O onírico “2022”: europeus acabam com Brasil muito antes disso

Publicado 1/jul/2019 – 19:10
Atualizado 2/jul/2019 – 14:25

Não é à toa que os países em desenvolvimento há muito dizem em negociações comerciais que, enquanto os americanos são a “águia careca”, os europeus são os “hipopótamos”: fofinhos de olhar, mas na verdade mais fatais ainda.

O onírico “2022”: europeus acabam com Brasil muito antes disso

Por Romulus Maya

Tudo bem que essa é minha área de especialidade… mas os jornalistas poderiam ter ido saber com pessoal da área de comércio internacional sobre que tipo de concessões os europeus — e Bolsonaro — teriam necessariamente feito o Brasil entubar na semana passada.
O jornalista Jamil Chade conseguiu vazamento — do lado europeu — com alguns dos termos do Tratado de Livre Comércio. Focou na manchete no acessório (agro-negócio – ver Print), pois o principal vem no meio do texto:
“Há ainda um compromisso de ambos os lados por maior transparência por parte da administração pública e a abertura das licitações públicas para empresas europeias, que irão concorrer por contratos no mesmo pé de igualdade do restante das empresas brasileiras”.
(texto completo aqui)
Ô, Ciro Gomes, li seu (bom) artigo a respeito. Comentei-o, inclusive, com seu amigo Luiz Moreira no Duplo Expresso deste último domingo (https://duploexpresso.com/?p=106280). Esqueça a pegadinha no agronegócio!
(para quem, ademais, não deixo de dizer bem-feito — posto que desde 2016 são sócios da implosão do Brasil)
O principal, dentre outros (ver mais adiante), é isso aí: doravante ACABOU o Estado como indutor do desenvolvimento no Brasil.
Não tem mais preferência nacional nas compras governamentais. Desde sexta-feira falo que esse era um dos temas principais.
(ver print)
Sai agora a confirmação.
Houvesse tal regra antes, nunca teríamos feito a indústria naval renascer junto com a vinda ao mundo da cadeia de óleo e gás, nos anos Lula, com a carteira de encomendas da Petrobras, combinada com a exigência de conteúdo local nos leilões da ANP.
Atentem: ACABOU o conteúdo local! Acabou a faculdade de o Estado – Administrações direta e indireta – exigi-lo em licitações!
Como falava com Felipe Quintas no Duplo Expresso desta manhã (https://duploexpresso.com/?p=106289), os pronunciamentos “bizarros” da CNI e da FIESP em favor dessa verdadeira sentença de desindustrialização do Brasil, gravada em pedra por esse tratado de livre comércio, explica-se pelo fato de a suposta indústria “brasileira” (aspas necessárias) há muito vir sendo mais e mais desnacionalizada. Não apenas no controle societário como também no processo produtivo. Os “industriais brasileiros” representados nessas associações setoriais são em muitos casos executivos de multinacionais, que representam o interesse da matriz à frente mesmo do da filial “brasileira”. A matriz, pouco a pouco, exportará o produto acabado diretamente ao Brasil, em vez de produzi-lo localmente. Fora que, com a valorização cambial e a emergência das “cadeias globais de fornecimento de insumos industriais” (global supply chains), em grande medida a chamada “indústria” “brasileira” já virava, em realidade, importadora/ maquiladora. Isso quanto não desaparecia simplesmente, com seus capitais sendo realocados no mercado financeiro.
Após esta primeira confirmação do pior, repito o alerta de sexta-feira à noite, quanto ao que ainda vem por aí. A ver o que entrou, para além do comércio de bens, em:
– Serviços: e.g., bancos/ seguradoras, com liberalização para a entrada, resultando na desnacionalização do setor financeiro, bem como de educação, serviços médicos, advocatícios, etc.;
– Investimentos estrangeiros: (i) Direito procedimental: arbitragem investidor-Estado – internacional e privada – para solucionar disputas entre multinacionais europeias e o Brasil, no lugar do Judiciário brasileiro; e (ii) Direito substantivo: (a) “tratamento nacional” desde a fase de instalação, franqueando o acesso ao capital estrangeiro a todos os setores da economia não reservados expressamente no tratado, mais, p.e., (b) possibilidade de indenização em caso de perda do valor do investimento com uma desvalorização cambial, como parte do standard de “Tratamento justo e equitativo” (aconteceu na Argentina!).
– Propriedade intelectual: possivelmente aumentaram o período de patente para muito além dos 20 anos acertados na OMC; possivelmente fizeram o Brasil renunciar ao direito – também garantido na OMC – de licenciar compulsoriamente medicamentos para a produção de genéricos. Imaginem o impacto dessas duas medidas para o orçamento do SUS. Fora matar qualquer possibilidade de desenvolvermos uma indústria farmacêutica e de insumos médico-hospitalares.
– Neutralização das nossas vantagens comparativas naturais para um processo de industrialização: proibição de impostos ou cotas de exportação sobre matérias-primas brasileiras (como o nióbio), o que não existe no direito da OMC. Reflete o aprendizado dos países hegemônicos diante do que a China fez com as terras raras, taxando exportações do material bruto para desenvolver sua indústria local.
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Para terminar, repito: esperamos o mea culpa de Celso Amorim por sempre ter promovido a ideia – irreal – de que “com os europeus é diferente do que com os americanos”, ao longo de anos. Sempre nutriu essas negociações – cujo final não poderia ser outro! – como “a sua alternativa à ALCA”. Um dos seus poucos erros como Chanceler – embora muito importante. Aliás, um dos seus pontos de discordância com Samuel Pinheiro Guimarães. A entrevista sua à BBC (imprensa OTAN, ademais), como apontado no print, está longe de ser o suficiente para afastar Amorim desse feio bebê…
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Não é à toa que os países em desenvolvimento há muito dizem em negociações comerciais que, enquanto os americanos são a “águia careca”, os europeus são os “hipopótamos”: fofinhos de olhar, mas na verdade mais fatais ainda.
 
Ass.: “Romulus Maya”, pseudônimo na militância política de Romulo Brillo, advogado formado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Pós-graduado em Direito do Comércio Internacional pela UERJ, Mestre em Direito Internacional e Integração Econômica pela UERJ; Mestre em Direito Internacional Econômico pela Universidade de Barcelona (LL.M.); Doutorando em Direito Internacional Econômico no World Trade Institute – WTI, da Universidade de Berna, Suíça.
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P.S.: dá para esperar a miragem de “2022”?!
Não precisa nem mais de ingresso na OCDE… o “lock-in effect” já estará completo com a ratificação desse tratado neocolonial. Mãos amarradas… votar para Presidente para quê?

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Em vídeo:

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Atualização (1): redes sociais e aggiornamento da discussão para o Séc. XXI

 

 

 

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Atualização (2): debate do tema no Duplo Expresso de 2/jun/2019

 

 

 

 

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Romulus Maya

Advogado internacionalista. 12 anos exilado do Brasil. Conta na SUÍÇA, sim, mas não numerada e sem numerário! Co-apresentador do @duploexpresso e blogueiro.

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