Cinco falácias anticomunistas e a conjuntura brasileira

Por Pedro Otoni

 

O artigo “Elogiar ditadores é a melhor maneira de a esquerda continuar perdendo”, de autoria de Tatiana Dias e Rafael Moro Dias publicado no portal “The Intercept Brasil” (TIB) no dia 22/01/2020 causou polêmica instantânea. Neste é realizada uma “crítica” às personalidades da esquerda brasileira que homenagearam publicamente Lênin (Vladimir Ilyich Ulianov),  na ocasião dos 96 anos de sua morte. Além disso, percorre temas da conjuntura brasileira e procura orientar o “caminho” da esquerda brasileira. Belas intenções. 

Proponho apenas um exame lógico do artigo, usando o recurso relativo a coerência de ideias e destaco aqui cinco falácias extraídas das diversas incongruências presentes. 

 

1° FALÁCIA – ENVENENANDO O POÇO

Pressuposto: Lênin liderou uma revolução comunista, logo é um ditador.

O artigo parte da premissa que Lênin foi um ditador e por isso identifica como um erro as homenagens que recebeu de setores do PSOL e de uma de suas parlamentares. 

O artigo não apresenta nenhum argumento que explique o suposto caráter ditatorial de Lênin. Os autores resumem-se ao óbvio, Lênin foi um líder comunista, dirigente da Revolução de 1917, primeiro governante da União Soviética. Sim, o óbvio e nada mais é dito ou explicado. Como se o fato de ser comunista, ser um líder de uma revolução popular bem sucedida e ser dirigente de um estado proletário são argumentos suficientes para qualificar alguém como ditador. 

O artigo publicado no TIB procura envenenar o poço: se é  comunista e chega ao poder é ditador. 

Sugiro a leitura do livro “Os dez dias que abalaram o mundo”, do jornalista estadunidense John Reed, ele mostra o processo pelo qual o poder de estado sai das mãos da oligarquia russa e é agarrado pelas assembleias de trabalhadores (os sovietes). 

Esta falácia é repetida em relação ao governo venezuelano: o artigo rotula contundentemente o governo Maduro de ditadura. Quais elementos podem confirmar o caráter ditatorial do governo venezuelano? Tempo de governo? Maduro está há 7 anos como presidente, e Ângela Merkel está há 14 anos como primeira-ministra da Alemanha. Poderia ser esta chamada de ditadora? Tanto Merkel quanto Maduro são submetidos ao sistema eleitoral de seus respectivos países; por que a diferença de tratamento? Será que é pela repressão à oposição golpista de Juan Guaidó? Qual repressão? Guaidó anda livre pelo mundo e faz discurso em Davos, enquanto isso Julian Assange, jornalista que abriu a caixa de pandora dos segredos de Estado das grandes potências,  está preso em Londres. Seria a Inglaterra uma ditadura? Qual é realmente o problema de demonstrar solidariedade a um governo que tem lutado por sua soberania frente ao gigante norte-americano? 

Por que os vetores de análise de regimes políticos e governos mudam de maneira discricionária? A quem serve tal método? 

 

2° FALÁCIA – O ESPANTALHO

Pressuposto: Jones Manoel afirma que ocorre contingencialmente mortes em processos revolucionários, logo ele é a favor de fuzilar famílias, matar milhões de fome, torturar, assassinar indiscriminadamente e promover o terror. 

Repare que o historiador pernambucano apenas foi rigoroso com a própria profissão e expôs a possibilidade forte de que em revoluções, mortes de ambos os lados do conflito possam ocorrer. Ele usou a palavra “contingência”, e a mesma está devidamente empregada. Em bom português – mas também na dimensão filosófica -, contingente é o caráter de algo que pode acontecer de maneira incidental e que não necessariamente deva acontecer fatalmente. Não é, portanto, uma condição necessária, mas uma possibilidade factível. Então o que está de errado?

Jones Manoel não  afirmou a necessidade de mortes, muito menos com as qualidades, quantidades, formas de uso e detalhes indicados pelos autores da crítica. Isso é uma tentativa de desqualificação e distorção de um argumento, e nada mais; é a falácia do espantalho. 

A ocorrência e forma de fortes em processos revolucionários são determinados pela situação concreta do conflito e não por um método generalizável. Os Romanov foram executados durante a ofensiva do Exército Branco (pró-monarquia absolutista) contra o governo soviético: este foi o contexto dos fatos. A Revolução Francesa guilhotinou os Bourbons no contexto do forte movimento de restauração apoiado pelas monarquias européias contra a República Burguesa. 

