Em que casa habita a justiça no Brasil?

Por Carlos Krebs*, para o Duplo Expresso

Paradoxo, do grego paradoxon, é o pensamento, a proposição ou o argumento que vai contra a lógica estabelecida. Esta palavra carrega o prefixo para, o “contrário a”, o “oposto de”, conjugado ao sufixo doxa, significando “opinião”. Ou seja, uma contradição escondida em uma linha de raciocínio que pode parecer fundamentada e coerente, mas que talvez desmanche-se pela falta de nexo.

Edgar Allan Poe foi um escritor estadunidense do século XIX. Órfão de mãe, abandonado pelo pai e expulso da academia militar por indisciplina, ele construiu uma carreira literária com belíssimos textos romantizando o sofrimento da perda, da morte – principalmente das belas mulheres.

Eu conheci-o pelo conto de horror A Queda da Casa de Usher. Em linhas gerais, a história é contada por um narrador sem nome, convidado a visitar a casa do casal de irmãos Roderick e Madeline Usher, a pedido do primeiro que solicita sua ajuda.


Fotograma da primeira adaptação cinematográfica surrealista de “Le Chute de la Maison Usher” por Jean Epstein + Luis Buñel | FRA (1928). No ano seguinte, Buñel estaria reunido com Salvador Dalí apresentando “Un Chien Andaluz” (Um Cão Andaluz).

Ao chegar, a primeira coisa que vê é uma estranha rachadura que vem do topo da casa até a borda de um lago em frente dela. E é isso que dá o tom psicológico a esse conto. Uma casa fraturada. Os irmãos que nela vivem estão, são, parecem doentes. A história desenvolve-se a partir das impressões que o narrador carrega, mas influenciado pela somatização do que eles dizem sentir.

A casa o elemento-chave: ela incorpora essas sensações individuais em uma arquitetura física. A casa não apenas parece assombrada, mas ela talvez seja a manifestação do inconsciente de todos, a sepultura viva destes personagens paranóicos, loucos, hipocondríacos. Ela é o espírito de quem nela habita…

“Uma das concepções fantasmagóricas de meu amigo, que não participava tão rigidamente do espírito de abstração, pode ser aqui delineada, embora de uma maneira precária. Um pequeno quadro apresentava o interior de uma abóbada ou túnel imensamente longo e retangular, com paredes baixas, lisas, brancas e sem interrupção ou ornato.”

A casa de Usher serve como alegoria. Parece que estamos em um momento em que é necessária uma reflexão sobre qual a casa que habita a Justiça no Brasil. Esqueça que há tribunais espalhados pelas comarcas do país. Esqueça que há uma fissura de cima a baixo em todos. Imagine apenas um campo santo, plano e limpo onde se poderia estabelecer uma construção ideal da Lei. Afinal de contas, de que material ela seria constituída?

1. Seria de indícios como prova?

Segundo Lênio Streck – jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito, “se as provas são uma questão de crença, então se houver indícios de crenças pautadas em fatos concretos, isso basta para confirmar o fenômeno ozírico”. Ou fitélipo, ou chargósseno, ou outra palavra proparoxítona qualquer que demonstre que você talvez saiba algo que todos deveriam saber). O somatório de indícios constroem a prova cabal daquilo que nada é, mas deve significar alguma coisa, e se está significando, então o é…

Onde guardaríamos os fatos nesta casa?

2. Seria da artesania como técnica?

Conforme Afrânio Silva Jardim – professor associado de Direito do UFRJ, “não se pode exigir grande inteligência de todos os juízes, mas (…) enfim, mais cultura jurídica.” O uso de argumentos etéreos onde uma teoria improvável foi apresentada com diferentes significados para a palavra “atribuir”, parece um esforço muito grande para erguer uma nova regra. E quase meia centena de páginas depois descobre-se que a resposta necessariamente técnica, foi atestada em cima da fragilidade de uma teoria (ou um princípio, ou uma doutrina) mal importada.

