O Pior Diplomata do Mundo

Da Redação do Duplo Expresso,

26/02/2019, Andre Pagliarini*, Jacobin Magazine

Traduzido e disponibilizado pelo coletivo Vila Mandinga

 

O novo presidente proto-fascista do Brasil fez de tudo para controlar a narrativa em seu primeiro mês no cargo. Jair Bolsonaro tomou várias decisões controversas, para, pouco depois de tomá-las, cancelar as próprias decisões; seu vice-presidente várias vezes o desmentiu publicamente; e a primeira aparição internacional de Bolsonaro no Fórum Econômico Mundial em Davos, Suíça, foi rematado fracasso. Esse especial fracasso foi gravemente danoso para um país como o Brasil que precisa de reconhecimento dos investidores e da comunidade política internacional.

Independente do critério e de quem avalie, aquela multidão rala de plutocratas e filantropos não se deixaram impressionar pela fala escandalosamente superficial e afetada de Bolsonaro. Heather Long, correspondente do Washington Post em Davos, classificou o desempenho de Bolsonaro como “grande desastre”. Observou que “o homem tinha o mundo inteiro a vê-lo e ouvi-lo, e o melhor que encontrou para dizer foi que o pessoal fosse passar férias no Brasil.” Outro jornalista partilhou a reação de um amigo que assistira ao discurso de Bolsonaro: “Nunca, jamais se viu coisa semelhante com qualquer presidente em Davos… Bizarro. Realmente bizarro.” Investidores que contavam com lucrar no novo clima de negócios que supunham q houvesse no Brasil esperavam ouvir algum compromisso com reformas do sistema de aposentadorias do país, dentre outras medidas regressivas. Ficaram a ver navios, depois da cena patética com que os brindou o presidente do Brasil.

Bolsonaro, em vez de tentar reparar o dano, correu ao Twitter para celebrar boatos de que o deputado Jean Wyllys, gay e esquerdista, fugira do país por ter recebido ameaças de morte.

Enquanto Bolsonaro tropeçava no palco no mundo, em casa acumulavam-se os escândalos políticos. Relatórios de transações financeiras suspeitas envolvendo a esposa do presidente e um auxiliar direto de um de seus filhos e recém eleito senador, ocupavam as manchetes já desde antes da posse de Bolsonaro. Então, enquanto Bolsonaro repetia parvoíces diante de grandes empresários e políticos na Suíça, um dos principais jornais do Brasil ligava seu filho Flávio a membros de um esquadrão da morte ativo no Rio de Janeiro, conhecido como Escritório do Crime [também Gabinete do Crime, como se lê na Folha de S.Paulo (NTs)]. A mesma milícia parece estar envolvida no assassinato de Marielle Franco, vereadora afro-brasileira e de esquerda, assassinada em março de 2018.

Apesar de a mídia local dar a impressão de que dá destaque cada vez maior a esses escândalos, o projeto político mais amplo do clã Bolsonaro permanece intocado. A agenda política fortemente atrasista é encoberta por um componente doméstico que tem recebido vastíssima cobertura e por um componente de política exterior que, tradicionalmente recebe pouca atenção.

O componente doméstico é sem dúvida o aspecto mais gravemente ameaçador da presidência de Bolsonaro. Mas a política exterior merece ser examinada, pelo que revela sobre o papel que o Brasil está fixando para si mesmo, num momento em que forças da extrema direita radical já acumularam mais real poder em todo o mundo do que nunca nas últimas várias décadas. É movimento especialmente importante, se se considera o papel de liderança do Brasil na América Latina e tudo que está hoje em disputa, e vê-se que a era da Maré Rosa [ing. Pink Tide] está chegando ao fim. O novo ministro de Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, é o ator chave desse específico drama.

Cruzada de 11ª hora

Desde que assumiu o ministério, Araújo abandonou qualquer movimento que sugerisse qualquer intenção de conciliar com os críticos internacionais que fazem oposição a Bolsonaro. Em vez de conciliar, Araújo tem aplicadamente traduzido as ideias mais reacionárias do presidente, e construindo política exterior impertinente e imprudente.

Já desencaminhou de tal modo as relações internacionais do Brasil, que já se veem sinais de alarme até entre parceiros comerciais e aliados sempre importantes – com a notável exceção dos EUA, que veem Bolsonaro como parceiro ‘natural’.

