Exclusivo – como Dilma e os militares ultrapassaram a linha (no pré – e pós! – Golpe)
Não basta dizer que há antipetismo nas Forças Armadas, é preciso entender como esse viés ganhou “materialidade” e galvanizou o apoio dos militares ao projeto do Golpe.
Há, aí, uma boa pista para que se entenda por que, do ponto de vista militar, não se trata necessariamente de “entreguismo” o que ora está acontecendo (sob Temer e Bolsonaro) — mesmo que se discorde, frontalmente, dessa sua “interpretação” da realidade.
Exclusivo – como Dilma e os militares ultrapassaram a linha (no pré – e pós! – Golpe)
Título original: “Não foi só a Comissão Nacional da Verdade: os erros de Dilma e as reações mais erradas ainda a eles”
Por Piero Leirner,* para o Duplo Expresso
Hoje em dia é quase um consenso entre pesquisadores da temática militar que a Comissão Nacional da Verdade, instaurada no Governo Dilma ainda em 2011, funcionou como uma espécie de bomba-relógio que detonou as relações entre Governo e militares nos anos seguintes. Esta é, por exemplo, a avaliação do meu colega, Prof. João Roberto Martins Filho em ótima entrevista que saiu ontem.
Ainda em maio do ano passado, procurei mostrar em artigo aqui no Duplo Expresso que o movimento dos militares anexava mais questões; não se limitava apenas à CNV. Não custa retomar um trecho de então, lembrando inclusive como já insinuava que isso fazia parte de uma “guerra híbrida” – termo, ao meu ver, mais adequado para entender como os militares têm elaborado sua estratégia desde o começo: a tal “estratégia da abordagem indireta”. Retomando…
(…) a criação da Comissão da Verdade, que de início incomodaria muito mais ao setor da “comunidade repressiva” que estava na reserva, mas que depois acionou o gatilho corporativo e inflou uma mobilização geral. É preciso ter em mente algo muito sério aqui. Se por um lado houve uma “limpeza” na hierarquia militar nos anos 1980, é notável que desde o começo dos anos 1990, pelas poucas pesquisas que temos, houve um aumento progressivo da taxa de endogamia entre os militares que ingressavam na carreira. A grande maioria de novos militares é filho de militar ou ex-militar. A “comunidade repressiva” provavelmente continuou por meio de filhos e parentes, além de efetivamente estar presente em associações e clubes militares. Não é de se estranhar que o gatilho que a CNV acionou teve repercussão tão rápida.
2012 foi o ano em que se resolveu riscar o fósforo no paiol de pólvora, no meu entendimento. Em fevereiro deste ano, o Clube Militar lançou um manifesto contra a CNV. Houve uma interferência da Presidência da República, para que o manifesto fosse retirado das redes e das paredes de todas unidade de clubes militares do Brasil. Os clubes são entidades que dependem das Forças, mas são da reserva, e, portanto, tecnicamente autônomas e civis. Isso provocou uma reação em cadeia. Um segundo manifesto foi feito em favor do primeiro e publicado numa página da internet dedicada ao Coronel Ustra (torturador de Dilma), e foi assinado maciçamente. Fiz a contagem em março deste ano. Só de generais foram 130; coronéis, 868. Isso é muito. Hoje, trocando em miúdos, posso dizer, quase com certeza, que a CNV galvanizou nos militares em geral um forte anti-petismo, capaz de fazer um grupo minoritário, “estilo Bolsonaro”, surfar à vontade como uma voz representativa das FFAA. Falo dos generais de pijama que não se cansam de ameaçar, e que agora lançam suas candidaturas.
Este é um primeiro problema. O segundo movimento, então, é o que posteriormente vai alinhar a doutrina militar ao “problema interno” que a CNV gerou.
