A maior batalha de todos os tempos, para deter a integração da Eurásia

Por Pepe Escobar

 

Texto original Battle of the Ages to stop Eurasian integration  publicado em 15 de janeiro de 2020. (Tradução realizada por Paulo Follador).

 

Os Tempestuosos Vintes começaram com estardalhaço, com o assassinato premeditado do general Qasem Soleimani do Irã.
Mas estardalhaço ainda maior nos espera ao longo da década: as quase incontáveis variações do Novo Grande Jogo na Eurásia, de EUA contra Rússia, China e Irã – os três maiores nodos da integração da Eurásia.
Cada movimento que modifique o tabuleiro de jogo na geopolítica e na geoeconomia da década que começará terá de ser analisado em conexão com esse confronto épico.
O Estado Profundo e setores cruciais da classe governante nos EUA estão absolutamente apavorados ante a evidência de que a China já está ultrapassando economicamente a “nação indispensável”, ao mesmo tempo em que a Rússia já a ultrapassou militarmente. O Pentágono designa oficialmente os três nodos eurasianos como “ameaças”.
Técnicas de Guerra Híbrida – que arrastam consigo processos de demonização ininterrupta 24/7 – proliferarão com o objetivo de conter a “ameaça” chinesa, a “agressão” russa e o “patrocínio ao terrorismo”, do Irã. O mito do “livre mercado” continuará a naufragar sob a imposição de uma barragem de sanções ilegais, definidas eufemisticamente como novas “regras” comerciais.
Mesmo nem tudo isso conseguirá facilmente desencaminhar a parceria estratégica Rússia-China. Para decifrar o significado profundo dessa parceria, temos de compreender que Pequim define o processo como uma trilha rumo a uma “nova era”. Isso implica planejamento estratégico de longo prazo – e a data chave é 2049, ano do centenário da Nova China.
O horizonte para os múltiplos projetos da Iniciativa Cinturão e Estrada – como nas Novas Rotas da Seda impulsionadas pela China –é de fato os anos 2040s, quando Pequim espera já ter tecido completamente um novo paradigma multipolar de nações soberanas/parceiras por toda a Eurásia e além dela, todas conectadas por densa rede de cinturões e estradas.
O projeto russo – Greater Eurásia (Eurásia Expandida) – de certo modo espelha o Cinturão e Estrada dos chineses, e será integrado com ele. Cinturão e Estrada, a União Econômica Eurasiana, a Organização de Cooperação de Xangai e o Banco Asiático de Infraestrutura e Investimento são instituições que, todas, convergem para a mesma visão.

Realpolitik
Assim essa “nova era”, como a definem os chineses depende fortemente de coordenação muito fina entre Rússia e China em todos os setores. Made in China 2025 reúne uma série de grandes novos projetos tecnocientíficos de grande envergadura. Ao mesmo tempo, Rússia auto posicionou-se como recurso tecnológico sem equivalente para armas e sistemas, que os chineses ainda não igualaram.
Na recente reunião dos BRICS em Brasília, o presidente Xi Jinping disse a Vladimir Putin que “a situação internacional corrente, com crescentes instabilidade e incerteza torna urgente que China e Rússia estabeleçam coordenação estratégica mais próxima. Resposta de Putin: “Na atual situação, os dois lados devem continuar a manter estreita comunicação estratégica.”
A Rússia está mostrando à China como o ocidente respeita o poder da realpolitik sob qualquer de suas formas; e Pequim está finalmente começando a usar o seu. O resultado é que, depois de cinco séculos de dominação ocidental – a qual, vale lembrar, levou ao declínio das Antigas Rotas da Seda – a Terra Central pulou para o centro do palco, fazendo barulho e afirmando a própria importância.
Para acrescentar um tom pessoal, minhas viagens nos últimos dois anos, da Ásia Ocidental à Ásia Central, e minhas conversas nos dois meses recentes com analistas em Nur-Sultan, Moscou e Itália, permitiram-me entrar mais fundo nas reentrâncias do que cabeças atiladas definem como a Dupla Hélice [ing. Double Helix. Sobre isso, ver, importante: “Do livro branco do Saker: a Dupla Hélice”, 22/12/2014, Redecastorphoto], todos conscientes dos imensos desafios que há adiante – ao mesmo tempo em que mal dão conta de rastrear a impressionante re-emergência da Terra Central em tempo real.
Em termos de poder brando, o papel luminoso que a diplomacia russa tem desempenhado será ainda mais decisivamente importante – apoiado por um Ministério da Defesa liderado por Sergei Shoigu, tuvano da Sibéria, e por um braço de inteligência capaz de diálogo construtivo com todos: Índia/Paquistão, Coreia do Sul/República Popular Democrática da Coreia, Irã/Arábia Saudita, Afeganistão.
Esse aparelho realmente aplaina questões geopolíticas complexas, de um modo que Pequim ainda não decifrou completamente.
Paralelamente, quase todo o Pacífico Asiático – do Mediterrâneo Oriental até o Oceano Índico – leva agora plenamente em consideração a Rússia, como contrapoder ante o super distendido alcance naval e financeiro dos EUA.