De onde riscaríamos as palavras se não há mais Código?

3. Seria da imparcialidade das medidas ao mesmo peso?

O procurador e ministro da Justiça Eugênio Aragão demonstra que “a vaidade e o exibicionismo não poderiam estar juntos” na mesma sala que apresentasse o equilíbrio como juízo. Ao invés de avaliarem os argumentos apresentados pela promotoria e pela defesa, os julgadores promoveram horas de autodefesa do judiciário. Para quê a própria instituição necessitaria apresentar-se como “vítima” quando ela detém o poder de cumprir a Lei?

Há muros maiores que estes dos verbos jurídicos?

4. Seria de equilíbrio e simetria?

Para Carol Proner – Professora de Direito Internacional da UFRJ, o “tribunal apresentou-se de forma primitiva e inquisitorial”, confirmando sentença anunciada de forma antecipada muito antes do próprio julgamento. Uma sentença fora do direito, em um formato político: condena-se o quem é, porque não se pode fazê-lo pelo que teria feito ou deixado de…

Como erguer algo onde não se sabe o que há?


Da esquerda para a direita: Lênio Streck por Lúcio Bernardo Jr | Câmara dos Deputados, Afrânio Jardim (página pessoal), Eugênio Aragão por Marcelo Camargo | Agência Brasil, Carol Proner por Carlos Rodríguez | Andes.

É claro que a Arquitetura pode materializar um plano. Há possibilidade de transformar-se um desejo em algo palpável, mas não se pode fazer o percurso contrário: levar a realidade ao sonho. Não há transposição possível para isso além da representação virtual. Isso não funcionaria para o prédio das leis, para a Justiça em que precisamos colocar o acordo social para funcionar.

Em 2010, o diretor americano Christopher Nolan apresentou a importância dos labirintos e da arquitetura paradoxal para criar um espaço de sonhos convincente, necessário ao enredo da ficção “A Origem”. O personagem do arquiteto de sonhos demonstrava como isto seria possível através de uma escada contínua, desenvolvida por Lionel Penrose e seu filho Roger Penrose (1959) como obsessão pelos objetos impossíveis. O artista gráfico holandês M. C. Escher baseou-se nos resultados desta pesquisa psicológica da “Escada de Penrose” para fazer a litografia “Klimmen en Dalen” (1960), dentro de seus trabalhos de inspiração matemática.

Fotogramas de “Inception” (A Origem) por Christopher Nolan | USA 2010, à esquerda (superior e inferior) e “Klimmen en Dalen” (Subindo e descendo) por Maurits Cornelis Escher | NLD (1960) © Official M. C. Escher Website, à direita.

O paradoxo visual – subir e subir e subir (ou descer e descer e descer) permanecendo no mesmo plano, reside em uma ilusão criada ao apresentar a estrutura arquitetônica aparentemente impossível de um determinado ângulo visual.

Exatamente como os julgadores capazes de por abaixo todos os tribunais suportados pela literatura jurídica. Aqueles que destroem a malha escrita, o entendimento e o razoável, por pretenderem impor-nos que a casa da Justiça seja suficientemente justa se atender a legalidade peculiar de um ponto de vista específico e míope.

Não entendo o suficiente dos códigos legais. Quando muito, reconheço a ação e os riscos da lei da gravidade. Penso que vivenciamos o paradoxo da ausência: a Justiça brasileira é uma mansão vazia e abandonada. Se está vazia, quem pode afirmar que é justa?

 


* Carlos Krebs é arquiteto, cinéfilo, explorador de sinapses, conector de pontinhos, e mais um que acredita que o Brasil ainda tem tudo para dar certo.

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Romulus Maya

Advogado internacionalista. 12 anos exilado do Brasil. Conta na SUÍÇA, sim, mas não numerada e sem numerário! Co-apresentador do @duploexpresso e blogueiro.

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