Desde a abertura política, a doutrina militar vinha sistematicamente produzindo um conjunto de peças que produziram um “inimigo” claramente identificado com um conjunto de interesses que se plasmava na tal “cobiça internacional pela Amazônia”. Isso era visto sobretudo através de uma lente que identificava uma ação disfarçada das grandes potências através de ONGs, do ambientalismo, da ONU, do movimento indígena, do MST, de parte da Igreja Católica, e de alguns partidos que eram identificados com esses movimentos, entre eles o PT. Não interessa o grau de acerto dessa proposição, mas sim o mecanismo que ela revela, essencialmente projetivo. Evidentemente isso tudo possui ambiguidades: nem todos nas FFAA vão se fiar a uma leitura tão estreita; mas é notável que isso foi assumido como uma “disposição oficial”: houve desde deslocamentos de brigadas inteiras do Sul/Sudeste para a Amazônia até a mudança de datas e comemorações. Armou-se todo um novo repertório, baseado sobretudo na ideia de um “inimigo infiltrado”. Vou voltar a isso.
Embora durante os anos Lula esses elementos tenham ficado em relativa estabilidade, no Governo Dilma 1 a CNV praticamente pavimenta o caminho para esta teoria ganhar o corpo que precisava. Nesse movimento, com a ideia de que a CNV era um compósito de (ex) comunistas querendo vingança, encontrou-se espaço para reativar a tese de um “novo comunismo internacional” que agora se plasmava nesse esforço geral das “potências invasoras”, vis-à-vis a China, Russia e suas ambições mineralistas e energéticas. Dilma e seus aliados nos BRICS reavivariam, assim, um comunismo 2.0 disposto a colocar a ordem internacional de ponta-cabeça, com o Brasil numa posição de capacho sul-americano da Russia. Nesse sentido, “tudo que estava disfarçado mostrou sua cara”, e se hoje vocês se perguntam por que as FFAA não reagem ao assalto que fizeram ao Pré-sal, é porque eles certamente pensam: “antes isso a nosso petróleo ser tomado pela estatal russa Rosneft (podem dar risada, mas ela começou a perfurar na Bacia do Solimões) e pela estatal chinesa Sinopec (podem dar risada 2, mas no Globo, em 2013, lia-se: “São quatro os tentáculos chineses que avançam sobre o petróleo brasileiro”).
O que vejo que está acontecendo, e não é difícil constatar isso a partir da produção de teses e dissertações nas escolas militares, é o modo pelo qual essas noções foram sendo costuradas. Trata-se então, para voltar ao que dizia acima, da consumação na doutrina brasileira de uma “teoria da guerra de 4a geração”, que é outro nome para isso que está se chamando de “guerra híbrida” [há autores que tentam coloca-la como uma guerra de 5ª geração, quase que inteiramente baseada em informação, redes e operações psicológicas; outros, no entanto, ainda a situam na 4ª, dentro daquilo que amplamente se chama de guerra não-convencional]. Basicamente trata-se de uma guerra baseada em operações de dissimulação, cujo objetivo máximo é produzir no inimigo um conjunto de ações divergentes para que este sempre esteja um passo atrás na leitura do “real”. Em outras palavras, trata-se de diversionismo, como em qualquer truque de mágica. Como disse, para se entender isso é crucial que tenhamos em mente que eles elaboraram para si próprios uma versão da noção de “guerra híbrida” que venha a explicar o que foi o movimento acima: “do disfarce ambiental-identitário ao neo-protagonismo comunista”.
Em alguns artigos publicados por militares – incluindo-se aí até um General (reserva) de 4 estrelas – é notável que do ponto de vista deles haveria uma guerra híbrida sendo produzida pelos mais variados agentes em coligação: no plano local, tratou-se de “dar cor” ao problema da tentativa de provocar uma disrupção nas Forças Armadas brasileiras identificando o PT como força local de ataque híbrido. Nesse sentido, haveria uma tentativa crescente de desmoralização das Forças Armadas que começou com a CNV, e se desdobrou em ações coordenadas com “satélites” do Partido, que agem exatamente como os mecanismos acima descrevem: abordagem indireta, terceirização, camuflagem. Basicamente se diz que isto ocorre pelo acionamento petista de grupos minoritários (identitarismo), movimentos indígenas, Quilombolas, MST, Igreja[1], ONGs e ONU!
