Você vai entender a força de um apensamento, pra nunca mais esquecer

Por José Bonifácio A. Silva

 

Em 2015, estreou nos cinemas o filme Perdido em Marte, dirigido por Ridley Scott. A película conta a história de Mark Watney (vivido por Matt Damon) um astronauta deixado, por acidente, no planeta Marte. Para sobreviver em um ambiente hostil a um ser humano, ele deve utilizar não apenas a tecnologia e seus recursos pessoais, mas, principalmente, sua capacidade de compreender e se adaptar às regras daquele mundo, tão diverso do nosso.

Compreender quais as regras do jogo quando se entra em um ambiente diferente e potencialmente perigoso é um bom conselho, muito longe de ser aplicável apenas a viagens interplanetárias. De fato, até instituições públicas podem se assemelhar, em sua complexidade, a paisagens alienígenas. Trafegar pelos Legislativos brasileiros, por exemplo, pode ser uma experiência desnorteadora para os não iniciados.

Os níveis de dificuldade, claro, não são os mesmos; os Legislativos estaduais e municipais funcionam como extensões do Poder Executivo local, de modo que são poucas as proposições de iniciativa parlamentar. No âmbito federal, porém, a coisa muda de figura. No momento atual de desmonte acelerado do Estado brasileiro para atender à voracidade do Capital financeiro internacional, a destruição de leis que protegem direitos dos cidadãos e a soberania nacional se tornou prioridade, e deputados federais e senadores passaram a ter protagonismo no processo. Pensando nesta mudança de paradigma e nos artifícios utilizados para levar a cabo a subordinação total do país, o presente artigo se debruça sobre aspectos do funcionamento de uma das casas legislativas federais, a Câmara dos Deputados.

É grande e crescente, na Câmara dos Deputados, a quantidade de proposições iniciadas por deputados federais. Todas, porém, devem ter sua tramitação concluída até o final de cada legislatura. O Regimento Interno da instituição determina, em seu art. 105, que todos os projetos que não tiverem concluído seu percurso até o fim de um mandato devem ser arquivados, salvo certas exceções, ali discriminadas. No entanto, o arquivamento não significa o fim de uma proposta. O próprio art. 105, em seu parágrafo único, especifica que a proposição pode ser revivida, desde que seu(s) autor(es) a reclame(m), em até cento e oitenta dias a contar do início da nova legislatura.

É comum que deputados federais se valham dessa brecha. Até aí, é regra escrita, não chega a causar espanto. O problema começa quando se analisa as regras NÃO escritas, que caminham em paralelo ao Regimento. Um bom exemplo para entender como o sistema funciona é a atuação do deputado Onyx Lorenzoni, atualmente licenciado para ocupar o cargo de ministro chefe da Casa Civil. Em 7 de fevereiro de 2019, o então deputado solicitou o desarquivamento de dezenas de proposições, através do requerimento REQ 249/2019. Curiosamente, no entanto, nem todas eram de sua autoria. Isto fere o parágrafo único do art. 105, já citado, mas não houve objeções e o requerimento foi aprovado com uma única ressalva: parte das proposições não seriam desarquivadas porque já haviam sido revividas, por pedido de outros parlamentares.

 

Na foto, o presidente da Câmara de Deputados Rodrigo Maia (DEM-RJ), Sergio Moro (Min. da Justiça)  e o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM-RS)

Por que alguém pediria para desarquivar uma proposição não iniciada por si? Esta pergunta leva a uma coleção de hipóteses tortuosas, que é mais fácil compreender a partir de um caso fático. Um dos desarquivamentos que Lorenzoni solicitou foi o PRC (Projeto de Resolução da Câmara) 109/1992, de autoria de Jackson Pereira (PSDB/CE) – um projeto de mais de 30 anos! Este PCR demanda que, quando instalada uma CPI, nenhuma outra possa ser criada, se tratar de matéria que possa vir a ser incorporada à CPI já em andamento.

Ocorre que o art. 142 do Regimento Interno estabelece que, se há proposições versando sobre o mesmo assunto em tramitação, as mais recentes podem ser apensadas à mais antiga, para que tramitem em conjunto. Assim, 24 PRC (Projeto de Resolução da Câmara) dispersos, apresentados por diversos deputados federais ao longo de décadas, foram ressuscitados por Lorenzoni e passaram a seguir juntos, apenas porque tratavam do mesmo tema abordado por Jackson Pereira em 1992, o funcionamento das CPI.

