China move uma peça do xadrez. Quem vencerá a guerra das moedas?

Por Gustavo Galvão

 

No mês de outubro deste ano, a China anunciou mais um passo para a abertura de seu mercado financeiro facilitando a aquisição de títulos de dívida pública por estrangeiros. Antes mesmo de conhecer detalhes, alguns analistas, que vaticinam a falência do dólar, já se apressaram a anunciar o fim da hegemonia da moeda estadunidense. A realidade porém é mais complexa.

 

Ao contrário desses analistas, as pessoas comuns normalmente veem as moedas, especialmente as moedas internacionais, como entidades relativamente imutáveis. Certamente, dentro do horizonte de uma vida humana, as moedas não mudam muito de status em relação às outras. Normalmente, a história das moedas é muito mais longa do que de um homem. Essa proposição não é válida para o Brasil. Um brasileiro com mais 40 anos já conviveu com pelo menos 5 moedas. Mas há 25 anos temos a mesma moeda.

 

Aspecto importante em relação às moedas, e que não é estudado pela teoria econômica, é a “força” de uma moeda. Qualquer cidadão sabe e afirma que o dólar, o euro, o iene e a libra esterlina são moedas fortes. Outras, como o real, não são consideradas fortes. Afinal a “força” de uma moeda é um atributo relativo. Uma é forte em relação a outra.

 

Geralmente, os cidadãos dos países de moeda forte se orgulham disso. Talvez algo importante passe despercebido: o Poder Estatal e as elites dirigentes e empresariais dos países de moeda forte lutam para que suas moedas sejam cada vez mais fortes. Isso é um grande valor para eles, porque o poder econômico e, portanto, político do Estado, de suas classes dirigentes e de todos que possuem ativos, riqueza, denominados nessa moeda é tão maior quando mais forte ela seja.

 

Apesar da importância disso tudo, não há uma definição precisa e muito menos uma teoria sobre o que seja e, principalmente, o que determina a “força” de uma moeda. Em termos simplificados a “força” de uma moeda está relacionada com a perspectiva de preservação do valor dessa moeda em relação às outras e às mercadorias em geral. Ou seja, espera-se dela baixo risco de desvalorização cambial e de inflação.

 

Feita essa introdução, voltemos a nossa pergunta original: “Quem vencerá a guerra das moedas?” Talvez antes tenhamos que responder se realmente existe uma guerra de moedas.

 

Como assinalamos, os Estados Nacionais e suas elites dirigentes e empresariais sempre lutam por manter o valor elevado de sua moeda em relação a outras. Isso já ajudaria a entender que, em algum nível, sempre há algum tipo de guerra de moedas.

 

Na prática, porém, passam-se décadas sem que haja disputas de moedas, porque normalmente é muito difícil o mundo conviver em paz quando há duas moedas com importância semelhante. Na maior parte do tempo, convivemos com uma moeda hegemônica que corre nenhum risco de ser desbancada por outra; portanto, a guerra de moedas é um fenômeno que acontece poucas vezes em cada século. Usualmente uma vez apenas, e quase sempre é acompanhada por guerras armadas.

 

Quando a liderança de econômica de uma potência hegemônica é desafiada, costuma também ser desafiada a liderança de sua moeda. Não há dúvidas de que hoje estamos em meio a uma nova guerra econômica. Não apenas entre EUA e China, mas participa também a União Europeia. Essas três potências têm as moedas mais fortes do planeta, que irão disputar a hegemonia na próxima década. Qual ficará mais forte? O dólar será superado pelo iuan ou pelo euro?

 

Para tentar responder a essas perguntas, temos que explicar que fatores determinam a “força” de uma moeda.

 

Antes de detalhar esse assunto, temos que ressaltar que, em uma situação de incontestável poder militar, a prevalecente hegemonia monetária do país hegemônico não pode ser contestada de forma eficaz, porque o país militarmente mais forte pode impor politicamente condições econômicas ao país militarmente mais fraco, que impedirão que a moeda deste supere a do país mais forte. Apesar disso, a supremacia militar não é suficiente para tornar uma moeda hegemônica. Há condições econômicas que precisam ser satisfeitas.