Araújo opera para satisfazer o fervor reacionário que tomou todo o corpo político no Brasil, e afirmar uma nova imagem do Brasil no cenário mundial. Ao fazê-lo, desmonta e paralisa a figura global do Brasil, em nome de um projeto doméstico radical superinflado – mas jamais claramente exposto – pela beligerância tosca e rasa de Bolsonaro.

Como Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco já observaram em Jacobin, Bolsonaro “emprega o ódio como mobilizador político, e até incita a violência diretamente contra seus competidores políticos.” Araújo, que delira que seria pensador profundo, opera em projeto um pouco diferente.

Para Araújo, a presidência de Bolsonaro seria uma cruzada de 11ª hora para proteger e salvar o prédio sitiado da civilização ocidental. Não poupou tinta para articular os riscos e ameaças como as vê.

Em reveladora coluna assinada e publicada em janeiro em Bloomberg, Araújo esquartejou o filósofo britânico-austríaco do século 20 Ludwig Wittgenstein, que teria planejado uma “desconstrução pós-moderna avant-la-lettre do sujeito humano” e que teria estabelecido “as raízes filosóficas de nossa ideologia globalista totalitária atual.” Compreender as idiossincrasias intelectuais de Araújo é chave para compreender o fanatismo e a depravação intelectual brutais do Brasil de Bolsonaro.

Prerrogativas imperialistas

A política exterior em construção de Araújo é uma rejeição ‘no atacado’ de toda a abordagem implementada pelos governos do Partido dos Trabalhadores no poder de 2003 a 2016. A partir do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), o Brasil assumiu papel proativo nos assuntos globais, rompendo com o neoliberalismo perverso da década anterior, quando o governo vendeu valioso patrimônio nacional brasileiro e abraçou a ‘austeridade’ [é ARROCHO], em troca de um pacote de ‘resgate’ dado pelo FMI, de $41,5 bilhões.

O governo Lula foi especialmente ativo na América Latina. Em 2005, o Brasil bloqueou a proposta para criar a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas, ing. FTAA, Free Trade Area of the Americas), projeto dos EUA em andamento há muito tempo para conectar América do Norte e América Latina e Caribe (exceto Cuba), num arranjo semelhante ao NAFTA [Área de Livre Comércio do Atlântico Norte]. Forças progressistas na América Latina resistiram contra o que identificaram como uma imposição dos EUA neoliberais contra a América Latina.

O governo Lula, com a Argentina de Néstor Kirchner como aliado chave, tinha capital político suficiente para fazer naufragar o acordo. Em vez de aceitar um formato de livre comércio concebido por Washington, Lula decidiu a favor da integração regional. Trabalhou para fortalecer o Mercosul, um bloco de comércio sul-americano ao qual os acovardados políticos brasileiros jamais haviam prestado atenção, embora constituído em 1991.

Enquanto o PT esteve no poder, garantiu apoio inequívoco a outros governos progressistas da Maré Rosa – Venezuela, Equador, Argentina, Bolívia, Uruguai, dentre outros –, e dedicou tanta atenção à América Latina que alguns dos vizinhos do Brasil chegaram a protestar contra aquele empenho quase imperialista. “É óbvio que o Brasil só quer nossos recursos,” disse Marco Herminio Fabricano, do grupo Mojeño, de nativos da Bolívia, em 2011. “Parece que [o presidente] Evo [Morales] considera nos trair, a favor de seus aliados brasileiros.”

Além dessas objeções, os governos do PT enfrentaram críticas crescentes por não terem considerado qualquer horizonte além de um modelo de puro extrativismo, tendência que se tornou ainda mais aguda no governo Dilma Rousseff (2011-2016) que sucedeu o segundo governo de Lula. Até que, em 2016, as já desgastadas tentativas do PT para mitigar o conflito de classe, mediante o recurso de cooptar figuras de destaque da elite industrial e financeira, colapsou completamente.

Sob os governos do PT, o Brasil também aprofundou seus laços políticos, comerciais e culturais com a África. Como Benjamin Fogel observou, “Ao final do segundo governo de Lula, o Brasil tinha 37 missões diplomáticas na África, o maior número depois de EUA, França, Rússia e China. E o comércio Brasil-África cresceu, de $4 bilhões, para $24 bilhões.” O papel de destaque do Brasil global, como integrante do bloco geopolítico BRICS (Brasil, Rússia, Índia, África do Sul) trouxe reconhecimento internacional. E o país atraiu alto grau de desconfiança do establishmentconservador norte-americano.

