Eleições municipais vol. 2: política se tornou apolítica?!, por Romulus
Eleições municipais vol. 2: política se tornou apolítica?!
Por Romulus
Questão interessante colocada pelo comentarista André B depois de ler o post de ontem (“Que Dória que nada! Sr. Indiferença e lobbies vencem eleições de 2016”)
– A política se tornou então apolítica?
Para responder, temos de fazer a distinção entre duas das várias acepções da palavra política.
Por definição, a “política” enquanto correlação de forças com vistas a cuidar dos problemas da polis não pode ser apolítica. Seria ilógico e mesmo contrafático. Até nas ditaduras mais fechadas e sanguinárias, nos regimes mais autocráticos, há ainda essa tal correlação de forças, embora restrita a um “colégio eleitoral” mínimo. Pense num ditador “militar” vs. seus generais, como em Angola ou na Coreia do Norte. Ou no Comitê Permanente do Politburo do Partido Comunista da China – composto por apenas de 5 a 9 pessoas. Na China isso fica ainda mais claro: evidentemente a atual complexidade da sociedade chinesa exige correlações de força muito mais abrangentes do que os acertos entre a meia dúzia do Politiburo.
Mas no que tange à palavra “política” em sua dimensão partidária-eleitoral nas democracias ocidentais – centrais ou periféricas – não tenham dúvida: a política se torna cada vez mais apolítica. Sim: um oximoro, um paradoxo apenas aparente.
Primeiro porque o colégio eleitoral volta – depois de 100 anos de expansão e franqueamento democratizante – a se estreitar.
Agora num movimento “voluntário”, em que o eleitorado “deliberadamente” fica indiferente à disputa política tradicional. Isso quando não resolve votar naquele que chega de repente e promete fazer a “casa cair”:
(i) Ou pregando uma “pegadinha” deliberada nos políticos tradicionais, que tantas “pegadinhas” vêm pregando neles há décadas (modalidade 1 de “voto de protesto”);
(ii) Ou num impulso de rejeição generalizada, refletindo um descontentamento difuso, não muito bem articulado ou mesmo verbalizado (modalidade 2 de “voto de protesto”);
(iii) Ou, em último caso, como resposta ao desespero diante da indigência batendo às suas portas. Nesse ponto, a taxa de desconto (conceito da Economia) do europeu e do norte-americano pauperizado volta àquela da África Subsaariana. O que importa é garantir o jantar de hoje à noite. E não “impedir o aquecimento global” ou evitar uma guerra comercial como a que levou à Segunda Guerra Mundial.
Trump promete nada menos que rever todos os acordos comerciais bilaterais dos EUA, para uma substituição de importações tardia… algo inimaginável! E afirmo isso como especialista na disciplina. Só não digo que Trump pratica estelionato eleitoral (mais um) porque ninguém pode afirmar ao certo o que se passa na cabeça do sujeito. Vai que….
E como chegamos aqui, a este completo descasamento entre eleitorado e a classe política e partidos tradicionais?
A minha tese é a de que isso decorreu de um processo de divórcio lento e demorado – 30 anos!
Qualquer divorciad@ confidenciará que os longos são os piores… qualquer sentimento de respeito, apreço e mesmo consideração terá tempo suficiente para sumir por completo diante da sedimentação e da introjeção da ideia de que o outro não fará mais parte da sua vida. Não só não fará parte como, a partir de determinado momento, pode passar facilmente à figura de antagonista, em caso de “litigio”.
E qual foi o causus belli entre o eleitorado e a classe política tradicional?
A implementação em menor ou maior velocidade – mas “inexorável” – do Consenso de Washington a partir dos anos 80.
Não importava em quem se votava: Democrata ou Republicano, PT ou PSDB. O grosso do programa de governo – a parte que trata da “fatia do leão” dos orçamentos públicos – já estava dado por FMI, Banco Mundial e credores das dividas soberanas (outros Estados ou banca internacional).
Diferença se havia – e havia! – limitava-se a:
(i) políticas de mitigação da pauperização da base da pirâmide, como transferência de renda; ou
(ii) esforços para dar ao sistema uma cara menos desumana, tentando cavar pequenas rachaduras nos “tetos de vidro” (glass ceilings), instransponíveis aos filhos desse andar de baixo. Verdadeiras barreiras “sutis” à ascensão social.
E por que de tetos de vidro? Porque são “invisíveis”, “suits”… pode-se admirar toda a beleza do que fica para além deles. Mas o incauto debaixo que ousar avançar contra os mesmos quebrará a cara. O vidro é blinddo!
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Pois bem. Recapitulando, ficamos então com:
– 30 anos de Consenso de Washington “inexorável”; e
– Escolha apenas entre com ou sem “anestesia”.
Ora, num quadro assim inevitavelmente surgirá a indagação: “votar para quê?”
E isso seja na Europa Ocidental da “socialdemocracia” (a partir daí com aspas mesmo…), no modelo “com anestesia”, seja nos EUA da Reaganomics e da trickle down economics, o “gotejamento” do topo para a base da pirâmide da riqueza que se deixa crescer – “sem embaraços do governo!” – lá em cima. Ou seja: o modelo zero anestésico.
E por que num segundo momento passa-se da indiferença do eleitorado à hostilidade aberta contra a política tradicional? À sua negação?
Porque os rentistas e financistas abusaram.
Tomaram partido da alavancagem que detinham sobre o poder político para sangrar os orçamentos até quase o ponto de ruptura.
Soa familiar no Brasil de 2016 e de teto de gastos não financeiros por 20 anos?
Rentistas e finança foram extremamente favorecidos pela conjuntura:
– Fim da ameaça (alternativa?) “vermelha”;
– “Fim da História” (?) de F. Fukuyama, como corolário da “inexorabilidade”;
– A liberalização selvagem dos mercados no Centro e na Periferia, muitas delas se valendo da nossa já conhecida “Doutrina do Choque”, de Naomi Klein.
Eles abusaram sim… produziram a maior concentração de renda da História humana! Em 2016, pela primeira vez o célebre 1% do topo detém mais riquezas que todos os outros 99%.
O divórcio é então por culpa exclusiva dos rentistas e de sua ganância?
Não. Os políticos também abusaram nos artifícios que costumam utilizar para mascarar a tunga que finança e rentistas fazem no orçamento público.
Que artifícios?
Os da política, ora: discursos insinceros, hipocrisia, cinismo, cara de pau e sucessivos estelionatos eleitorais.
Resultado?
O eleitorado ficou imune. Está “dessensibilizado”, como digo no post de ontem. Isso com a ajudinha providencial da grande mídia e dos seus patrocinadores, como explico lá.
Que fazer agora quando os que foram sacaneados por 30 anos resolvem sacanear de volta o sistema com a única arma que lhes resta – o voto?
“Greve”? “atos públicos”? “boicotes”? “desobediência civil”?
Quando? Onde?
Situação difícil…
Ainda mais num contexto de fim do “carreamento” do mercado de opinião pela mídia hegemônica, por natureza moderada e moderadora, em virtude da mudança tecnológica e da ascensão das redes sociais e de suas bolhas rivais.
Ainda vamos bater muito a cabeça antes de descobrir como sair deste buraco em que nos encontramos.
Por ora, imperativos de sobrevivência:
– União (desesperada?) das esquerdas e política de contenção de danos, com luta pela mitigação das perdas dos setores populares / vulneráveis.
Simples assim.
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Quando perguntei, uma deputada suíça se definiu em um jantar como “uma esquerdista que sabe fazer conta”. Poucas palavras que dizem bastante coisa. Adotei para mim também.

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