Criminalização da LGBTfobia pelo STF

Aqui está o comentário de Thaís Moya no Duplo Expresso – programa de terça-feira, 19/fev/2019:

 

Por Thaís Moya*, para o Duplo Expresso

Sobre o julgamento da criminalização da homofobia (LGBTfobia), tenho algumas problematizações para o debate:

01. O tempo da política é diferente do tempo das teorias, que é ainda mais distinto do tempo das vivências cotidianas.

02. As teorias sociológicas que muitas vezes são usadas como base para reivindicar direitos de um grupo, como a teoria queer ou decolonial, [DE1] por exemplo, possuem em si pressupostos explícitos de que a identidade é um conceito instrumentalizado historicamente pelos impérios colonizadores e que, portanto, a sua politização, mesmo que com boas intenções, na prática, reafirma o dispositivo colonizador que paradoxalmente tenta combater.

03. Exemplo Um: quando eu afirmo que sou lésbica, mesmo considerando os impactos positivos no plano imediato que, inclusive, são mensurados a priori politicamente, eu estou simultaneamente reafirmando a heteronormatividade que está fundada. A mesma heteronormatividade que se alimenta da repetição incessante do binarismo heterossexualidade versus tudo que não corresponde a ela.

04. Exemplo Dois: quando defendo o casamento homoafetivo, ciente dos seus efeitos práticos devido a garantia básica de direitos, simultaneamente, estou reafirmando a heteronormatividade por meio da instituição casamento.

05. Teoria e política seguem historicamente em conflito, e é bom que assim seja. Porém, importa que essa relação não passe desapercebida e, principalmente, que uma esfera ensine e paute a outra quando necessário. Isso é ainda mais urgente em situações sobrepostas: Estado de Exceção + Golpe + Ditadura do Judiciário + Guerra Híbrida[DE2] + ataque imperialista, esperando que já seja óbvio a todos que estamos vivenciando isso.

06. Acima, além da política e teoria, citei vivências cotidianas. Elas podem ser entendidas como as pessoas e grupos que incorporaram as outras esferas, por exemplo. Tais vivências não são lineares, nem homogêneas, muito menos espontâneas, pois são também monitoradas e estimuladas por variadas narrativas: Igrejas, novelas, redes sociais, políticos, partidos, escolas, etc.

07. No que tange a gestão da hetetonormatividade – o que inclui principalmente questões de sexualidade e gênero (embora as mesmas estejam o tempo todo atravessadas pela racialização dos corpos e exploração do trabalho) –, está comprovado que as forças ultradireitistas souberam instrumentalizar no cotidiano das vivências o fator escândalo. Ou seja, literalmente, o ferver das mais subterrâneas neuroses (não podemos esquecer que a Psicanálise trouxe a subjetividade para o plano da cultura e, portanto, da política também) de parte da população para que ascendam a si mesmas ao poder como representantes-guerreiros na defesa da família tradicional cristã brasileira.

08. Tanto é assim, que tais forças não podem existir sem a existência dessa “ameaça”. Portanto, trata-se de uma incessante relação de reafirmação mútua.

09. Lembro que estamos sob gerenciamento dos imperialistas do mercado financeiro transnacional. Portanto, todo esse jogo de cena usa peças que eles carregam nos bolsos, e que são dispostas no tabuleiro político e cultural que tiram de suas cartolas, como os coelhinhos brancos dos mágicos animadores de festas.

10. Se de fato essa batalha em torno dos direitos LGBT – convenientemente colocados em pauta –, ameaçassem tanto assim o dispositivo heteronormativo (que compõe as bases do poder colonizador vigente) quanto as forças de poder do capital, ela jamais seria alarmada como tem sido. Tanto pela Igreja (e aqui incluo todo bojo judaico-cristão), quanto pelo poder financeiro-político. Nenhum bom estrategista lança holofote para seu calcanhar de Aquiles, não é mesmo? Pelo contrário, chama-se atenção para o campo em que há mais controle. Aquele com potencial de fogo sem baixas significativas.

11. O ponto 10 não exclui o fato que a realidade cotidiana dos LGBTs estar marcada pela violência e morte. Portanto, na micropolítica contextual, a luta pela criminalização da LGBTfobia é algo palpável, e faz sentido para grande parcela da população.

12. De novo, coloca-se a contradição dos tempos da política, do teórico e da cultura.

13. Por outro lado, também no plano prático, temos a configuração de um Judiciário extremamente empoderado. Um poder quase absoluto, capaz de manter a maior liderança política popular do século XXI refém em Curitiba, dentre outros absurdos inconstitucionais.

14. Perceba a ironia sádica: O poder que deve defender e executar a Constituição, mantém todo um país refém exatamente porque agride e humilha o aparato e a lógica jurídica. O poder não está mais na letra da Lei, mas na possibilidade de interpretação dela. Está na caneta do juiz. O próprio ex-juiz (e atual überminister da Justiça) recém declarou que a Constituição não precisa ser interpretada literalmente.[DE3]

15. Nesse momento, esse mesmo poder está – de forma acintosamente prática – Legislando. Ou seja, está atuando no lugar do Congresso definindo as letras da Lei. Gostemos ou não dos congressistas, são eles que constitucionalmente devem escrever as leis. Principalmente em um contexto golpista no qual o único poder que não é escolhido/eleito diretamente pelo povo está tornando-se o maior agente dos desmandos fascistas atuais.

16. Isso mesmo! Juízes, promotores e afins não ocupam um dos poderes da República por meio da opção popular. Eles são escolhidos pelo poder Executivo nos tribunais superiores, e por meio de concursos nas bases. Ou seja, a partir de agora, o responsável pela escolha no andar de cima é, nada mais nada menos, do que Bolsonaro e sua equipe de desgoverno entreguista e fascista.