Em 2012, Dov Zakheim, escrevendo para National Interest de Henry Kissinger, manifestava grave preocupação por não se ter tirado suficiente proveito da “herança do Império Português que o Brasil recebeu na África, ampliado pelo próprio poder crescente do Brasil naquela área.” Zakheim, que trabalhou no Departamento de Defesa dos presidentes Ronald Reagan e George W. Bush, via “indícios de que a noção de Império, e de direito imperial que a acompanha, está desaparecendo [no Brasil].”

Desde a Guerra Fria, o establishment da política exterior dos EUA sempre desconfiou de qualquer diplomacia sul-sul, especialmente quando é política oficial de nação de território tão amplo e economicamente importante quanto o Brasil. Fato é que avaliações alarmistas relacionadas à liderança global do Brasil já eram frequentes durante os governos Republicanos de George W. Bush e também durante o governo Democrata de Barack Obama, o que revela a continuidade das prerrogativas imperiais que os EUA se autoarrogam, em discursos oficiais que, sob outros aspectos talvez parecessem divergentes.

Se Bush atacava a independência do Brasil na América Latina, Obama limou o engajamento do Brasil no Oriente Médio, independência da qual o ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad do Irã disse que poderia “ajudar na promoção da paz e da estabilidade.”

Quaisquer que tenham sido os erros e acertos, a política exterior do PT foi sem dúvida assertiva, qualidade que, pelas respostas que evocou, expôs as inseguranças do imperialismo norte-americano do século 21.

Derradeiro Recurso

Depois do golpe parlamentar que pôs no poder o vice-presidente [e homem do jogo duplo] Michel Temer, o Brasil deu passo gigantesco para longe do palco global. Foi o serviço de uma política exterior autodeclarada realista. “Solidariedade pragmática aos países do sul global continuará a ser importante estratégia da política exterior do Brasil,” declarou o ministro José Serra, das Relações Exteriores, em maio de 2016. Serra dizia que estavam encerrados os projetos políticos mais amplos – por exemplo, que os BRICS pudessem servir como contrapeso de longo prazo à hegemonia global dos EUA. – E que se adotariam interpretações mais estritas do interesse nacional. “Essa é a estratégia sul-sul correta, não a que foi praticada para finalidades de propaganda, com baixos benefícios econômicos e altos investimentos diplomáticos” – Serra argumentou.

Em agosto de 2016, John Kerry, secretário de Estado dos EUA, reuniu-se com Serra no Rio de Janeiro e manifestou seu entusiasmo com a mudança de guarda política produzida pelo golpe parlamentar: “Entendo, e me parece declaração bem honesta, que ao longo dos últimos as discussões políticas aqui no Brasil não permitiram o pleno florescimento, digamos assim, do potencial dessa nossa relação”. A disposição que Temer mostrou, de se empenhar para fazer encolher o papel do Brasil no mundo, agradou muito, não surpreendentemente, aos EUA. Na verdade, a política exterior de Temer, que enfatizou interesses materiais imediatos, contra qualquer suposto compromisso ideológico, foi prenúncio da posição suposta “não ideológica” de Araújo, nos assuntos globais.

Diferente dos antecessores, é pouco provável que Donald Trump enfrente governo brasileiro que desafie suas preferências políticas. Bolsonaro mostrou-se bem ágil no movimento para se afastar da política exterior independente que marcou os governos petistas; e Araújo saudou Trump como “derradeiro recurso da civilização ocidental”.

Durante a campanha presidencial, Araújo, qualificou-se junto aos EUA quando propôs uma aliança dos três maiores países cristãos – Brasil, EUA e Rússia – para enfrentar o que chamou de “eixo globalista” constituído de China, Europa e a esquerda dos EUA.

Outro gesto simbolicamente importante foi a retirada do Brasil do Pacto Global de Migrações da ONU. Equivocado também em questões ambientais, o país abandonaria o Acordo de Paris para o clima. E há a declaração de que a embaixada do Brasil em Israel será transferida de Telavive para Jerusalém, o que enfureceu importantes parceiros comerciais do Brasil no mundo. Além da participação da diplomacia de Araújo na agressiva campanha internacional para isolar e, sendo possível tirar do poder, o presidente Nicolás Maduro da Venezuela.

A pressa do Brasil para ceder a própria liderança hemisférica está associada a um desejo incontrolável de se render aos EUA liderados por Trump.

