Tem que ter consciência!
Arte e texto por Geuvar Oliveira, para o Duplo Expresso:
Quando eu era apenas um garoto de sete anos, minha mãe procurava uma terapia devido um acidente, depois de já ter passado por tratamentos médicos, os quais ela não gostava muito. Procurava cura alternativa, e uma amiga indicou um terreiro nos arredores de uma pequena cidade no interior do Maranhão. Tinha os dias certos para ir, e eu sempre a acompanhava porque gostava muito da festividade. Tinha rezas, aconselhamentos, mas eu gostava mesmo era do momento festivo. As pessoas dançavam em torno de uma coluna de madeira grossa no centro da sala. Eu não sabia o porquê, mas me sentia bem ali, protegido. Não sei se era pela presença da minha mãe ou pela energia do lugar. Contudo, havia algo que eu não gostava nem um pouco e não estava dentro do terreiro de umbanda: no trajeto da minha casa ao terreiro, como a gente ia a andando a pé, ficavam algumas pessoas rindo daquelas senhoras e de mim por ir ao campo santo, jogavam piadas e as vezes xingavam. Algumas senhoras respondiam, outras passavam caladas. Isso era o ano de 1976.
Fiz essa introdução-relato para que saibam que toda pessoa negra está sujeita aos ataques racistas gratuitos. Não se resumiam apenas à religião. Estavam em todos os momentos da vida da pessoa, não interessando sefosse adulto ou criança. Nesse tempo eu frequentava uma escola pública, mas ainda não sabia ler. Também nessa época, a globo exibia a novela “A Escrava Isaura” (100 capítulos, entre 1976 e 1977). Era a versão original que eu assistia na casa do vizinho. De vez em quando, via aqueles tantos de negros sofrendo na novela, ficava apreensivo torcendo para alguém chegar e ajudar, pessoas iguais a mim tratados como animais. A cabeça ficava muito confusa, mas ainda não fazia um pensamento crítico; apenas torcia para alguém chegar e ajudar. Mais ou menos como no futebol, que torcemos para o time ganhar, quando o jogo já está negociado. Na novela, o autor já tinha tudo preparado. Mas existia uma coisa na novela que nem eu e nem aquelas pessoas que assistiam em casa sabiam: a tal escrava Isaura era apenas um fetiche, um experimento do ego do autor para saber como seria se fosse uma branca sendo escravizada! Aí aquelas pessoas choravam com o sofrimento da Isaura, mas nem ligavam para os negros levando chicotadas e morrendo. Afinal, todos os outros eram apenas figurantes para o verdadeiro sofrimento, o da escrava branca.
Naquele tempo a globo reinava absoluta na audiência, todas
aquelas mentes escravizadas diante da televisão muitas vezes em preto e branco
ainda. Que sociedade doente era aquela? Incapaz de sentir compaixão pelo
diferente, mesmo que esse diferente não seja diferente. Isso estou falando num
âmbito ficcional, porque estávamos em plena ditadura militar e a cabeça de uma
criança de sete anos não tinha noção da atmosfera em que vivíamos. Naquele
exato momento, muitos negros estavam morrendo em situações iguais ou piores que
as retratadas na novela, e isso ocorria em vários lugares do país.
Mas, voltando a pergunta, que sociedade é essa que só se compadece olhando no espelho? É aquela mesma sociedade que disse não ter alma os negros, e por isso poderiam ser escravizados? Essa sociedade utilizou-se de dois pilares da civilização para prejudicar os escravos, a teologia e a ciência. Da teologia trouxeram o argumento que “está na Bíblia”…
15 O Senhor, porém, disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse. 16 E saiu Caim de diante da face do Senhor, e habitou na terra de Node, do lado oriental do Éden. (Gênesis 4:15-16)…Interpretando o texto para praticar as atrocidades contra os que estavam escravos, dizendo que Deus enegreceu a face de Caim e tornou seus descendentes amaldiçoados, por um sinal. Dessa forma, qual imagem ficou nos livros e imaginário popular? As ilustrações sacras e filmes sobre Jesus e anjos? Loiros de olhos azuis ou verdes – mesmo sendo improvável – mas, e daí? E a imagem de Satanás? Um negro com chifres e rabo. Imaginem isso na mente de uma criança, olhando a si e percebendo uma semelhança com o oposto, o negativo, o “inimigo do bem”. Já na ciência, a sociedade dos séculos XVIII e XIX trazia argumentos sobre a “ciência da frenologia”…
Palavra oriunda doGrego: φρήν, phrēn, ‘mente’; e λόγος, logos, ‘lógica ou estudo’. É uma teoria que reivindica ser capaz de determinar o caráter, características da personalidade, e grau de criminalidade pela forma da cabeça (lendo ‘caroços ou protuberâncias’). https://pt.wikipedia.org/wiki/Frenologia…Apresentando a ideia que os negros tinham o crânio menor que os brancos e, dessa forma, eram menos inteligentes. Outras “raças” entraram na teoria, mas serviu mesmo foi para piorar a situação dos negros e, por tabela no país, dos índios. Tem muita gente hoje que reclama e não entende para que serve o dia da Consciência Negra. Acha que é só para os negros. Na verdade, era para ser o contrário: seria a oportunidade dos brancos fazerem uma reflexão bem maior que a dos negros – aproveitando a sua propalada “maior caixa craniana” (sic). Todos nós devemos fazer uma reflexão, e não apenas em relação ao passado. Até mesmo porque o passado não se apaga em relação as questões