Dois presidentes disputam nas ruas o futuro dos EUA: “Imperialismo descarado” ou “imperialismo soft”

Por Ramin Mazaheri, The Vineyard of the Saker, de PressTV, Irã*

Impossível resultado pior para o Império, nas eleições presidenciais norte-americanas: os EUA dividem-se hoje entre dois presidentes.

Não se pode negar essa evidência, apesar de a mídia comercial dominante só fazer repetir que vai tudo bem: que as eleições já terminaram, e o Democrata Joe Biden é o presidente eleito. É visão enviesada, mas, ainda pior, é jornalismo de péssima qualidade. Jornalistas têm direito de fazer o que queiram – inventar vencedores em eleições, ignorar metade do eleitorado, falar de “divisão” – mas não temos poder legal para decidir eleições.

Não só os resultados apertados ainda não foram certificados oficialmente, mas sequer todos os votos estão contados. E até parece que ninguém via que esses votos já eram ferozmente disputados há meses, aos olhos da opinião pública. Como se não houvesse várias centenas de ações já iniciadas antes da votação começar. E como se nenhuma nova ação tivesse sido impetrada depois de 3 de novembro.

Mas para o jornalismo claramente tendencioso anti-Trump, é caso de “Aqui está tudo resolvido. Vamos em frente.” Inacreditável. O jornalismo norte-americano em ação é impressionante…

O jornalismo só faz noticiar que até aqui todas as ações foram rejeitadas, mas basta que uma delas prospere, e tudo muda. – A Suprema Corte como agente que decidirá a eleição já é provável, o que é mais que possível. A ideia de que juízes norte-americanos seriam na maioria esquerdistas rebeldes, não conservadores ‘de manual’, é ridícula. – São juízes, e isso basta.

O número de eleitores registrados que não votaram é recorde e presidente no cargo, que defende sempre em primeiro lugar os próprios direitos e benefícios faz-nos lembrar o quanto essa eleição nada tem a ver com ‘o normal’.

Mas o vício mais profundo dessa situação de “Papado de Avignon” – a igreja Católica Romana que teve dois papas durante quase todo o século 14 – não está na mídia, mas nos candidatos, especialmente em Joe Biden. Durante meses só fez repetir frases sobre o quanto Trump seria imprevisível e pouco confiável. Mas foi Biden quem se pôs a declarar vitória já no sábado, baseado só numa reles previsão publicada pela Associated Press. Foi movimento quase inacreditavelmente autorreferente, autointeressado, perigoso, desestabilizador, tipo do movimento que abala qualquer confiança em qualquer candidato. Um movimento tããããão trumpiano!

Se os números muito precários (Biden parece ter vantagem, em média, de 30 mil votos, distribuídos em três estados) estivessem invertidos, e Trump declarasse vitória cedo demais, os veículos da mídia comercial reacionária estariam aos gritos – e com toda a razão. Pois Biden continua a insistir – como o primeiro debate não nos deixa esquecer – em saltar todo risonho no esgoto nada presidencial de Trump. E, porque Trump lambe o fundo do esgoto, Biden parece ter passe livre para fazer o que lhe passe pela cabeça.

Conversa de ‘estado vermelho-Republicano’ versus ‘estado azul-Democrata’ está oficialmente fora de moda: trata-se de trumpismo versus o que reste de ‘valores universais’

A conversa de ‘estado vermelho-Republicano’ versus ‘estado azul-Democrata’ baseava-se em dois fatores: a nação dividida por novas guerras no Afeganistão e no Iraque; e por desigualdades monstruosas, entre cidadãos do ‘interior’ rural, e cidadãos urbanos e suburbanos (em termos de acesso à tecnologia, de influência cultural e de padrões de vida). Porque foram os norte-americanos do ‘interior’ rural que combateram naquelas guerras do imperialismo (que nunca foram simples ‘revide’ pelo 11/9), o que marcou drasticamente aquelas comunidades e inflamou tão fortemente a divisão.

Em 2020 o Texas só por um triz não virou Democrata?! O Arizona – orgulhosa terra natal do reacionário radical John “Bomb bomb bomb o Irã” McCain – estaria realmente virando Democrata?! Vários dos estados dos Grandes Lagos já mudaram de lado várias vezes, entre Republicanos e Democratas, na era Trump.