Escrevi alguns papers – apresentados em congressos, etc. – que trataram desses elementos. Algum tempo depois, inclusive, veio à tona um “documento sobre resolução de conjuntura” elaborado pela Executiva Nacional do PT, de maio de 2016, onde se colocava que o “PT falhou em não mexer nos currículos militares e nas promoções”. A “conspiração petista” foi assim montada na cabeça dos militares; logo após, o General Villas Boas declarou à jornalista Eliane Cantanhêde, no Estado de São Paulo, que “Com esse tipo de coisa, estão plantando um forte antipetismo no Exército”.
Tempos depois, numa entrevista do Gen. Villas-Boas, em 2018, junto com alguns assessores, registrou-se a seguinte conversa:
“Estavam na mesa os generais Otávio Rêgo Barros, chefe do CCOMSEx, o Centro de Comunicação Social do Exército; Tomás Ribeiro Paiva, chefe de gabinete, e Ubiratan Poty, chefe do Centro de Inteligência do Exército, além dos coronéis Alberto Fonseca, assessor do gabinete do comandante responsável por análises de conjuntura, e Alcides de Faria Junior, chefe da Divisão de Relações com a Mídia do CCOMSEx. Foi a eles que Villas Bôas perguntou se deveria falar “em off ou em on” naquele trecho da entrevista. Todos sugeriram que o comandante abordasse o assunto “em on”.
“Isso nos preocupa porque, se por um lado, nós somos instituições de Estado e não podemos participar da vida partidária, indica uma intenção de partidos interferirem no Exército”, iniciou o comandante. O general Tomás o seguiu: “Isso para mim foi o maior erro estratégico do PT, foi uma coisa burra.” “Essa é uma coisa que não é admitida pelas Forças Armadas, a intervenção em nosso processo educacional. Esquece”, emendou o coronel Fonseca. “Isso nos fere profundamente. Está na nossa essência, no nosso âmago”, concordou Villas Bôas”.
Fato é que sempre me soou exagerado jogar no colo de um parágrafo todo antipetismo das Forças Armadas. Evidentemente não foi só isso, e também imagino que jamais nenhum militar da ativa diria que todo problema começou como uma reação à CNV, muito menos às especulações sobre o neocomunismo-identitarista que atacava o Brasil. Isto seria dar a corda e chancelar, em maio de 2018, a candidatura de Bolsonaro, com a qual até hoje a instituição militar está procurando dizer que nada tem a ver. No entanto, há sim um fato concreto que embasa todo esse problema, e que a meu ver “fecha a conta” dessa problemática.
Trata-se do pouquíssimo discutido DECRETO Nº 8.515, DE 3 DE SETEMBRO DE 2015, que “Delega competência ao Ministro de Estado da Defesa para a edição de atos relativos a pessoal militar”. Na prática, tal decreto tira das mãos dos Comandantes das 3 Forças as promoções, exonerações, transferências, agregações, nomeações, etc., dos militares. Isto agora ficaria a cargo do Ministro da Defesa (ne época, Jaques Wagner), um cargo político. Para se entender o que significa isso, um paralelo interessante seria este que estamos vendo: todos os atos de Instituições Federais de Ensino Superios, como por exemplo a escolha de chefes, diretores e reitores, estarem exclusivamente dependentes da caneta do Ministro Weintraub. E iria além: as simples promoções de carreira dependeriam da caneta do ministro. Pois bem, esse é o ato que embasa aquilo que provocou o alarde sobre a “resolução” posterior. Mas há mais problemas aí.