O conjunto trazido à vida por Lorenzoni é articulado como um Frankenstein. Uma miscelânea de projetos, muitos contraditórios, abordando aspectos diversos e desencontrados, todos sob um mesmo guarda-chuva. O ganho que o atual ministro tem ou espera ter neste processo, só se pode especular. Senão, vejamos:

 

  1. Há proposições com sugestões autoritárias, que vão desde exigir que o código de processo penal seja aplicado aos depoentes em oitivas a uma CPI (PRC 165/2009), até a exigência que deputados indicados a participar de uma CPI assinem autorização para quebra de seus sigilos bancários e telefônicos, para investigações que guardem relação com a temática dos trabalhos da Comissão (PCR 112/2000). Nenhuma destas proposições, cujo único propósito é intimidar depoentes e deputados mais combativos, é da autoria de Lorenzoni: a primeira é de autoria de Laerte Bessa (PMDB/DF); a segunda, de José Carlos Martinez (PTB/PR). Assim, Lorenzoni poderia obter o efeito desejado, em caso de aprovação dos PCR, com mínima exposição;
  2. O PCR 204/2001, de autoria de Rubens Furlan (PPS/SP), propõe que o número máximo de CPI funcionando simultaneamente seja sete; o PCR 74/2000, de Marcos Cintra (PL/SP), por sua vez, fixa esse número em dez. Só o que é possível imaginar como razão para Lorenzoni agrupar duas proposições mutuamente excludentes em um mesmo conjunto é o desejo de ter opções à mão, para aprovar conforme a conveniência do momento, conforme a correlação de forças desenhada na ocasião. Em fevereiro, quando o requerimento REQ 249/2019 foi apresentado, o atual ministro da Casa Civil não sabia exatamente como a situação se desenrolaria – então, provavelmente, preferiu ter opções. Um número maior de CPI simultâneas, por exemplo, é útil se se deseja bombardear um adversário com acusações. Já um número menor de CPI é uma mão na roda se o objetivo é impedir que um adversário solicite a instalação de uma CPI incômoda, bastando ocupar todas as vagas com temas inócuos;
  3. É interessante observar que Lorenzoni pescou PCR de autores de vários partidos. O pedido simples do PCR 109/1992, ao qual todos estão apensados, é de um deputado do PSDB, Jackson Pereira. O ex-deputado, falecido em 1995, passa então a ser o patrono de tudo o que for aprovado deste balaio de gatos. Dentro do bom modelo de guerra híbrida, o ataque é em várias frentes e difuso, mascarando os reais oponentes. A falta de unidade partidária (há até PCR de parlamentares petistas no apensado) na composição do Frankenstein ajuda a descoordenar a oposição, se oposição houver;
  4. O PCR 50/2015 e o PCR 110/2015 são de autoria de Marcelo Belinati (PP/PR). Ambos versam sobre o mesmo assunto, a saber, impedir que proposições que tenham nascido de um relatório final de CPI sigam o rito de arquivamento ao final de cada legislatura, determinado pelo art. 105 do Regimento Interno. O PCR 50/2015 foi apensado diretamente ao PCR 109/1992, de Jackson Pereira. Já o PCR 110/2015 segue um caminho bem mais sinuoso: foi apensado ao PCR 222/2010, de Ronaldo Caiado (DEM/GO), que foi apensado ao PCR 100/2000, de autoria da CPI Setor Produtivo da Borracha Natural (1999), que foi apensado, enfim, ao PCR 109/1992. A redundância de dois PCR solicitando que proposições geradas por CPI não sejam jamais arquivadas, associada ao fato de uma delas estar escondida sob camadas de apensamento, só faz supor que o tema seja caro a Lorenzoni e que ele não queira correr riscos de que não seja aprovado. A alteração regimental facultaria que propostas específicas, geradas no contexto de um governo entreguista, não corressem mais o risco de terem seu desarquivamento negado, bastando serem incluídas em relatório final de uma CPI;
  5. Não é que Lorenzoni não tenha proposições de sua autoria desarquivadas. Nesse conjunto de 24 PCR, de fato, há quatro de sua lavra: PCR 32/2007, PCR 65/ 2007, PCR 204/2009 e PCR103/2015. Vistas em conjunto, elas estabelecem de forma mais detalhada o funcionamento de uma CPI, prescrevendo de seu prazo de encerramento às atribuições de relator e presidente. Por este artifício, Lorenzoni reserva para si o privilégio de definir a espinha dorsal das CPI, deixando os pontos mais indigestos na conta de proposições desarquivadas que haviam sido apresentadas originalmente por outros deputados, até de oposição, até falecidos.

 

Como se pode ver, o apensamento é um procedimento que pouco ou nada tem de inocente. Reunir tantas proposições em um mesmo conjunto permite uma série de manobras para alcançar objetivos diversos e que se acomodam a cada situação. Mas talvez o ponto mais importante que se depreende desta exposição é que avançamos na guerra híbrida, e agora cada documento não traduz senão uma parte da informação. Não viveremos um fechamento de regime explícito, como quando o AI-5 foi exarado, em que um único ato continha as diretrizes gerais da repressão. Vistos isoladamente, cada PCR desarquivado atinge um aspecto do funcionamento de uma CPI; analisados em conjunto, porém, uma realidade bem mais opressiva e multifacetada se revela.

Não estamos perdidos em Marte, mas, às vezes, essa ideia não parece tão ruim. Ao menos as condições letais do planeta vermelho atuam como um inimigo mais honesto.

 

José Bonifácio A. Silva é membro do Clube do Chá das 5, grupo de trabalho da Comunidade do Duplo Expresso. 

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