 

Essas condições são as mesmas que determinam a vantagem de uma moeda sobre a outra, em uma situação em que dois países estão em situação de equilíbrio militar, como a que ocorre hoje, pela primeira vez desde 1991. As condições são essas:

 

1) fluxo comercial, de serviços e de rendas altamente superavitário. Esse caso é o mais geral e sustentável a longo prazo. Mas ele é mediado ou relativizado a curto e médio prazo pelas condições 2, 3 e 4, respectivamente, em caso de bonança, normalidade e crise financeira;

 

2) em situações de euforia financeira, uma grande diferença de valorização e atração de investimentos entre os países nos mercados acionário, imobiliário e ou de dívida corporativa pode fazer a diferença para determinar a relação de “força” entre as moedas fortes, no curto e médio prazo. Esse fenômeno contribuiu para sustentar o dólar forte na última década. Mas parece estar se esgotando;

 

3) na ausência de euforia financeira, uma relação favorável de risco-retorno da dívida pública pode ser importante para determinar a “força” relativa entre as moedas fortes. É nesse ponto que alguns analistas veem a abertura financeira da dívida pública chinesa como uma ameaça ao dólar no curto prazo, caso os mercados chineses de dívida sejam abertos para investimento estrangeiro.

 

Essa hipótese decorre do fato, na situação atual, da relação risco-retorno da dívida pública chinesa ser extremamente favorável, porque os juros lá são mais altos e, além disso, há perspectiva de valorização da moeda chinesa a médio e longo prazo. Em razão disso, se os chineses realmente abrirem o mercado de dívida pública para o estrangeiro, haverá, sim, uma incrível enxurrada de capital para a China.

 

Mas isso não resolve a questão, ou seja, essa muito provável enxurrada de capital para a China, para aplicação em dívida pública, pode ameaçar o dólar a curto ou médio prazo para os EUA?

 

A resposta é não. Os chineses são altamente superavitários em seu balanço de pagamento com o exterior há décadas, e isso nunca ameaçou o dólar. Inclusive, o Governo Trump teria interesse que houvesse uma desvalorização do dólar em relação à moeda chinesa para que aumentasse a competitividade da indústria estadunidense.

 

De fato, desvalorizações circunstanciais das moedas não afetam a força de uma moeda. E para reforçar nosso argumento, a orientação da política de desenvolvimento industrial chinesa faria o possível para impedir que houvesse qualquer desvalorização do dólar em relação a sua moeda, por isso que compram tantos dólares há décadas.

 

Em resumo, o dólar não se desvaloriza, em primeiro lugar, porque a China não quer que isso aconteça. Aliás, nem a China nem ninguém. É por isso que os europeus colocaram suas taxas de juros a taxas inéditas abaixo de zero.

 

Os analistas que torcem para que dólar se desvalorize precisam explicar porque e quando algum país vai desejar que isso aconteça. Mas, como argumento didático, para explicar porque o dólar é tão forte, vamos supor que os chineses no futuro próximo desejem valorizar o iuan em relação ao dólar, ou melhor, valorizar mais do que os EUA desejariam, chegando até mesmo a causar inflação nos EUA.

 

Nos anos 70, aconteceu o fenômeno da combinação da valorização do marco alemão e do iene, acrescidas pela valorização de commodities puxadas pelo petróleo. Esses fatos contribuíram para o aumento da inflação nos EUA. Mas o dólar não foi efetivamente ameaçado como moeda hegemônica, porque, quando a inflação atingiu níveis mais elevados, o banco central dos Estados Unidos da América (EUA), o Fed, deu um grande aumento na taxa de juros, o que rapidamente criou uma crise econômica global e valorizou o dólar em relação a todas as outras moedas e commodities.

 

Os EUA podem fazer isso, novamente, hoje e daria certo outra vez, ao menos no curto prazo. Para entender isso, temos que compreender o que determina a força relativa entre as moedas em situações de crise financeira.

 

4) em situação de crise financeira, relação de “força” entre duas moedas fortes depende da quantidade de dívida total no mundo denominada na sua moeda. Nesse indicador, o dólar ganha de lavada de qualquer outra moeda. Em uma situação de crise financeira, causada por uma elevação de juros pelo Fed, o dólar vai se valorizar porque todo mundo vai ter que correr atrás da moeda necessária para se pagar suas dívidas, que estão na maioria denominadas em dólar. Foi assim que os norte-americanos retomaram sua hegemonia inconteste nos anos 80.