É claro que houve reação imediata. E não somente nos meios mais esperados, como este:
A narrativa crítica deste processo merece ser retomada, pois se não houve uma sucessão de elementos estapafúrdios, assim eles ficaram descritos pelos meios militares. Em um artigo escrito pelo Almirante-de-Esquadra Roberto de Guimarães Carvalho (Ex- Comandante da Marinha do Brasil, 2003-2007), alguns trechos resumem parte do processo:
“Chegamos a setembro de 2015. No dia 04, às vésperas do feriado de 07 de setembro, os Comandantes Militares e, de uma maneira geral, os militares da ativa e da reserva, foram surpreendidas com a publicação no DOU do Decreto nº 8515, assinado no dia anterior, que delegava competência ao Ministro da Defesa para baixar atos relativos ao pessoal militar.
Pelas notícias, mais surpreso ainda havia ficado o Comandante da Marinha, Almirante Leal Ferreira, ao ver o seu nome constando no texto de Decreto sem que o tivesse assinado, na qualidade de Ministro da Defesa Interino[2], cargo que exercia naquele dia cumulativamente com o de Comandante da Marinha, já que o titular estava ausente do país, em viagem oficial à China. O Almirante teria afirmado que nunca tinha visto aquele documento (…).
Voltemos à cronologia dos fatos. Segundo o noticiário, na parada do 07 de setembro os três Comandantes teriam manifestado ao Ministro da Defesa a surpresa e o descontentamento com o ocorrido, principalmente o Comandante da Marinha, pelo problema do seu nome como se tivesse assinado o tal decreto. O Ministro teria dito que desconhecia que o decreto seria levado para a assinatura da Presidente, e que iria verificar o que tinha ocorrido. Bastante estranha essa declaração. Mesmo com ele ausente do País, praticamente até às vésperas da parada, o descontentamento na área militar já era público e notório desde a publicação do decreto, e os seus assessores poderiam e deveriam alertá-lo de todo o ocorrido, mesmo com ele no exterior. Custo a crer que eles não tenham feito isso, daí estranhar a alegada surpresa do Ministro.
Entre os dias 08 e 10 de setembro novas notícias são vinculadas na mídia: a Casa Civil, chefiada pelo Ministro Aloizio Mercadante (PT), teria declarado que a assinatura e publicação do decreto teria sido por ação direta da Secretária-Geral do MINDEF, a Sra. Eva Chiavon (PT). A Sra. Eva acompanha o Ministro Jaques Wagner (PT) desde a época em que ele era o Governador do Estado da Bahia. Trata-se, portanto, de pessoa de sua total confiança, e que o conhece muito bem. Acho difícil, portanto, que ela tenha enveredado por caminhos tão “sensíveis”, sem a aquiescência do seu chefe.
Outro dado é que ela é esposa do Sr. Francisco dal Chiavon, também conhecido como Chicão que, pelo que consta, é o segundo nome na hierarquia atual do MST. Por essa posição talvez ele seja o Subcomandante do tal Exército do Stédile, ao qual se referiu, há alguns meses atrás, o ex Presidente Lula. Isso não pode passar despercebido pelos brasileiros”.
Chegamos assim ao “problema” de Eva Chiavon. Na época de sua nomeação para a Secretaria Executiva do Ministério da Defesa algum barulho se produziu nos meios militares. O site ligado a grupos militares “Sociedade Militar” fez uma matéria bastante ambígua sobre ela, onde colocaram que:
“– Antes de ir para a Defesa Eva exerceu a função nos Ministérios do Trabalho; Secretaria de Relações Institucionais; Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social; e Planejamento, Orçamento e Gestão. /Militares estariam “irados” com a indicação de Eva Chiavon para a defesa? Será mesmo? Não há qualquer base para se afirmar isso. Faz pouquíssimo tempo que a referida secretária foi condecorada pelo Exército, recebendo então a medalha do PACIFICADOR e pelo Ministério da Defesa, com a Medalha do Mérito Desportivo Militar (fev/2015). /A medalha do PACIFICADOR foi concedida ainda pelo Comandante Enzo Peri, quando a atual Secretária-Geral ocupava cargo no Ministério do Planejamento”.
