Esquina onde se cruzam Orlando, o golpe e a educação (2), por Maria
Por Maria
Esquina onde se cruzam Orlando, o golpe e a educação (2), por Maria
Nota minha (Romulus):
Quando disse, outro dia, que ter leitores como Maria não traz vaidade, mas sim humildade, não estava exercendo falsa modéstia.
O seu relato, abaixo, sobre sua trajetória na educação – formal e em casa – vai do literário ao (levemente) técnico sem que se vejam fronteiras muito nítidas entre ambos.
Ela, como eu (““Orlando: a dor indizível de um proto-genocídio que ‘ousa dizer o próprio nome’”“) e outros leitores, identificou uma trágica esquina onde se cruzam o massacre de Orlando, a infâmia do golpe no Brasil e a falta de educação – formal e em família.
Talvez o mais correto seria dizer não há falta de educação, mas falta de certa educação: aquela que consagra como centro o humanismo e o respeito, orientando a pedagogia e o enfoque dado ao conteúdo das disciplinas.
Já outra concepção de educação abunda: aquela orientada – uso aqui as expressões da Maria – pelos valores do “individualismo possessivo e da competição”, que culminam nas loas à “‘meritocracia’ burguesa” – “meritocracia” essa escrita com quantas aspas seja possível.
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Por experiência própria, sei que alguns leitores torcem o nariz para posts longos.
Esse não é pequeno.
Mas carrega uma mensagem tão forte e é tão bem escrito que, após dois parágrafos, todos estarão fisgados como eu estive. E, no final, vão agradecer: (i) a mim, por tê-lo postado aqui, e (ii) a si, por terem ousado deixar a pequena indolência de lado.
Comecei o post dizendo que ter leitores como Maria não traz vaidade mas humildade, o que repito mais uma vez.
Ler um texto como o que vai abaixo só não me intimida de todo e não me inibe de escrever os meus próprios porque foi graças a eles que conheci Maria.
E graças a eles que posso agora partilhar com vocês a minha nova amiga.
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Por Maria
Romulus, carissimus,
Entendo do fundo do meu coração sua amiga Rô e todos os outros que concordam com você, ao associar a tragédia de Orlando àquela do nosso golpe e dos descaminhos da educação. De toda a reflexão sobre esta dor insuportável multiplicada em tantas frentes, sobraram-me, como esteio e consolo, duas palavras que reputo essenciais: humanismo e respeito. Como a Rô, por estranhos caminhos, tive o privilégio de aprender em casa valores que me serviram de balizas para toda a vida.
Lembro-me de Joaquim Nabuco descrevendo sua experiência de infância no engenho Massangana, do qual fala de modo assombrosamente belo, para concluir que a vivência daqueles 3 ou 4 anos iniciais de sua vida seriam essenciais na trajetória que o tornou um herói da luta abolicionista. A luz inigualável daquele céu de Massangana, as tardes mornas, o cheiro acre do bagaço fermentado da cana misturaram-se inextricavelmente à experiência do convívio da velha avó com os escravos que lhe serviam, ou antes, a quem ela também servia, atarefada em ampará-los nos achaques de saúde da velhice, enquanto um negro velho se encarregava de toda a administração do engenho decadente, quase já de fogo morto, e que seria liquidado pela usina. Nabuco só veio a perceber o significado da iniquidade da escravidão quando, aos 9 anos, um adolescente negro se precipitou aos seus pés implorando-lhe que pedisse à sua avó para comprá-lo, temendo ser vendido para um homem extremamente cruel, como todos sabiam, e ao qual seu senhor pretendia entregá-lo. Pois então, diria o aterrorizado Nabuco, se vendiam e compravam vidas humanas como se fossem coisas, “peças”, como os trastes da casa e os animais que entravam nos inventários, junto com os bens de raiz? Desse choque surgiria a força que o forjou para a vida e a luta pela abolição.
Em minha casa de gente humilde, sempre ouvi por horas a fio, nas tardes de costura, os mais variados relatos dos tempos de infância de minha mãe, tios e tias, vividos na roça. (“Tardes de costura” com todas as mulheres da família – em que aprendi a chulear, casear, pregar botão e fazer bainha – porque eu ia com a mãe ver modelos de vestidos nas vitrines de lojas chiques como a Clipper, para então se comprar o pano e reproduzir em casa a roupa fina de que necessitava nos dias de festa, quando não se usava uniforme, na escola de elite em que consegui ser matriculada, por especial favor do Governador do Estado (?!) a uma tia que certa vez o atendera bem como funcionária numa repartição pública…). Contavam estórias do meu avô, exímio carpinteiro, que fazia carros de boi e sabia colocar tão bem o eixo, para fazê-los “cantar” sua cantiga dolente e nostálgica, que vinha gente de longe procurá-lo para conseguir um bom carro cantador.