Apostas no Sudoeste Asiático
O assassinato premeditado de Soleimani, com todos os efeitos de longo termo que terá, é apenas um dos movimentos que se veem no tabuleiro de xadrez do Sudoeste Asiático. O que está afinal em jogo é um prêmio geoeconômico de dimensões macro: uma ferrovia, uma ponte terrestre para ligar o Golfo Persa ao Mediterrâneo Oriental.
No verão passado, uma reunião trilateral Irã-Iraque-Síria estabeleceu que “o objetivo das negociações é ativar o corredor de carga e transporte Irã-Iraque-Síria, como parte de plano mais amplo para reviver a Rota da Seda.”
Não pode haver corredor de conectividade mais estratégica, capaz de interligar simultaneamente com o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul; a conexão Irã-Ásia Central-China diretamente até o Pacífico; e projetando Latakia rumo ao Mediterrâneo e o Atlântico.
O que está no horizonte é, de fato, um subsetor de Cinturão e Estrada no Sudoeste da Ásia. O Irã é entroncamento chave de Cinturão e Estrada; a China estará pesadamente envolvida na reconstrução da Síria; e Pequim-Bagdá assinaram vários arquivos e criaram um Fundo Iraquiano-Chinês para Reconstrução (renda de 300 mil barris/dia de petróleo, em troca de crédito para empresas chinesas reconstruírem a infraestrutura iraquiana).
Rápido exame dos mapas revela o “segredo” de porque os EUA recusam-se a fazer as malas e partir do Iraque, como exigido pelo Parlamento e pelo primeiro-ministro do Iraque: para impedir o ressurgimento desse corredor, custe o que custar. Especialmente quando se vê que todas as estradas que a China está construindo pela Ásia Central – naveguei por muitas delas em novembro-dezembro – acabam sem por conectar China e Irã.
O objetivo final: unir Xangai ao Mediterrâneo Oriental – por terra, cruzando a Terra Central.
Assim como o porto de Gwadar no Mar da Arábia é nodo essencial do Corredor Econômico China-Paquistão, e parte da estratégia chinesa de vários braços, de “fuga de Mallaca”, a Índia também cortejou o Irã para fazer como Gwadar, via o porto de Chabahar no Golfo de Omã.
Assim como Pequim quer conectar o Mar da Arábia a Xinjiang via o corredor econômico, a Índia quer conectar-se com o Afeganistão e Ásia Central via o Irã.
Mas os investimentos da Índia em Chabahar podem dar em nada, com Nova Delhi ainda pensando em tornar-se parte ativa da estratégia dos EUA no “Pacífico Asiático” – o que implicaria a Índia separar-se de Teerã.
O exercício naval conjunto Rússia-China-Irã no final de dezembro, começando exatamente de Chabahar, foi oportuno sinal de alerta para Nova Delhi. A Índia simplesmente não pode ignorar o Irã e terminar por perder seu nodo chave de conectividade, Chabahar.
O fato imutável: todos precisam e desejam a conectividade do Irã. Por razões óbvias, desde o império persa, esse é o entroncamento privilegiado para todas as rotas comerciais da Ásia Central.
Além de tudo mais, o Irã é questão de segurança nacional para a China. A China está pesadamente investida na indústria iraniana de energia. Todo o comércio bilateral será feito em yuan ou numa cesta de moedas que deixam de lado o EUA-dólar.
Neoconservadores nos EUA, contudo, ainda sonham com o que o governo Cheney tanto trabalhou na década passada: mudança de regime no Irã, que leve os EUA a controlar o Mar Cáspio como trampolim para a Ásia Central, só a um passo de distância de Xinjiang; e armar o sentimento anti-China. Pode-se dizer que seria uma Nova Rota da Seda reversa, para destruir a visão chinesa.