Mas à parte essas considerações, as inclinações ideológicas pessoais de Araújo são muito bizarras. É a fachada perfeita para a epidemia de mentiras divulgadas pela mídia comercial – por exemplo, que o PT planejava distribuir material pornográfico às crianças, à guisa de educação sexual desde os primeiros anos de escola; ou que a Esquerda proibiria carne vermelha e relações heterossexuais – que acometeu a política brasileira, disseminada por canais não controlados como WhatsApp e Facebook.

Muito espantosamente, a orientação ideológica asinina de Araújo parece ter-lhe valido um ótimo emprego. O fanático ensandecido, em resumo, foi promovido precisamente por ser fanático ensandecido.

Milagre!

Aos 51 anos, Araújo é excepcionalmente jovem pelos padrões brasileiros, para o posto de ministro de Relações Exteriores. Mas tem quase trinta anos na carreira diplomática e ocupou algumas posições importantes, embora jamais tenha sido embaixador. No Itamaraty, como se conhece no Brasil o Ministério de Relações Exteriores, pelo que se sabe, ninguém gostou de ter figura tão jovem no topo da hierarquia funcional.

Araújo pode não ter as credenciais tradicionais para o cargo em que hoje está. Mas é aluno aplicado de Olavo de Carvalho, o pseudointelectual que a extrema direita abraçou como guru e que há décadas alimenta as conspirações que contribuíram para a ascensão de Bolsonaro. No clima político em que o Brasil vive hoje, essa conexão é fator a considerar.

Em seu primeiro discurso oficial, Araújo disparou: “(…) o Professor Olavo de Carvalho, um homem que, após o presidente Jair Bolsonaro, talvez seja o grande responsável pela imensa transformação que o Brasil está vivendo..”[1]

O. de Carvalho é o primeiro a concordar entusiasmado com essas avaliações de sua pessoal importância: “Jamais se viu tal coisa na história do mundo – um escritor que tenha tal influência sobre o povo” – disse ele sobre si mesmo a Brian Winter, editor de America’s Quarterly. “Só acontece no Brasil.”

O. de Carvalho indicou Araújo ao cargo de ministro de Relações Exteriores de Bolsonaro (e também influiu na aprovação ou veto de outros nomes indicados a cargos no governo Bolsonaro). O que antes pareceria altamente improvável está acontecendo: graças ao envolvimento de O. de Carvalho com o governo do Brasil, o mundo agora tem de discutir as ideias mais delirantes de um ermitão que nem vive no Brasil, onde o papel de fazedor de reis poderia ser investigado mais a fundo, mas numa área rural do estado de Virginia, EUA.

O. de Carvalho tem-se manifestado em campos tão disparatados, que é até difícil pensar em alguma teoria que unifique sua visão de mundo. Mas dois tropos em particular, inter-relacionados, tornaram-se lugar comum na direita brasileira em anos recentes: (1) uma definição estúpida irracionalmente elástica de “comunismo”, com uma incansável insistência na imorredoura gravidade dessa ideologia como ameaça sociopolítica; (2) pânico sempre em ebulição de um chamado “marxismo cultural”, tresloucada teoria de conspiração segundo a qual sinistros operadores de fantoches teriam controle quase absoluto sobre praticamente todos os aspectos do pensamento na sociedade moderna.

Ainda não se consegue entender completamente por que as ideias de O. de Carvalho tornaram-se tão prevalentes, mas há uns poucos elementos a considerar. O primeiro e talvez mais decisivo fator é a radicalização gradual rumo à direita que aconteceu ao longo dos 13 anos de governo do PT. Depois que o partido de Lula venceu quatro eleições presidenciais em sequência, milhões de brasileiros começaram a abertamente desconfiar dos processos democráticos, fosse porque acreditassem que as eleições estivessem sendo fraudadas, fosse porque demagogos profissionais realmente tivessem conseguido comprar a lealdade de eleitores sugestionáveis por ‘doações’ sociais feitas pelo governo [orig. government handouts].

Como a psicóloga social Sander van der Linden comentou, “vários estudos mostraram que a crença em teorias da conspiração está associada a sentimentos de impotência, incerteza e a uma carência generalizada de habilidade para agir e fazer escolhas [ing. agency] e controle.” Tais sentimentos estão ativos em número considerável de eleitores anti-PT e elites conservadoras desde, pelo menos, 2010. Até que, à altura do início do segundo mandato de Rousseff, essa multidão perdeu quaisquer freios que tivessem contra contestar abertamente resultados de eleições livres e justas.