Quando morria alguém, ia gente avisar o avô, e lá ia ele com toda a família para a casa do falecido. Enquanto ele fazia o caixão para o enterro, minha avó ajudava a vestir o morto e preparar a comida para o velório, e as crianças saíam para o campo buscar flores para enfeitar a morte, substituindo sua feia dor por cores e perfumes que deviam alegrar os parentes. Enterrado o falecido, meu avô deixava então com a viúva uma “orde” para buscar no armazém, por sua conta, peças inteiras de tecido, o riscado e o algodãozinho para a roupa das crianças, sacas de arroz, feijão e milho, mantimentos básicos, mais óleo e peças de carne seca, além do sal e o querosene, para suprir as necessidades dos primeiros tempos da família já sem o esteio de um provedor.
Ele fazia isso de modo espontâneo, sem alarde, apenas cumprindo a obrigação milenar de misericórdia que lhe impunha sua fé: caridade e a confiança na reciprocidade, na certeza de que fariam o mesmo por sua família, caso viesse a faltar. Eram generosos valores arcaicos de dignidade, honra e respeito que definiam o que deve ser um verdadeiro ser humano. Neles fui assim socializada, e só muito mais tarde vim a reencontrá-los, na obra de Guimarães Rosa…
Depois, quando, por conta da escola, a família tentou ensinar-me os valores do individualismo possessivo e da competição, dominantes na cidade, simplesmente rebelei-me! Como não podia “passar cola” para a menina da carteira de trás, que não havia estudado, ou estudara sem conseguir aprender, quando eu sabia as respostas da prova e podia ajudá-la a passar de ano? Como, se eram coisas assim que me contavam do meu avô e se era isso que eu via todos fazerem, quando mandavam buscar no interior os filhos das irmãs casadas, abrigando-os em casa até que conseguissem emprego para trazer os pais? A “meritocracia” burguesa decididamente passou longe dessa minha formação…
É claro que havia aspectos tenebrosos em tais valores rurais e arcaicos, no duro matriarcado da família que a transformava numa verdadeira Casa de Bernarda Alba. Em especial, com relação à honra, no caso da mulher, ela se resumia basicamente em recato e preservação da virgindade e na visão do casamento como destino natural feminino. Assisti na infância a cenas apavorantes, ao ver aquelas mulheres fortes e generosas transformarem-se em verdadeiras harpias, investindo contra uma pobre prima mais velha que “dera um mau passo”… Assim, sendo o sexo um verdadeiro tabu entre essa gente que tinha em alta conta a “vergonha” na preservação da própria intimidade, eu só veria falar em homossexualidade muito mais tarde, graças a leituras que surrupiava ao acaso de alguma revista erótica (!) como Grande Hotel, que às vezes circulava meio clandestinamente na casa. E se falassem eventualmente de tais coisas, seria em voz baixa, longe das crianças…
Mas, no meu caso, tudo era diferente. Criança delicada e frágil, que trazia no corpo as marcas de uma grave enfermidade desde a mais tenra infância, eu escapava ao meu destino de mulher: “gente assim não casa”, como todos sabiam. Então, era preciso dar-me uma boa educação, para que pudesse me arranjar sozinha na vida. E a isso dedicou-se a família inteira, como tarefa coletiva.
Essa condição de criança “especial”, de uma estranha maneira, privou-me também do contágio do racismo. Fui filha única de 7 mães, irmãs da mãe que se transformou em pai, na ausência do marido que a deixara, em circunstâncias obscuras de um tempo de guerra, não inteiramente por vontade própria, mas, por coincidência, na mesma época em que a filha adoecia. Então, enquanto a mãe heroica se desdobrava em trabalho de todo tipo para ganhar a vida, as mães terciarizadas disputavam ferozmente quem conseguiria fazer a menininha pequena e frágil se alimentar melhor, preparando qualquer tipo de comida que talvez eu me convencesse a comer. É claro que, com esse tipo de mimo, eu poderia ter-me transformado em um monstro. Mas salvou-me disso Dona Maria Preta e sua família.
Vizinhos da antiga casa de meus avós no interior, eram pobres como Jó, mas tinham a mesma generosidade que a mãe e as tias tinham aprendido da infância na roça. Por isso Dona Maria aceitava alegremente me incorporar para o parco jantar da família, junto com seus muitos filhos. E até hoje me lembro do sabor inigualável da sopinha rala de fubá que eu comia como um manjar dos deuses, longe da competição neurótica das muitas mães putativas que disputavam a atenção da criança mimada. Como então pensar em diferença racial como desigualdade, quando havia Dona Maria Preta e minha maior alegria era brincar com seus filhos? Faziamos batizados de gatinhos ou então eu era levada no colo pela menina mais velha até mesmo para aventuras mais arriscadas, como roubar manga na “chácara dos Correa”, que muito mais tarde vim a descobrir que era da família de Ruth Correa Leite Cardoso…
Perdoe-me por escrever tanto, o que faço sem intenção de compor un roman fleuve autobiográfico, confessional, em busca de elogio fácil de supostas virtudes ou perdão por tantos erros que inevitavelmente o ser humano sempre acaba por cometer. O uso do cachimbo entorta a boca e, por dever de ofício, acostumei a pensar que o relato etnográfico, de experiências reais vivenciadas em campo, é a única maneira de tentar esclarecer conceitos abstratos da teoria. Assim, busquei mostrar como uma educação familiar fundada em valores do vasto humanismo de um mundo rural, até arcaico e démodé, pode ser possível mesmo entre gente muito pobre, como foi meu caso, provavelmente muito distante do seu background de criação ou da maioria dos já queridos recentes amigos virtuais .