17. Ao menos nos próximos quatro anos, esse governo (eleito por meio de uma fraude completa) nomeará 15 juízes, sendo dois no STF. Claro, sem contar “eventuais mortes eventuais”, e os golpes dentro do golpe que podem tanto “impeachmar” alguém quanto retirar as asas dos aviões. Além do plano de revogar a PEC da Bengala, que ofereceria ao menos seis nomeações no STF para o atual regime.

18. Agora, pode agradar-nos o STF criminalizar a LGBTfobia e, como disse, ninguém tem legitimidade para desmerecer a urgência prática que isso significa na vida de cada LGBT. Tanto no plano material, como no emocional. Porém, é tão urgente quanto alertar que essa conquista/concessão (?) do poder vigente tem o potencial irreparável de voltar-se contra nós mesmos. E, talvez, seja pior: Reafirmar e reforçar o golpe vigente com garras ainda mais fascistas. Há muitas esquinas na Lei…

19. Como assim? Explico-me! O que impedirá que o STF legisle criminalizando quem quer seja, de forma conveniente, para os interesses da agenda golpista? Como defenderemos os povos indígenas se a configuração da próxima Corte definir que seja crime defender suas terras contra invasões de mineradoras, agroindústrias ou grileiros? Isso só para citar um exemplo. O mesmo pode ocorrer e ser replicado para diversos grupos sociais infinitamente, não é mesmo?

20. Parece-me uma mordida doce num fruto envenenado, entende?

21. Além do potencial destrutivo incontrolável, é necessário salientar que, na prática, tal criminalização não terá efeito nenhum se os delegados agirem como normalmente agem diante dos crimes de racismo e feminicídio.

22. Tem algo que me incomoda também: muito conveniente que Toffoli – que tem um general no cangote que lhe chama de “meu” –, mantenha tal julgamento para esse momento político, não é mesmo? Repercute no coração, tanto dos progressistas quanto nos conservadores, no exato momento em que um líder LGBTfóbico – que usou isso para tornar-se popular e “mito” – enlameia-se aos trancos, barrancos, laranjas e quimioterapias.

23. A coincidência desse julgamento com a exata quinzena das definições, apresentação e articulação da reforma (ou seria desconstrução?) da Previdência, também é escandalosa;

24. Desde terça-feira (12/fev/2019), as forças progressistas, políticas e midiáticas (incrível como personalidades com milhões de seguidores aderiram ao #criminalizaSTF) estão empenhadas e na torcida para que o Judiciário desobedeça a Constituição. Ou seja, passaram a apoiar a mesma instância de violência que instituiu o Golpe, e da qual passamos os últimos anos reclamando. No mínimo, irônico, não parece? Ou seria uma tolice orquestrada?

Bom, acho que já problematizei demais…

Por fim, é justo registrar que acordo todos os dias ciente de que posso ser agredida ou morta por ser quem sou: Mulher e lésbica. Assim como sei que minha família sofre por ter essa mesma consciência acerca da minha vulnerabilidade, imposta externamente pela heteronormatividade.

Não escrevi tais apontamentos porque tenho uma convicção sobre o tema. Pelo contrário! Fundamentalmente, porque minha análises política e teórica são atropeladas, a cada 24 horas, pelo medo que se manifesta até quando estou dormindo, quando sonhos são convertidos em pesadelos recorrentes.

 


* Thaís Moya é doutora em Sociologia e pós-doutora em Ciências Sociais, além de comentar todas as terças-feiras no Duplo Expresso.

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DE1 – Segundo Thais Luzia Colaço, “O pensamento decolonial reflete sobre a colonização como um grande evento prolongado e de muitas rupturas e não como uma etapa histórica já superada. […] Deste modo quer salientar que a intenção não é desfazer o colonial ou revertê-lo, ou seja, superar o momento colonial pelo momento pós-colonial. A intenção é provocar um posicionamento contínuo de transgredir e insurgir. O decolonial implica, portanto, uma luta contínua.” Em “Novas perspectivas para a antropologia jurídica na América Latina: o direito e o pensamento decolonial”; Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012, p. 08.

DE2 – Mais recentemente, o termo “Guerra Híbrida” – Hybrid War (KORYBKO, 2015), ganhou popularidade com “Hybrid Wars: The Indirect Adaptive Approach To Regime Change”. Originalmente, Hybrid Warfare (HOFFMANN, 2007) é definido pelo autor como “uma gama completa de diferentes modos de guerra, incluindo capacidades convencionais, táticas e formações irregulares, atos terroristas – incluindo violência e coerção indiscriminadas – e desordem criminal. Guerras Híbridas podem ser conduzidas tanto por Estados como por uma variedade de atores não estatais. Essas atividades multimodais podem ser conduzidas por unidades separadas, ou mesmo pela mesma unidade, mas geralmente são dirigidas e coordenadas operacional e taticamente dentro da arena de luta principal para alcançar efeitos sinérgicos nas dimensões física e psicológica do conflito. Os efeitos podem ser obtidos em todos os níveis de guerra.” Em “Conflict in the 21st Century: The Rise of Hybrid War”, disponível aqui.

DE3 – Segundo matéria publicada no UOL em 7/fev/2019, O ministro defendeu também que, embora a Constituição ‘sugira’ a necessidade de aguardar a execução da pena após o processo passar por todas as instâncias, ‘tudo é passível de interpretação’, e a Carta Magna não precisa ser interpretada de forma literal.”

 

 

 

 

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