Uma explosão no acesso à internet é outro fator a explicar a proliferação das teorias de conspiração de O. Carvalho. O. Carvalho é YouTuber furioso, e frequentemente posta diatribes na plataforma que o sociólogo Zeynep Tufekci chamou de “um dos mais poderosos instrumentos do século 21, para radicalização.”

Por fim, o número crescente de alunos nos cursos superiores, sob os governos do PT, também produziu público maior para argumentos pseudointelectuais e pseudo-sociológicos. Muito mais se pode dizer sobre como O. de Carvalho conseguiu o alcance que hoje tem, mas sua influência é já uma realidade que os progressistas brasileiros têm de confrontar.

O argumento de que forças progressistas exerceriam influência decisiva sobre normas e costumes da vida diária prosperou apesar, ou talvez por causa dela, da retirada real da Esquerda, que abandonou as ruas a partir, pelo menos, do fim da Guerra Fria. Enquanto o PT visível e transparentemente se moveu para o centro, para assegurar uma vitória histórica em 2002, seus inveterados inimigos passaram a clamar que se trataria apenas de camuflagem mais efetiva para a mesma velha agenda subversiva. Mais recentemente, a noção de que marxistas teriam camufladamente vencido a guerra pela cultura tornou-se artigo de fé que unifica os movimentos de direita em todo o planeta.

Mas O. Carvalho não é mero imitador. Está há décadas em guerra contra uma para ele iminente suposta ameaça do comunismo na América Latina. Segundo Carvalho, a mais insidiosa manifestação dessa ofensiva secreta seria o Foro de São Paulo, uma conferência de partidos políticos de esquerda de mais de 20 países latino-americanos e do Caribe, que se estabeleceu em 1990. Steve Bannon, que se tornou íntimo do clã Bolsonaro, também tem combatido abertamente o marxismo cultural, convocando uma união transnacional de movimentos identitários brancos cristãos.

Recente encontro entre Bannon e Carvalho foi uma espécie de soma de duas variantes distintas mas assemelhadas da mesma reação histérica. Interessante, Bannon tratou O. de Carvalho como o estadista mais idoso naquele encontro, o que sugere que as teorizações paranoides de O. de Carvalho estão tendo impacto orgânico na política global.

Como têm dito os arquiconservadores, o marxismo cultural é uma reconstituição da ameaça existencial de que o fascismo sempre precisou para florescer. Estudo atento dos abundantes escritos de O. de Carvalho deve figurar com destaque em qualquer análise da atual conjuntura.

Araújo reúne a vastíssima produção de O. de Carvalho e vídeos de YouTube num blog pessoal que já mantinha antes de se tornar ministro de Relações Exteriores. Naquele blog, Araújo refere-se ao globalismo como produto do marxismo cultural (numa conexão com muito visíveis sobretons antissemitas). Para o ministro de Relações Exteriores do Brasil:

[O. de Carvalho destaca-se como] “talvez a primeira pessoa no mundo a ver o globalismo como resultado da globalização econômica, para compreender seus horrendos propósitos, e começar a pensar sobre como derrubá-lo. Por muitos anos, foi a única pessoa no Brasil a usar a palavra ‘comunismo’ para descrever a estratégia do PT e tudo que acontecia no Brasil, quando todos ainda pensavam que o comunismo seria apenas uma espécie de coletivismo que teria morrido com a União Soviética. E não viam que o comunismo sobrevivera, sob muitos disfarces, na cultura e nas ‘questões globais’.”

Araújo também conecta explicitamente Carvalho e Bolsonaro e proclama, em artigo para a conservadora New Criterion:

Graças ao boom de internet, e especialmente à revolução das mídias sociais, [as ideias de O. de Carvalho] começaram de repente a se disseminar e a encontrar ecos por todo o país, alcançando milhares de pessoas que até então só haviam conhecido os mantras oficiais. Essas ideias rebentaram todas as represas [sic] e convergiram com a posição corajosa do único político brasileiro realmente nacionalista dos últimos cem anos, Jair Bolsonaro, garantindo a ele nível absolutamente sem precedentes de base de apoio popular. [Foi o ímpeto de que o Brasil carecia, para se remodelar como] ‘país conservador, antiglobalista, nacionalista’.