O trumpismo – para o bem e para o mal – já modificou obviamente a política dos EUA, de modo muito profundo, porque estão acontecendo realinhamentos antes impensáveis. Isso nos força a ejetar velhos paradigmas, se queremos mesmo compreender o que está acontecendo aqui.

A nova divisão hoje é “imperialismo descarado” versus “imperialismo soft”.

Mas aí está nosso dilema: Qual partido representa cada imperialismo? Que estejamos parados diante desse dilema: eis a mudança que ainda falta compreendermos em 2020.

Democratas converteram-se no partido que apoia o Estado Profundo, as “intervenções humanitárias”, os “valores universais”, que são as palavras-códigos para os valores preferidos dos Democratas, o livre comércio (que beneficia mais os ricos), censura e tudo que promova ou facilite a promoção de um evangelismo perigoso e da mais arrogante histérica autoproclamada ‘correção’ (como se viu na fracassada campanha de três anos de pregação russofóbica). O evangelismo violento é proibido no Islã, mas admitido no ocidente Protestante ou Católico.

O que dizer da declaração sem precedentes, do presidente francês Emmanuel Macron, de que a islamofobia passa agora a ser política de estado, mais evangelismo histérico a favor do secularismo ocidental? Como se o secularismo tivesse produzido governança mais moral ou justa, que em nações sob motivação religiosa. Mas a fé de Macron é absolutamente inabalável, não importa quantos inocentes sejam mortos por efeito de suas tiradas antimuçulmanos.

E quem é mais globalista e pró “valores universais” e União Europeia que Macron, o “homem forte” do neoliberalismo, não importa quantos Gilets Jaunes percam um olho, só por insistirem em que o neoliberalismo significa a colonização do cidadão ocidental médio por um 1% internacional, e também em que a União Europeia pós-1991 não passa de um “império neoliberal”?

Generalizei a experiência dos EUA, porque nas demais nações ocidentais imperialistas vê-se claramente movimentos culturais similares. Engajar-se no imperialismo produz, como efeito inerente, culturas discrepantes e distorcidas. O ex-líder do partido Trabalhista britânico Jeremy Corbyn acaba de ser suspenso pelo próprio partido, por acusações de antissemitismo absolutamente absurdas e mentirosas, porque é isso que imperialistas histéricos fazem com quem não abrace a globalização sob comando do 1%.

Antes, esse tipo de assassinato de reputação era prática característica dos Conservadores. Mas Corbyn é a prova viva de o quanto nossas análises têm de ser flexíveis, precisamente porque os paradigmas ocidentais tradicionais foram descartados.

Trump marcou o início de uma nova era: a Guerra Fria terminou em 1991, a dominação unipolar pelos EUA (e portanto a dominação ocidental) ainda durou de 1992 a 2016. E o trumpismo coincide com a Grande Recessão, que acelerou o retorno a uma era multipolar.

A inegável rejeição eleitoral de uma “Onda Azul Democrata” favoreceu os “Trumpistas Republicanos”. A votação de Trump Republicano recebeu o reforço dos votos de todos os grupos étnicos e de gênero – exceto dos Homens Brancos. Assim se vê que a ideia de que o supremacismo  branco e masculino seria a base do Trumpismo é tão falsa quanto foram falsas as acusações de antissemitismo criminosamente coladas em Corbyn e nos Gilets Jaunes (Coletes Amarelos).

O trumpismo é maior que isso: com certeza deve hoje incluir a ideia de uma rebelião doméstica contra os políticos que comandaram (ou causaram) o estabelecimento de nossa nova era multipolar.

A era digital não parece prestar-se aos valores ainda necessários para prosperar nas áreas rurais, pelo menos por enquanto. Mas os votos totalizados semana passada mostram que não se pode dizer que o trumpismo continue a ser fenômeno de ‘estado tradicionalmente Republicano’.

Não há novidade nisso: as cabeças estão partidas nos EUA, metaforicamente e, talvez, sem demora, também literalmente

Trump planeja fazer “comícios de recontagem”, para publicar os obituários dos mortos que teriam votado nas eleições; processar as comissões eleitorais em vários estados, e persistir na posição de não jogar pelas regras do establishment norte-americano globalista e pró-“valores universais” (essa recusa é o eixo em torno do qual se arregimentam as bases do trumpismo).