Mas não concluíram isso sem que antes tivessem retratado, na mesma matéria, isso:
É notável como esta informação amarra pontas desconexas. Muito do que temos ouvido ultimamente da boca de militares diz respeito ao modo como eles concebem o que seria o “maior aparelhamento da história”, realizado pelo PT. Evidentemente a nomeação de um quadro “sensível” do “aparelho comunista” fazendo a ponte entre a Defesa e a empresa administradora do Pré-Sal se constituía num “indício” das ligações que militares faziam entre o “plano comunista de aparelhamento” e a “real intenção” de se estabelecer um pêndulo geopolítico com a China-Rússia.
[Nota D.E.: sobre isso, ver também a contratação de destacado ex-dirigente do Partido dos Trabalhadores, Wladimir Pomar (pai de Valter), como lobista de estatais chinesas junto ao Governo — do PT — , aqui]
Vai, assim, bem além da mera formalidade de um acordo comercial entre BRICS. Mencionei em um programa do D.E. que havia uma percepção, por parte dos militares, que a Odebrecht tinha ocupado lugares-chave na administração estatal, pois (conforme li em ótimo artigo do antropólogo Marcos Otávio Bezerra, “Corrupção e Produção do Estado”) de fato houve uma hora em que a expertise da Construtora era tão grande que eles eram os próprios “oficiais de ligação” entre instâncias diversas.
Como foi confirmado pelo próprio Romulus Maya (dos seus tempos em grandes bancas de advocacia no Brasil), na qualidade de fonte primária,[3] isso de fato se tornou particularmente sensível nos projetos em que militares estavam envolvidos – nos setores Nuclear, de Óleo e Gás e Defesa (associada ao Pré-sal e Energia). Fato é que a ODT – Odebrecht Defesa e Tecnologia – era “sócia” de vários projetos, entre os quais o Prosub – de desenvolvimento dos submarinos brasileiros –, cuja empresa estatal responsável era justamente a Amazul – esta mesma que em Eva Chiavon era funcionária. Não descartaria a hipótese de que o “Pré-sal” de todo o processo de tomada de setores do Estado por parte de grupos militares seja, no fundo, a entrada no vácuo daquilo que eles dizem ser o “desaparelhamento do PT” – mas que na verdade passava pela tomada de rédeas dos projetos que envolviam a associação entre Defesa e recursos naturais. Isso, aliás, é uma boa pista para que se entenda por que, do ponto de vista militar, não se trata de “entreguismo” o que está acontecendo. Obviamente não precisamos comprar essa versão (nem aquela): o fato de se achar que uma coisa deve funcionar de outro jeito não implica fazerem-se as coisas do jeito que estão sendo feitas – uma engenharia reversa de aparelhamento, com uma séria possibilidade de trazer prejuízos às Forças Armadas por “desvios de função”.
Diante disso, é preciso se perguntar se todo mundo não cruzou o rubicão ao mesmo tempo. O problema de fato ocorre quando Dilma resolve “entrar na Caserna”, e daí possivelmente eles “prospectaram” que até as FFAA poderiam ser alvo de “aparelhamento”. A tal “resolução de conjuntura” de sete meses depois, aliás, foi o carimbo – público – de que eles precisavam (e isso justifica o uso que Villas-Boas fez dela). Quando ocorre de fato essa escorregada protocolar e a retirada da autonomia das Forças é efetivamente assinada por Eva, as coisas parecem ter saído dos limites. Ainda que Jaques Wagner tenha tentado relativizar o decreto produzindo uma portaria, dias depois, que supostamente sub-delegava aos Comandantes os poderes de nomear, promover, etc., como notou o mesmo Almirante Roberto de Guimarães Carvalho, “estar autorizada não significa ordem para subdelegar”.