Araújo também afirma a importância das investigações anticorrupção como a Operação Lava-jato, cuja face pública, o juiz Sergio Moro, foi nomeado ministro da Justiça do governo Bolsonaro, depois de ter presidido o tribunal e o julgamento intensamente políticos que levaram à prisão do presidente Lula. “A investigação do esquema de corrupção do PT – talvez a maior empreitada criminosa de todos os tempos – avançou e começou a lançar luz sobre as profundezas da tentativa do PT para destruir o Brasil e assumir poder absoluto” – Araújo afirmou, repetindo a linha que se tornaria argumento padrão dos eleitores conservadores para ‘demonstrar’ que não foram movidos exclusivamente por hostilidade gratuita contra o PT.

Para Araújo, a circulação crescente das lições de O.de Carvalho produziram algo como uma libertação nacional:

Vivemos por tempo demais humilhados, sob o discurso globalista de esquerda. Agora podemos viver num mundo no qual criminosos podem ser presos, onde pessoas de todos os estratos sociais podem ter as oportunidades que merecem, e onde podemos nos orgulhar dos nossos símbolos e praticar nossa fé. O sistema de controle psicossocial está acabado. Evento muito próximo de um milagre!

O que Araújo saúda como visão iluminada na obra de O.de Carvalho não passa, de fato, do mais elementar conspiracionismo. Num estilo em que o ministro de Relações Exteriores claramente imita, Carvalho invoca tantas referências esotéricas, obscuras, que só com muita dificuldade consegue-se acompanhar seus argumentos. Aí, claro, está o truque: ao dar a impressão de que bebe de um profundo poço de saberes ancestrais, Carvalho aplica uma pátina de sofisticação, ao que são apenas módulos já prontos para serem repetidos, de conversa essencialmente reacionária.

Identificar o PT no poder a alguma espécie de empreitada comunista, por exemplo, é afirmar e reafirmar que palavras não têm qualquer significado. A campanha presidencial foi infestada desse tipo de niilismo ideológico, com parcela significativa dos eleitores anti-PT incapazes ou não desejosos de defender Bolsonaro a partir de algum mérito que houvesse em suas ideias desumanas, mas enlouquecidos de desejo, isso sim, de atacar Fernando Haddad, o candidato do PT, alvo das mais absurdas acusações. Esse é o contexto no qual a política exterior do Brasil está hoje sendo concebida.

Yo sé quién soy”, respondeu D.Quixote

A ironia disso tudo é flagrante: a direita brasileira sempre acusou o Partido dos Trabalhadores de ter politizado a burocracia federal e de conduzir os assuntos de política exterior por linhas ideológicas. Mas, agora, Araújo está desencaminhando o Brasil para bem longe de virtualmente todas as nações industrializadas do mundo, exceto os EUA, reclamando para si o trono da política mais sem paixões, pura razão, apesar dos riscos existenciais que ele mesmo invocou em seus pronunciamentos.

Em nome de um antiglobalismo turvo, um ministro de Relações Exteriores em ebulição, que quer ser visto como mão firme, critica todos, dos neoliberais em the Economist aos liberais do New York Times.

Enquanto isso, investidores internacionais que veem o Brasil basicamente como mercado a ser expandido e produtor de matérias-primas, esperam, contra todas as evidências, que o ministro das Finanças Paulo Guedes, aplicado economista neoliberal treinado na Universidade de Chicago, consiga fazer reformas que seduzam o business, apesar da sede de sangue do Bolsonaro autoritário e da cruzada civilizacional com que Araújo ameaça o universo.

Ao antever um papel reacionário global para o Brasil, Araújo está claramente empenhado numa aposta, à caça de pontos políticos em casa, conforme o mais escandaloso conservadorismo parece rugir de volta ao Brasil. As apostas são altas, dado que “a luta a favor ou contra a ordem global tornou-se luta pelo controle da ordem global” – como disse recentemente Quinn Slobodian.

Mas a onda reacionária transnacional com a qual Araújo comprometeu o Brasil pode já ter começado a esvaziar. E até agora Araújo ainda não mostrou o que fará para trazer o Brasil de volta a porto seguro, caso os ventos da diplomacia internacional comecem a mudar.

O que fará ele, por exemplo, se Trump não se reeleger 2020? As relações em que o Brasil aposta tudo hoje, podem facilmente, amanhã, fazer do país um pária. Além disso, Araújo pode até estar vendo uma luta civilizacional compartilhada que colocaria o Brasil ao lado dos Estados Unidos. Mas os presidentes americanos jamais trataram a maior nação da América Latina como parceiro igualitário. Trump se preocupa muito pouco com a América Latina. Apesar da dedicação do senador Marco Rubio à administração bolivariana, Araújo ilude-se se crê que os Estados Unidos deixarão de lado toda uma história de imperialismo, em nome da guerra aos valores progressistas.