raciais. Devemos, isto sim, realizar uma reflexão sobre o que está acontecendo hoje no país. Pensar sobre a quantidade de homens, mulheres e jovens, negros e negras, perdendo a vida de forma bizarra todos os dias. Desde a época da escravidão, negros nunca deixaram de ser assassinados em larga escala. Já promoveram uma limpa nos índios, que eram milhões, e hoje são apenas alguns milhares. A história da sociedade brasileira foi firmada sobre muito sangue derramado de índios, negros e mestiços. No começo, os membros da coroa portuguesa não poderiam vir para cá fazer o serviço sujo e o pesado. Vieram aquelas pessoas que o “velho mundo” tinha interesse em se livrar, e outras com a intenção de explorar o “novo mundo” que se oferecia como oportunidade para enriquecer de forma fácil. Depois, já loteado em famílias, o país teve os senhores de engenhos. E foram esses que contrataram os especialistas mais sanguinários e cruéis para tomar conta e domar os índiose negros escravos. Certamente a corrupção reinava. Outro dia o procurador Dallagnol disse que a sociedade brasileira era a ralé, e a dos Estados Unidos era perfeita – a sociedade dos homens honrados – porque “os cristãos de verdade” foram para lá. Não, senhor procurador! Eles fizeram a mesma coisa ou pior que a brasileira. Se os estadunidenses agiram com requintes de crueldade, os brasileiros foram como feras sanguinárias. E esse procurador é um descendente fruto dessa bestialidade. Ele ainda não percebeu (ou finge não perceber) que ainda mora na mesma casa grande de outrora. Voltando à barbárie, uma das proibições dos escravos nas senzalas era a comunicação. Eles não poderiam comunicar-se uns com os outros. Os senhores tinham medo que suas culturas e tradições se perpetuassem, ou que eles elaborassem fugas. O Brasil foi o último país a acabar com o regime de escravidão, mas não fez isso porque ficou consciente. Fez por imposição da Europa e Estados Unidos, pois a mão-de-obra gratuita estava interferindo nas questões financeiras estadunidense e europeia. Então, quando veio a “liberdade”, os negros foram simplesmente jogados para fora das fazendas, sem dinheiro e sem conhecimento. Viraram pedintes, maltrapilhos, moradores de rua. Os libertos foram abrigar-se em regiões marginais. Na capital do Império – Rio de Janeiro –, a pretexto de uma grande reforma urbana, foram expulsos para os morros. As primeiras favelas no Brasil surgiram no final do século XIX, após o término da Guerra de Canudos (1896-1897), em terrenos cedidos pela Marinha aos soldados (e suas famílias) que retornaram da campanha. Percebam que as favelas em si não são coisas de negros e sim, de brancos. Ou seja, toda ação tem uma reação. Depois de abandonar os negros à própria sorte, o Estado faz um chamamento aos europeus para trabalharem no Brasil. Aí começou outra novela da Globo, “Terra Nostra” (221 episódios, entre 1999 e 2000). Passou tanto tempo! Aquela senzala virou uma nova senzala, invisível, quase imperceptível. O senhor de engenho não era mais o malvado; passou a ser visto como”patrão”, o parceiro. O negro não era mais o escravo, mas “colaborador”. Um eufemismo para impedir que esse novo escravo-em-outro-nível fugisse. Muitos até brigam para ficar ao lado do bwana (do suaíli, mestre, senhor,dono, proprietário). O negro não é mais negro. É tipificado em moreno, pardo, clarinho. Os índios, quase que dizimados por completo, ainda são mortos lutando por espaço ou suicidando-se. Como fugir de um lugar assim, um lugar não local? Não tem como fugir. A melhor forma é lutar. Não lutar apenas para ser reconhecido entre negros ou índios, mas como indivíduos humanos. Esse reconhecimento que deve ser feito pelo responsável por tudo isso, o branco. A fuga dessa jaula ideológica será a conscientização? A consciência de ser negro, de saber que existe o espaço e que ele também é seu, a consciência de sua história, de sua origem, da sua imagem bela diante do espelho. E o espelho deve ser o outro, não apenas um reflexo no vidro frio. Navegando na sua consciência, o negro deverá saber de onde veio e saber para onde quer ir. E o branco? Como uma sombra invertida, ele se propôs a boicotar secularmente o negro. Por quê? De onde veio o branco e para onde vai? Qual a cor da sua consciência, tingida com tanto sangue derramado? Azul? Vermelha? Qual? Na senzala, tinham tanto receio que o negro fugisse e por isso prendiam-no ou matavam-no. Séculos depois, os brancos ainda são donos da senzala, mas os corpos dos negros já são livres. Por que continuam a morrer pelas mãos dos brancos, direta ou indiretamente? Qual a importância de se ter uma data para a Consciência Negra? A consciência não é para saber onde o negro está ou o que ele é, mas para que o branco saiba no que ele se resume é e onde está circunscrito. A maldade foi elevada a um nível tão alto que agora existem de fato muitas, milhares de outras Isauras disputando com os negros o espaço em uma senzala mental. Talvez sejam até milhões delas. Todas com grilhões nos pés clamando por liberdade e igualdade. Assim, recorremos então a uma consciência maior. Sem cor e com todas elas. Uma consciência humana, benevolente e justa. Para todos!
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