 

O problema deles é que hoje o maior concorrente econômico não é um protetorado militar, como são o Japão e a Alemanha. Portanto, o problema dos EUA não seria manter o dólar forte provocando crise financeira no mundo, o problema seria manter a competitividade da sua indústria após a valorização do dólar decorrente da crise financeira sem a colaboração da China e Europa.

 

Ou seja, o problema dos EUA não seria manter o dólar forte através de produção de crise, o problema seria como sair da crise mantendo uma indústria forte e ao mesmo tempo uma estabilidade cooperativa no comércio internacional, como tanto deseja o sistema financeiro ocidental.

 

A saída da crise econômica do início dos anos 80 causada pelo aumento dos juros norte-americanos foi feita através do Acordo de Plaza, em que o Japão e a Alemanha aceitaram passivamente cooperar para desvalorizar o dólar mantendo taxas de juros superiores às estadunidenses.

 

Na crise de 2008, foi criado um novo grupo, com os 20 mais importantes economias do mundo, o G-20, para coordenar a cooperação financeira e comercial para ajudar os EUA e a Europa a saírem da crise financeira.

 

Haverá clima e disposição, na China e na Europa principalmente, para essa política novamente, caso o mundo entre em uma nova crise financeira iniciada nos EUA? Possivelmente sim, mas a custos provavelmente mais altos, diplomaticamente entendido.

 

Concluindo:

 

    1) não há risco de colapso do dólar de imediato, mesmo com um superinfluxo de capital para a China para aproveitar a ótima relação custo-benefício dos ativos de dívida pública chinesa;

 

    2) isso poderia ser um problema apenas se os chineses pararem de comprar os dólares excedentes a uma taxa de câmbio relativamente fixa como fazem hoje;

 

    3) e só aconteceria em razão de uma possível decisão chinesa de abandonar sua indústria barata por deixar o iuan valorizar;

 

    4) a médio prazo, a inflação causada por essa decisão chinesa poderia causar inflação indesejável nos EUA;

 

    5) se acontecer, basta aos norte-americanos puxarem os juros e colocarem a economia mundial em crise, para controlarem a inflação e restabelecerem a prevalência do dólar;

 

    6) esse movimento pode trazer dor aos EUA, mas também poderia causar dor à China.

 

    7) A comunhão de interesses na solução da crise pode levar a China a cooperar novamente com os EUA para saída da crise, mantendo a prevalência do dólar como moeda hegemônica, como já aconteceu duas vezes nos últimos 40 anos (a primeira vez com Japão e Alemanha).

 

Quer dizer então que é impossível superar a hegemonia do dólar? Não. Há situações em que isso pode acontecer.

 

O dólar pode ser superado por exemplo de uma forma similar àquela que aconteceu com a libra esterlina. Se os chineses ou europeus, após a crise financeira, em vez de manterem juros acima do Ocidente, mantiverem abaixo e tomarem o mercado de empréstimos internacionais dos bancos estadunidenses, poderá, com o tempo, superar a dólar como principalmente moeda indexando a dívida externa internacional.

 

Nesse caso, quando houver uma nova crise financeira internacional, os capitais não vão mais fugir para o dólar, mas sim para o iuan ou o euro. Ou seja, o que ameaça o dólar não é os ocidentais comprarem dívida chinesa, como sugerem alguns analistas, mas o ocidente tomar emprestado em iuan.

 

Porém, isso não significa que a abertura do mercado chinês de dívida não sejam um passo importante nessa direção. Provavelmente é, porque se os chineses abrirem seu mercado de dívida pública e não desejarem acumular ainda mais reservas em dólar de baixa remuneração, terão que reduzir suas taxas de juros internas, estimulando seus bancos internos a pedirem ao governo mais liberdade para emprestarem ao exterior.

 

Mas todo esse processo demoraria muitos anos, a menos que aconteça um fenômeno de grande impacto na economia mundial que leve a China a realizar imensos volumes de empréstimos em iuan para países importantes.

 

No caso da ascensão do dólar frente à libra, esse fenômeno foi a Primeira Guerra Mundial. Por enquanto, não há um fenômeno semelhante em vista, portanto o dólar deve continuar liderando, ainda por um bom tempo.

 

Gustavo Galvão, Doutor em Economia, autor de As 21 lições das Finanças Funcionais e da Teoria do Dinheiro Moderno (MMT).

 

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