Pode-se discordar, e muitos podem sentir-se chocados com tudo isso e até se opor. Mas não é razoável dizer que os apoiadores de Trump possam ser confinados, mantidos longe de como essa eleição acabe, a menos que se declare uma preferência pela democracia com pesos e contrapesos.

O discurso no qual um dos candidatos aceita a vitória do adversário não é exigência de lei, mas obviamente é necessidade cultural. Por quanto tempo a grande imprensa-empresa norte-americana pode continuar a fingir que a eleição está resolvida, se sequer houve discurso do derrotado afirmando a derrota?

É pergunta inacreditavelmente perigosa a ser proposta, e sem dúvida é jornalismo de qualidade horrenda, e mais prova de que essa eleição não poderia ter levado a pior resultado para os norte-americanos.

O que teria acontecido no sábado em Chicago, se apoiadores de Trump tivessem ido à Trump Tower, onde, dia e noite havia centenas de pessoas festejando uma ‘vitória’ de Biden? Posso responder, porque estive lá: grande número de jovens inocentes sairiam de lá com o crânio rachado.

Esse é o perigo que Biden provocou, e que é todos os dias ampliado por jornalismo de baixíssima qualidade. E perigo que ainda está no começo.

Biden inventou essa era de dois presidentes, em vez de aconselhar paciência e fé no processo, mesmo em crise. Biden também montou o cenário para dramática desilusão dentro da própria casa, em relação ao processo eleitoral e à estrutura política. Os eleitores de Trump existem e estão sensibilizados, e Biden insiste em expô-los ao ridículo, depois de a grande mídia-empresa comercial já fazer exatamente a mesma coisa, a favor do próprio Biden.

Em 2009, o candidato moderado declarou vitória precoce na eleição presidencial no Irã e, depois de períodos de comícios e contracomícios pacíficos, a coisa ficou violenta. Os EUA deveriam ter aprendido da experiência iraniana (e de incontáveis outros exemplos na história moderna), mas Biden parece não ser muito esperto, apesar de seus 47 anos de experiência de vida política. Ninguém pressupõe, em Trump, nem longo tempo de serviço público nem muita inteligência, menos ainda paciência ou tolerância, mas Biden prometeu mais e não cumpriu, a julgar pelo que disse que teria sido o “1º dia” de seu mandato.

Esperava-se que Biden fosse melhor que Trump. Mas o que se tem hoje é o pior início possível.

Pode sorrir o quanto queira para as câmeras, e criar força-tarefa anticorona, que só entrará em ação depois de 21 de janeiro. E pode ignorar os chamamentos para levar até o fim a contagem dos votos, e para que reconheça o resultado real. Faça o que faça, não alterará a realidade de que 70 milhões de eleitores de Trump não desaparecerão em 2020, como não desapareceram depois da vitória em 2016. É necessário compreendê-los. No mínimo, ninguém esperava que surgissem; no máximo, parecem inaugurar uma nova era.

A reeleição de Trump dificilmente será boa para os mesmos países para os quais não foi boa a eleição em 2016 – Irã, Palestina, Cuba, Venezuela e qualquer outra das poucas nações que vivam com qualquer tipo de revolução ou movimento de inspiração socialista. E assim se compreende por que líderes e diplomatas dessas nações têm especial interesse em ver Trump pelas costas: não há diálogo possível entre Trump e essas preciosas nações revolucionárias. Quem sabe o que nos aguarda num segundo mandato de Trump?

E Biden continua a mostrar sinais preocupantes de que planeja prosseguir com o mesmo nonsense unilateral cujo precedente Trump já modelou, e de que não restabelecerá sequer um decoro básico, sequer um mínimo de consideração por outros países e pela diplomacia. Examinei essa noção mês passado, em editorial intitulado “Debacle nos EUA é sinal de que os Democratas adotarão globalmente o autocentrismo de Trump”. E o discurso precoce e temerário de Biden mostra, para nossa maior preocupação, que não estamos longe da verdade.

Nonsense unilateralista é bom para os 99% nos EUA e para os 99% em qualquer outro país. Com dois presidentes, o nonsense unilateralista duplicou, nos EUA.

* Original publicado em 09/11/2020

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