Araújo usou a ocasião de sua posse no cargo de ministro para proclamar em alto e bom som um novo papel internacional para o Brasil (e para si mesmo). “Nós nos tornamos diplomatas que fazem coisas que só são importantes para outros diplomatas. Isso precisa acabar. Deixemos de olhar no espelho e passemos a olhar pela janela. Ou melhor ainda, vamos sair à rua para o Brasil verdadeiro.”[2]

A promessa de Araújo de abalar a cultura oficial do Brasil não é inerentemente questionável – o Itamaraty é tão elitista quanto qualquer outra instituição em sociedade tão desigual quanto a brasileira. Mas, ao apelar para um evidente “senso comum”, Araújo promete alinhar a política externa brasileira com as premissas reacionárias do presidente e de Olavo de Carvalho.

Para isso, o discurso de posse de Araújo ofereceu um caldo destilado de sua visão emocional da política externa: “Aqueles que dizem que não existem homens e mulheres são os mesmos que pregam que os países não têm direito a guardar suas fronteiras, são os mesmos que propalam que um feto humano é um amontoado de células descartável, são os mesmos que dizem que a espécie humana é uma doença e que deveria desaparecer para salvar o planeta”.

E continuou com talvez a mais sucinta articulação da onda reacionária que varre o globo: “Quando eu era criança, ouvia, e adolescente também, ouvia muita gente dizendo: “O mundo caminha inexoravelmente para o socialismo”. Mas não caminhou. Não caminhou porque alguém foi lá e não deixou. Hoje escutamos que a marcha do globalismo é irreversível. Mas não é irreversível. Nós vamos lutar para reverter o globalismo e empurrá-lo de volta ao seu ponto de partida.”

Os brasileiros há muito debatem o equilíbrio adequado entre a autoafirmação nacionalista no cenário mundial e a aquiescência aos ditames de potências estrangeiras. A ditadura que governou o país de 1964 a 1985, por exemplo, cedeu totalmente a Washington em seus primeiros anos, com o embaixador do Brasil nos EUA proclamando que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Com o passar do tempo, setores mais nacionalistas das Forças Armadas prevaleceram e procuraram fazer com que o país estivesse à altura de seu potencial como potência hemisférica por direito próprio. Até agora, Araújo mistura a conversa obstinada da segunda corrente com a essência submissa da primeira.

É possível que no caos que provavelmente definirá a presidência de Bolsonaro, Araújo possa cair e arder. A importância ardente que se autoatribui, fala do objetivo de Bolsonaro de alterar drasticamente a orientação da política externa do Brasil – de fato, esses dois se baseiam num poço sem fundo de egoísmo e autorreferência, de quem crê que homens durões e assertivos poderiam facilmente resolver problemas intratáveis. Mas é difícil imaginar que Araújo obtenha apoio político independentemente de seu presidente ou de seu venerado guru intelectual. Golpe potencialmente fatal para Araújo, portanto, será se Carvalho ou suas ideias forem efetivamente desacreditadas nos próximos anos.

Os militares também podem pôr em risco o emprego de Araújo. Desentendimentos com as Forças Armadas ameaçam reduzir sua influência. Não há dúvida de que, no confronto direto entre Araújo, o guerreiro cultural que se lançou numa luta civilizacional, e os pragmáticos de sangue frio das Forças Armadas, Bolsonaro estaria do lado da caserna. Afinal, os militares agora ocupam número sem precedentes de cargos de alto escalão no governo do Brasil. Ainda assim, a visão grosseira e conspiratória da política externa trazida por Araújo já se tornou parte integrante da imagem internacional e doméstica do Brasil sob o comando de Bolsonaro. Esse é exatamente o rosto que o atual governo parece querer apresentar.

