transe? Detesto pipoca murcha.

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Redação D.E.

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