Seja como for, os desdobramentos evidenciaram um problema maior ainda com o Ministério. Em reportagem do OESP de 08 de setembro de 2015 foi dito que:
“Este problema se soma a outro que já vem sendo comentado no meio militar: o desconforto que vem causando por causa das inúmeras delegações dadas por Wagner à secretária-geral, Eva Chiavon, que acaba obrigando os Comandantes a terem de se reportar a ela, para discutir temas de suas áreas. Criou-se, assim, uma nova barreira na hierarquia, quando os militares sempre tiveram um canal direto com o ministro da Defesa. Acostumados com hierarquia, os militares entendem que o relacionamento direto e corriqueiro deles tem de ser com o Ministro e não com outros secretários da pasta. A Presidente foi surpreendida pela reação negativa do Decreto, que foi levada a ela como uma coisa burocrática, que já havia sido combinada com os Comandantes militares, conforme a secretária-geral da Defesa, Eva Chiavon, informou à Casa Civil. Os ministros da Defesa e da Casa Civil, Aloizio Mercadante, alegaram desconhecer o texto. Os dois foram procurados pelos Comandantes assim que o decreto foi publicado, questionando por que não foram, pelo menos, informados e disseram que iam apurar o ocorrido”.
Impossível saber quem dissimula mais nessa reportagem, que tem claro viés de fonte. Dilma diz que não sabia de nada, pois já havia combinado com os Comandantes. Eles negam. Quem diz que eles sabiam foi Eva Chiavon, que passa essa informação à Casa Civil, Casa Civil e Ministro da Defesa alegam não saberem do que se trata… Alguém aí está errado, claramente. Custa-me crer que foi tudo uma “pegadinha” da Secretária Executiva do Ministério da Defesa. Fato é que Dilma estava há tempos em guerra com os militares, e parece ter apostado na sua popularidade. Por isso, mesmo com tudo assim ocorrido, ela resolve dobrar a aposta no período que se sucedeu.
Um mês depois, Dilma assinou o Decreto que praticamente extinguia o GSI, retirando dele o status de Ministério e subordinando-o à Casa Civil, na época ocupada por Aloizio Mercadante (curiosamente, no mesmo dia [02/10/2015] em que substituiu J. Wagner por Aldo Rebelo no Ministério da Defesa). O então Ministro do (extinto) GSI, General José Elito, publicou uma nota lamentando que o GSI tenha sido incluído na reforma administrativa, e lembrando a ela que o Ministério existia desde 1938.
Seria esse o momento em que o setor de informações começou uma rebelião?
Fato é que Dilma simplesmente perdeu toda a área de segurança, defesa e inteligência como apoio, e tenho a impressão de que isso responde em grande parte à pergunta se existe algum modo de recompor a relação entre os militares e o PT.
[Nota D.E.: de se notar que Aloizio Mercadante é filho e sobrinho de Generais. Seu pai foi, inclusive, Comandante da Escola Superior de Guerra:
É certo, portanto, que bem conhecia o quão ciosos são os militares dos protocolos e prerrogativas concernentes à hierarquia (caso Eva Chiavon/ Decreto) bem como o valor dado no Exército ao — histórico — GSI.
Na qualidade de Ministro-Chefe da Casa Civil de Dilma Rousseff, Mercadante teria ajudado a implodir a relação dos militares com o PT?]
Não basta dizer que há antipetismo nas Forças Armadas, é preciso entender como este viés ganhou “materialidade” e galvanizou o apoio dos militares ao projeto que se iniciou depois com Temer (e, não confundir aí com um projeto de Temer).
Só para constar, logo nas primeiras semanas de seu Governo, o então Vice-Presidente – ainda apenas em Exercício (provisório) da Presidência – publicou o DECRETO Nº 8.798, DE 4 DE JULHO DE 2016, que restitui a delegação da competência para a edição de atos relativos à carreira militar aos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Isto é, desfaz o Decreto anterior. Depois disso, a recriação do GSI, e, finalmente, a condução que levou este órgão a ser hoje o “Ministério dos Ministérios”.