No discurso de posse no Ministério, Araújo recontou lição que aprendeu de Don Quixote, contada a ele por O. de Carvalho. “Certa vez eu ouvi o Professor Olavo referir-se a um trecho do Dom Quixote de Cervantes, que é talvez o ponto central dessa obra. É quando Dom Quixote está caído à beira do caminho, em algum lugar de La Mancha, em espécie de delírio, começa a conversar com os passantes como se fossem o marquês disso, o conde daquilo, ou algum herói de cavalaria, enquanto fala das suas próprias façanhas. Lá pelas tantas, ele se refere a um camponês que está passando como “Marquês de Mântua”. E o camponês para e olha para ele e diz: “Peraí. Eu sei quem é o senhor. Eu não sou marquês de Mântua, eu sou seu vizinho, Pedro Alfonso. E o senhor não é Dom Quixote, o senhor é um bom homem, que conheço há muitos anos, o senhor é Alonso Quijano.’[3] E Dom Quixote para um segundo, pensa, e responde: “Yo sé quién soy.”[4]

Para Araújo, a moral da história é clara: “Algumas pessoas dirão que o Brasil não é isso tudo que o presidente Bolsonaro acredita e que eu também acredito, dirão que o Brasil não tem capacidade de influir nos destinos do mundo, de defender os valores maiores da humanidade, que devemos apenas exportar produtos e atrair investimentos, pois afinal somos um bom país, quieto e pacífico, mas não temos poder para nada. Dirão que o Brasil é apenas Alonso Quijano. Mas o Brasil responderá: Eu sei quem eu sou. [pausa] Eu sei quem eu sou.” Se Araújo sabe quem é Don Quixote e como termina o conto do quixotismo é questão que permanece por responder.[5]

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* Andre Pagliarini é um brasileiro-estadunidense, nascido nos EUA e criado no Brasil. Atualmente é professor assistente visitante na Brown University. Em 2018, completou seu PhD na Brown University, com uma dissertação intitulada “‘The Theater of Formidable Battles’: The Struggle for Nationalism in Modern Brazil, 1955-1985” (“‘Teatro de Batalhas Formidáveis’: A Luta pelo Nacionalismo no Brasil Moderno, 1955-1985), disponível em inglês .

Seus interesses de pesquisa incluem a Guerra Fria na América Latina, política do desenvolvimento econômico, ideologias radicais e movimentos sociais. Recebeu apoio de pesquisa do Center for Latin American and Caribbean Studies, do Global Mobility Program (Brown Graduate School), do The Cogut Center for the Humanities e da Brazil Initiative. Na Universidade Brown, liderou o projeto “Abrir Arquivos”, ambicioso projeto para digitalizar e indexar milhares de documentos do governo dos EUA relacionados ao Brasil, dos anos 1960s até os anos 1980s.

Também foi pesquisador destacado e associado pós-doutor no Liberated Africans, iniciativa patrocinada pela Andrew W. Mellon Foundation que reuniu dados sobre mais de 200 mil africanos resgatados do tráfico transatlântico entre 1808 e 1868. Seu primeiro artigo acadêmico, intitulado  “‘De onde? Para onde?’ New Social Movements and the Debate over Brazil’s ‘Civil’-Military Dictatorship” [… Novos Movimentos Sociais e o debate sobre a ditadura ‘civil’-militar do Brasil], foi publicado em 2017 na Latin American Research Review.

 

[1] Todos os trechos desse discurso macabro, citados em inglês no artigo de Jacobin, aparecem aqui na forma em que aparecem na versão oficial do discurso, publicada pelo MRE, dia 2/1/2019 [NTs]

[2] Todos os trechos desse discurso macabro aqui citados foram extraídos da versão publicada pelo MRE, dia 2/1/2019 [NTs]

[3] De fato, no livro, o narrador diz que o camponês está [farto de ouvir] tanta máquina de necedades [tal máquina de imbecilidades]. Está em Don Quijote, cap. V, I (esp.) (NTs).

[4] A fala completa e correta em português é “Quem eu sou, sei eu; e sei que posso ser não só os que já disse, senão todos os doze Pares de França, e até todos os nove da Fama, pois acima de todas as façanhas que eles por junto fizeram e cada um por si, ainda sempre pairarão as minhas!” É conversa de doido. Que nosso ministro usa para exemplificar seus ‘saberes’. Os quais, diz ele, aprendeu-os de Olavo de Carvalho. É quase inacreditável. Mas, sim, lá está, no discurso de posse do ministro de Bolsonaro, na página do MRE do Brasil, em 2019. [NTs]

[5] O autor norte-americano especialista em nacionalismo brasileiro não comenta a expressão com a qual Araújo concluiu o discurso de posse: Anauê Jaci [na página do MRE está grafado Anuê]. É a saudação dos integralistas nazi-fascistas de Plínio Salgado. Talvez tenha entendido que só isso vale um livro inteiro, se renasce hoje no Brasil, diretamente de 1932 [NTs].

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