Já Pu Yi (o último imperador chinês) e os representantes da Dinastia Qing na China não foram executados por Sun Yat-sen (fundador da República da China em 1912), e viveram para serem fantoches dos japoneses no estado artificial de Manchukuo (1934-1945), instalado na Manchúria (território chinês) pelo Império do Japão. Este serviu de cabeça de ponte para as tropas nipônicas empreenderem o processo de conquista da China, uma política imperialista de terra arrasada, como ilustra tragicamente o episódio do “Estupro de Nanquim” (1937) onde os japoneses promovem o massacre dos homens chineses e o estupro de milhares de mulheres chinesas, estas metodicamente distribuídas pelo governo japonês em centenas de centros de “mulheres de conforto militar”, outro nome dado para bordéis estatais administrados por Tóquio. Após ser preso em 1945 por tropas soviéticas e algum tempo depois enviado para já liberta República Popular da China, Pu Yi, imperador que preferiu ser usado pelo inimigo contra seu povo, também não foi executado pelo governo revolucionário de Mao Tsé Tung, e viveu como jardineiro, posteriormente se tornou bibliotecário e morreu de causas naturais em 1967.

Este são exemplos de circunstâncias diferentes criam medidas diferentes. A generalização proposta pelo artigo em tela vai contra o exercício do jornalismo profissional. 

 

3° FALÁCIA – FALSA CAUSALIDADE

Pressuposto: Defender o comunismo alimenta o anticomunismo.

O artigo diz que se o fato de parte da esquerda defender ideias, teorias ou proposta de caráter socialista ou comunista irá oferecer munição para o bolsonarismo. Ou seja, se nos escondermos, nos pintarmos de outras cores, apresentarmos um discurso moderado, iremos ter chance de derrotar o fascismo. Se ficarmos menos radicais não seremos atacados ou pelo menos o povo irá apoiar-nos. Logo a relação de causalidade é: “quanto mais formos comunistas, mais ‘eles’ serão fascistas”. “A culpa do surgimento do bolsonarismo é a existência do comunismo”: creio que Bolsonaro acredite nisso, mas alguém em sã consciência, com o mínimo de compreensão das relações causais poderia endossar tal nexo?

O bolsonarismo é um fenômeno multifatorial, com duas dimensões importantes: na dimensão doméstica, a falência da direita “tradicional” em estabelecer uma agenda com aderência de massas e garantia de viabilidade eleitoral e, na dimensão externa, a estratégia de desestabilização promovida pelos EUA com o intuito de condicionar geopoliticamente os BRICS, subordinar a América Latina e controlar os recursos estratégicos regionais – no caso do Brasil, o petróleo. Nada disso tem absolutamente a ver com o comunismo.

O anticomunismo de Bolsonaro é funcional para o projeto dele, mas o anticomunismo dentro do setores chamados “progressistas” serve a quem? Bolsonaro não parará de atacar a esquerda se esta abdicar da cor vermelha, deixar de apoiar os povos em resistência ao imperialismo ou recuar da crítica à injustiça social brasileira para compor de maneira rebaixada com o centro político. Ele ganhará terreno com sua minoria, não desprezível, mais ainda sim uma minoria de apoiadores como revelam as pesquisas. 

Isso não significa que acredito que a atual situação da esquerda é positiva. Claro que não, estamos na defensiva. Temos estratégias de combate ao fascismo consistentes? Também creio que não, e cada organização age com as luzes que tem.  Agora, propor uma narrativa ao “centro” para acumular forças é um erro primário: o chamado Centro político reduziu drasticamente sua capacidade eleitoral nas últimas eleições, ao contrário da própria esquerda, que aumentou presença no parlamento, ainda que permaneça como minoria. 

A polarização arrasou o Centro político eleitoralmente, que agora tem conduzido a agenda econômica da extrema-direita neoliberal. As contradições entre o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional não possuem o caráter antagônico, mas de colaboração competitiva. A colaboração se dá em uma intersecção que tem principalmente a agenda econômica como base, e a competição é a diferença de interesses que se movimentam de maneira mais difusa, com pautas relacionadas ao controle social, coercitivo-repressivo ou ideológico. 

Então qual seria a possibilidade de composição com o Centro, sem necessariamente fortalecer a agenda localizada na intersecção deste com o fascismo? A resposta com alguma coerência, mesmo que pouco realista, seria procurar fustigar a intersecção, transformá-la indigesta para, pelo menos, parte do Centro. Parte esta composta por aqueles que sabem que no final, se a agenda de Paulo Guedes for atendida em sua integralidade, o Centro passará a não existir. Que mediação centrista será possível depois da decomposição da capacidade estatal brasileira? 

O artigo de Tatiana Dias e Rafael Moro Dias acusam de ingenuidade a esquerda brasileira. Mesmo que a esquerda seja sim ingênua, não o é pelas razões apresentadas por estes dois jornalistas. 

 

4° FALÁCIA – POST HOC

Pressuposto: A radicalidade da esquerda fortalece as posições do fascismo.