Maior batalha de todos os tempos
Um novo livro, The Impact of China’s Belt and Road Initiative, de Jeremy Garlick, da Universidade de Economia em Praga, tem o mérito de admitir que “dar conta” da Iniciativa Cinturão e Estrada é “extremamente difícil”.
É um esforço extremamente sério para teorizar a imensa complexidade de Cinturão e Estrada – especialmente se se considera a abordagem flexível, sincrética, da atividade política dos chineses, que ocidentais absolutamente não compreendem. Para alcançar seu objetivo, Garlick mergulha no paradigma da evolução social de Tang Shiping, entra pela hegemonia neo-Gramsciana e disseca o conceito de “mercantilismo ofensivo” – tudo isso como parte de um esforço no campo do “ecletismo complexo”.
Chama a atenção o contraste com a narrativa pedestre de demonização de Cinturão e Estrada que emana dos ‘analistas’ norte-americanos. O livro trata em detalhe da natureza multifacetada do trans regionalismo de Cinturão e Estrada como processo orgânico, em andamento.
Políticos imperiais não se dão o trabalho de compreender por que e como Cinturão e Estrada está impondo um novo paradigma global. A cúpula da OTAN em Londres, mês passado, forneceu alguns indicadores. A OTAN adota sem qualquer crítica três prioridades dos EUA: políticas cada vez mais agressivas contra a Rússia; conter a China (inclusive com vigilância militar); e militarizar o espaço – espécie de novo ‘broto’ da Doutrina da Dominação de Pleno Espectro de 2002.
Assim a OTAN será arrastada para a estratégia do “Indo-Pacífico” – que significa conter a China. E como a OTAN é também o braço armado da União Europeia, tudo isso implica que os EUA preparam-se para interferir no modo como a Europa faz negócios com a China – em todos os níveis.
O coronel aposentado do Exército dos EUA Lawrence Wilkerson, ministro do Estado-maior de Colin Powell de 2001 a 2005, vai direto ao ponto: “Os EUA existem hoje para fazer guerra. De que outro modo se poderia interpretar 19 anos de guerra ainda sem fim à vista. A guerra já é parte de quem somos. É parte do que é o Império Americano. Vamos mentir, chantagear e roubar, como Pompeo está fazendo nesse momento, como Trump está fazendo nesse momento, como Esper está fazendo nesse momento… e como mais uma legião de outros membros do meu partido político, Republicano, estão fazendo nesse momento. Vamos mentir, chantagear e roubar para fazer o que temos de fazer para manter esse complexo de guerra. Essa é a verdade. E essa é a nossa agonia.”
Moscou, Pequim e Teerã conhecem perfeitamente todas essas apostas gigantescas. Diplomatas e analistas trabalham nessa linha, para que o trio desenvolva esforço concertado para que os países protejam-se uns aos outros contra todas as formas de guerra híbrida – incluídas aí as sanções – disparadas contra cada um e todos.
Para os EUA é, realmente, batalha existencial – contra todo o processo de integração da Eurásia, as Novas Rotas da Seda, a parceria estratégica Rússia-China, aquelas armas hipersônicas dos russos, combinadas com diplomacia de alta qualidade, o profundo desgosto e sentimento de revolta contra as políticas dos EUA em todo o sul global, o já quase inevitável colapso do EUA-dólar. O que é certo é que o Império não se deixará empurrar em silêncio para o fundo da noite. Devemos todos estar preparados para a maior batalha de todos os tempos.

 

Pepe Escobar é analista político internacional e publica no Asia Times. 

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