No campo da educação formal da escola, precisei aprender a lutar por respeito e igualdade, a que me obrigava minha condição de criança “especial”, que carregava uma diferença indisfarçável inscrita no corpo. Só conquistaria o respeito por e para mim mesma, nesse meio escolar, se conseguisse ter em mim e construir para os outros um sentimento de igualdade, na e apesar da diferença. Essa foi a grande conquista. Obtida graças ao carinho e o amor (não sem certa dose de pena, é claro, pela “coitadinha” de que fui cercada em toda a minha trajetória escolar. Acredito que esse sentido de compreensão é o que fundamenta uma missão maior da escola: promover a aceitação da e na diferença, pois esta é a condição da autoestima e do respeito dos demais. Inclusão, em suma.
Isso é o que anos de estudo e trabalho de grandes equipes de educadores, apoiados em ampla discussão com a sociedade civil, fizeram confluir para um programa de políticas públicas na área da educação, que já vem sendo criminosamente desmontado pelo golpe de 2016, tal como fez a ditadura militar com o Ensino Vocacional, depois de 1964. Na verdade, aquela proposta educacional não estava muito distante daquilo que hoje se pretende criar como política de inclusão. Com outros métodos, e em base a outros fundamentos, buscava-se alcançar os mesmos resultados.
Ao quebrar paradigmas tradicionais de divisão do trabalho entre sexos, em tarefas (ou profissões) masculinas e femininas, e entre trabalho manual e intelectual, buscava-se permitir a cada aluno experimentar do modo mais amplo possível o seu potencial, descobrir sua verdadeira “vocação”, para inserir-se do modo mais eficaz e satisfatório para si mesmo na dinâmica da vida social .Um processo de produção da diferença (a característica única de cada um) na e pela igualdade (de condição e oportunidade de todos). A criação individual de si mesmo, que só se torna possível como processo social pelo e para o coletivo da comunidade.
Não é fácil aceitar a diferença quando ela vem inscrita no corpo, na cor da pele, na expressão facial de uma criança com síndrome de Down, na cegueira, surdez, deficiência física, vistas como algo que foge à regra, anormal, doentio, disforme ou repugnante, logo, algo de que é preciso afastar-se ou descartar. A ausência do que é normal (ou considerado como “normal”, isto é, habitual), a carência, a deficiência se transferem automaticamente do corpo que mostra uma “falha” para o ser humano que é seu portador, contaminando a pessoa por inteiro. Ela é que é deficiente, alguém a quem falta algo, logo, menor, por ser “desigual”. Esta não é a razão do preconceito, é sua forma mesma de construção e operação, por assim dizer natural, no etnocentrismo espontâneo de que todas as culturas são vítimas.
E não se trata apenas de “falhas” reais, visíveis no corpo, mas também daquelas perceptíveis nas linguagens corporais pelas quais as pessoas são identificadas. Uma criança pobre, com suas roupinhas surradas ou mal lavadas, chinelinho de dedo, linguagem de metáforas próprias da periferia, que traz de casa seu lanchinho, ou nem isso, sem dinheiro para comprá-lo na cantina, mesmo numa escola pública de classe média baixa, é logo tratada como diferente, na desigualdade social imediatamente visível, stickin´ out like a sore thumb, como dizem os ingleses. No outro extremo, a qualidade da roupa, o cuidado do corpo, o trato da pele, do cabelo, das unhas, a delicadeza dos gestos e da fala, farão com que, pobre ou rico, um menino seja tratado de “viado”, “bicha”, como palavras de ofensa, em referência à sua desde logo suposta condição homossexual. O contrário disso tudo definirá uma menina como “sapatão”, no mesmo sentido ofensivo e discriminatório. E sabemos o quanto, na escola, crianças e adolescentes podem ser cruéis, quando querem ou lhes seja permitido….
Então, quando uma sociedade inteira passa a “naturalizar” esses estereótipos, de modo inconsciente ou politicamente orientado por instituições, grupos ou indivíduos capazes de manipular o mecanismo de rearranjo permanente de suas formas de expressão, nas mais diversas combinações, como estranhar a disseminação do ódio e da violência, que se torna visível desde as manifestações coxinhas que preparam um golpe de Estado até o massacre de Orlando? Esta é verdadeiramente a esquina em que se cruzam as tragédias atuais, no entanto fartamente anunciadas. E a educação tem mesmo um papel essencial para impedi-las ou ao menos controlar aos poucos seus mais alarmantes sinais.
Quem teve o privilégio de receber na família e/ou na escola uma educação que lhe permita compreender tudo isso tem mesmo a inarredável obrigação moral de não se omitir, na luta contra a barbárie que avança a passos largos. Isso é o que você, Romulus, faz de forma admirável, para alegria, incentivo e gratidão de todos nós.
Despeço-me aqui, com um abraço para o meu caro suíço e desconhecido amigo.
Maria
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