“Quando parte da esquerda ou centro-esquerda que tem visibilidade e cargos públicos usa esses pressupostos para defender o extremismo, ela alimenta a polarização.Com isso, fortalece a narrativa que criminaliza e desumaniza a esquerda como um todo, beneficiando mais uma vez o bolsonarismo e a extrema-direita que se alimenta disso.” diz o artigo do TIB. 

Primeiro, qual parte da esquerda ou centro-esquerda está defendendo o extremismo? Tal afirmação está sustentada no ar. A característica da esquerda brasileira, desafortunadamente, é a moderação ao extremo, principalmente quando a relacionamos com a radical desigualdade presente no país, um verdadeiro regime de apartheid social.

Os autores do artigo, defendem a extração dos poucos dentes da banguela esquerda brasileira. Transformá-la definitivamente na esquerda sem dentes, “tolerada exclusivamente por ser inofensiva”. Quando não houver mais dentes, não haverá mais perigo e, segundo os jornalistas do TIB,  o bolsonarismo não criminalizará ou desumanizará mais a esquerda. 

É falaciosa a suposta sucessão de fatos proposta pelos jornalistas do TIB. Não importa a aparência da esquerda: ela será sempre alvo do fascismo. Não há indícios de que a moderação da esquerda acalmará os 30% de brasileiros que apoiam Bolsonaro; esta minoria tomou posições muito extremas para mudarem rapidamente de comportamento. Só há uma setor social que os fascistas brasileiros odeiam mais que a esquerda: os pobres. A polarização política não pode ser compreendida na sua integralidade sem este elemento.  

A polarização não é uma situação que possamos controlar unilateralmente. Ela é uma resultante de diversos vetores. No plano conjuntural é resultante das opções dos múltiplos atores do jogo político; não jogamos sozinhos. No plano estrutural, do padrão de distribuição de riqueza e poder entre as classes e setores de classe. 

O que é possível ser feito é estabelecer uma tática que procure condicionar a situação e objetive alterar os termos da polarização na dimensão conjuntural e manobrar para que esta incida na estrutura. Por exemplo, concentrar os esforços materiais e narrativos na denúncia da piora das condições de vida do povo, buscando uma polaridade que se expresse de um lado por uma maioria de pessoas que estão perdendo direitos, salário e capacidade de manutenção da vida e do outro lado por uma minoria que apoia o governo, e que não dá a mínima para o que se passa com o andar de baixo. 

Mas esta alteração não é instantânea, pode demorar mais do que um ciclo eleitoral, não há um caminho curto e sem perigos contra o fascismo. Quem sustenta o contrário são os ingênuos ou  demagogos.

 

5° FALÁCIA: NON SEQUITUR

“Tudo o que eles querem é uma razão para nos jogarem ao extremo e minarem qualquer chance de aliança ou debate – e eles estão conseguindo. Estamos em uma guerra de narrativas e, se não agirmos estrategicamente agora, vamos inevitavelmente continuar perdendo”, diz o artigo do TIB. 

Os fascistas não precisam de razão para agirem como fascistas. Eles agem e estão agindo conforme seus objetivos, não são condicionados pela ausência de motivos que justifiquem suas ações.  Não há explicação razoável nestes termos.

A esquerda não foi jogada ao extremo, está no mesmo lugar que sempre esteve desde 1988, seja isso certo ou errado. Quem foi para o extremo foi a direita, foi o rentismo, foi a casa grande brasileira. 

O artigo afirma que há uma guerra de narrativas; sim, é verdade. No entanto, é preciso completar que esta é componente de dois conflitos muito maiores, um conflito geopolítico e um conflito estrutural de classes. A narrativa é importante, porém não suficiente para uma vitória contra o fascismo. As décadas de 30 e 40 do século XX demonstram isso. A ascensão do fascismo no Brasil não é algo isolado, é parte de um fenômeno mundial.  Para agir estrategicamente é necessário ler a situação de uma maneira mais ampla e não pela superfície, sua parte visível, que por vezes é meticulosamente produzida pelo adversário para induzir ao erro, o que chamamos de diversionismo. 

 

ENFIM…

Nenhuma atividade está isenta de posição política, e não se deve cobrar isenção ou neutralidade sobre qualquer trabalho. Assim como o juíz e os promotores envolvidos na Operação Lava-Jato foram postos a nu em seu ardil, ao extrapolarem os parâmetros constitucionais de sua atuação (graças ao TIB), também o jornalismo rompe com seu caráter profissional na medida que abstêm da análise objetiva do mundo. 

 

Pedro Otoni, cientista Político e Especialista em Economia Política. Fundador das Brigadas Populares. Membro da direção nacional da Intersindical – Central da Classe Trabalhadora.

 

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