(Sobre isso, mais aqui)
Começou, assim, a fase de um novo projeto de aparelhamento do Estado, desta vez realizado por militares. Gostaria de lembrar apenas, mais uma vez, as palavras do próprio Almirante Guimarães Carvalho:
“A esse respeito, recordo-me de uma conversa que tive, há alguns anos, com um colega de uma marinha amiga da América do Sul. Segundo ele, houve um tempo em que os oficias superiores daquela marinha, principalmente nos postos mais antigos, tinham por hábito se filiar a um partido político. Isso não era um requisito obrigatório, mas quase todos faziam isso. Se o partido ao qual ele havia se filiado estivesse no poder na época das promoções aos postos de Capitão-de-Mar-e-Guerra e de Contra-Almirante, suas chances eram bastante ampliadas, já que os políticos participavam do processo das promoções. Em suma, era a prevalência do critério político ideológico sobre o dos méritos profissionais. Algo semelhante ao que vem ocorrendo em alguns países vizinhos. Politizar as Forças Armadas, ou como se diz, “bolivarianizá-las”, conforme defende o receituário ideológico de parcela considerável dos políticos que apoiam o governo atual, pode ser um sério risco. É bom que a sociedade brasileira perceba isso”.
Que se lembre disso cada vez que um General da ativa assume um cargo, e deixa seus colegas produzirem horizontes…
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* Piero Leirner é Doutor em Antropologia pela USP (2001), Professor na UFSCar, e comentarista do Duplo Expresso.
Notas:
- Atente-se aqui para a recente acusação do General Heleno sobre as “ameaças” que a Igreja Católica representavam sobre nossa soberania na Amazônia: “Na avaliação da equipe de Bolsonaro, a Igreja Católica é uma tradicional aliada do Partido dos Trabalhadores (PT) e estaria, segundo investigações internas, se articulando para influenciar debates antes protagonizados pelo PT no interior do País e nas periferias”. Fonte: Último Segundo. ↑
- Na precedência das 3 Forças a Marinha, por ser a mais antiga, ocupa o primeiro lugar na interinidade. ↑
- “Romulus Maya” (pseudônimo do advogado internacionalista Romulo Brillo), então atuando na área do direito empresarial no Rio de Janeiro, relata reunião em que foi consultado por representantes da Marinha sobre a estrutura societária mais adequada para a formalização da joint venture a ser estabelecida entre a União (Marinha), a estatal naval francesa detentora da tecnologia do submarino com propulsão nuclear, a DCNS, e a… Odebrecht. Associação essa de capitais públicos e privados, nacionais e estrangeiros, para a construção e operação do estaleiro que montaria oito submarinos convencionais e um nuclear. Dado o estágio inicial, ainda informal, das tratativas e o fato de se tratar de uma contratação pela União, o que em princípio exigiria licitação, Romulus Maya indagou como já poderia haver, àquela altura, a indicação — “informal” — de que a Odebrecht tocaria o projeto pelo lado brasileiro. O representante da Marinha informou então, em off, que essa escolha — política — já tinha sido tomada. E que seria viabilizada com dispensa de licitação para a contratação de quem incontestavelmente detinha a tecnologia, a DCNS. E que a estatal francesa que ficaria de apresentar — em público — a associação com a Odebrecht como condição para aceitar o negócio. Ou seja, na narrativa oficial, quem teria escolhido a Odebrecht seria a DCNS — e não o Governo brasileiro. Em realidade, naquele 2007/2008, a determinação da escolha da Odebrecht, sem licitação, vinha do contratante. Ou seja, do Governo Lula. ↑
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Extra: a fala de Piero Leirner no Duplo Expresso de hoje, debatendo o conteúdo deste artigo
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