Robert Parry, um homem essencial
Por Wellington Calasans, para o Duplo Expresso
Temos a honra de anunciar como nossa colunista para política e geopolítica a jornalista, escritora e editora Baby Siqueira Abrão. Formada em filosofia pela USP, Baby foi correspondente no Oriente Médio do jornal Brasil de Fato.
Este texto precipita a estreia dela aqui no Duplo Expresso, pois as suas publicações serão feitas a partir do dia 8 de fevereiro.
Por Baby Siqueira Abrão, com informações de Nat Perry – https://consortiumnews.com/2018/01/28/robert-parrys-legacy-and-the-future-of-consortiumnews/#comment-305739
Três AVCs e um câncer assintomático no pâncreas tiraram a vida de um dos maiores jornalistas investigativos do planeta
Na noite de sábado, 27 de janeiro, o mundo perdeu um de seus mais brilhantes jornalistas investigativos. Vencido por três AVCs, que revelaram um assintomático e não diagnosticado câncer no pâncreas – em desenvolvimento havia quatro ou cinco anos –, Robert Parry veio a falecer num hospital dos Estados Unidos. Num momento como o que atravessamos, com a degradação do jornalismo exercido pela mídia corporativa predatória, a morte de Bob Parry se reveste de um significado ainda maior.
Ele fazia parte daquele time de jornalistas “antigos”, “démodés”, para os quais as notícias se baseavam em fatos, não em opiniões seletivas nem em convicções de viés político. Mais do que isso, Parry farejava o que havia além dos fatos e iniciava investigações amplas, profundas, capazes de revelar muitos dos escândalos dos governos estadunidenses. Um deles foi o famoso caso Irã-Contras, em que os Estados Unidos vendiam em segredo armas para seu arqui-inimigo a fim de financiar, com o produto da venda, o grupo conhecido como “contras”, com o objetivo de derrubar o governo sandinista da Nicarágua.
Parry também descobriu que os “contras” traficavam cocaína para os Estados Unidos enquanto o governo de Ronald Reagan (1981-1989) fechava os olhos para isso, embora estivesse em plena campanha antidrogas. Transformada em pedras de crack, essa cocaína se espalhou por todo o território estadunidense, devastando vidas em comunidades constituídas principalmente por pobres e negros.
Seguindo a trilha Irã-Contras, Bob foi mais fundo e encontrou provas de que Reagan atrapalhara a negociação do governo Jimmy Carter (1977-1981) com Teerã, para libertar os 52 estadunidenses presos como reféns na embaixada dos EUA desde a revolução iraniana de 1979. O staff da campanha de Reagan temia que o sucesso da negociação levasse à reeleição de Carter, e por isso manteve detidos seus compatriotas. Não por acaso, eles somente foram soltos momentos depois de Reagan ter sido empossado presidente, em 20 de janeiro de 1981.
Em 1995, já fora da mídia predatória, Bob Parry lançou, com a ajuda do filho mais velho, Sam, o portal Consortium.news. No começo o endereço abrigava apenas os documentos que ele encontrara no porão do Congresso, comprovando a interferência de Reagan nas conversações para a libertação do corpo diplomático preso em Teerã. Não demorou muito, no entanto, para suas páginas estamparem também os artigos de Bob e, mais tarde, de outros jornalistas investigativos e de ex-agentes do corpo de segurança dos EUA dispostos a contar segredos capazes de explicar acontecimentos antes nebulosos.
Solidário, ele ficou ao lado do amigo Gary Webb, jornalista que publicou no San Jose Mercury-News a série de reportagens conhecidas como Dark Alliance, com detalhes sobre o tráfico de cocaína dos “contras” para os Estados Unidos – a rede Nicarágua-Los Angeles – e sobre a distribuição das pedras de crack nas comunidades compostas por negras e negros. A revelação despertou a ira dessas comunidades contra o governo, acusado por vários líderes de ascendência africana de tentar provocar o extermínio dos afro-estadunidenses. Outra consequência da série de reportagens de Webb foi a demonização que ele sofreu da mídia corporativa, como os ataques dos jornais The New York Times, Los Angeles Times e The Washington Post.
Em defesa do amigo, Bob publicou detalhes sobre o contexto das descobertas de Webb no Consortiumnews.com e na revista I.F. Magazine, também fundada por ele. Escreveu um livro, Lost History, afirmando haver fortes evidências, baseadas nos fatos revelados por Webb, de que as administrações Reagan e Bush (pai) conspiraram com traficantes de drogas para financiar a guerra contra o governo sandinista da Nicarágua. Infelizmente, nada disso foi capaz de levantar o ânimo de Gary Webb. O jornalista não suportou ver sua vida profissional e pessoal destruída e suicidou-se em 2004. Parry continuou defendendo o amigo e sua coragem em denunciar a rede Nicarágua-Los Angeles de tráfico de cocaína até depois do suicídio. Em Democracy Now, por exemplo, ele escreveu: “Há uma dor especial no fato de seus colegas de profissão te atacarem por você ter feito algo que eles deveriam admirar e compreender. Há sim uma dor especial em fazer todo aquele trabalho e depois ver o New York Times, o Washington Post e o Los Angeles Times tentarem destruir sua vida”.
Em 2015, com o apoio da família de Webb, ele lançou o Gary Webb Freedom of the Press Award [Prêmio Gary Webb de Liberdade de Imprensa]. Todo o apoio oferecido a Gary Webb quando o jornalista era demonizado pela mídia predatória dá bem a dimensão do homem que foi Robert Parry. Dá, igualmente, a noção da vulgarização que domina aqueles e aquelas que fazem o abjeto jornalismo de hoje, que Bob chamava de “informação de guerra”.
Em seu último artigo, “An apology and explanation” [https://consortiumnews.com/2017/12/31/an-apology-and-explanation/], postado em 31 de dezembro de 2017, ele afirmou ter fundado o Consortiumnews em 1995 a fim de usar um então novo meio de comunicação, a internet, para que “os velhos princípios do jornalismo tivessem uma nova casa”. Algumas considerações de Bob servem direitinho ao jornalismo com que a mídia predatória vem colonizando mentes em nosso país:
“Desenvolveu-se a ideia de que para derrotar um oponente político não basta criar um argumento melhor [que o dele] ou despertar apoio popular, mas procurar algum ‘crime’ que possa ser atribuído a ele ou a ela”.
“Cada vez mais encontro políticos, ativistas e sim, jornalistas que se preocupam menos com uma avaliação cuidadosa dos fatos e da lógica e mais em conseguir um resultado geopolítico pré-encomendado – e essa perda de padrões objetivos atinge profundamente os mais prestigiosos comunicadores da mídia estadunidense. Essa perversão de princípios – alterar a informação para que ela leve a uma conclusão desejada – tornou-se o modus vivendi da política e do jornalismo dos Estados Unidos. E aqueles de nós que insistem em defender princípios jornalísticos como o ceticismo e a imparcialidade somos mais e mais rejeitados por nossos colegas, uma hostilidade que surgiu primeiro na direita e entre os neoconservadores mas que com o tempo foi absorvida pela ala progressista. Tudo se tornou ‘informação de guerra’”.
“É por esse motivo que muitos de nós, que expusemos os delitos cometidos pelo governo no passado, terminamos nossas carreiras como proscritos e párias”.
“Mas – nessa chegada do Ano-novo –, se eu pudesse mudar uma única coisa no jornalismo estadunidense e ocidental, seria repudiar a ‘informação de guerra’ em favor do velho e fora de moda respeito pelos fatos e pela justiça – e fazer o possível para conseguir um eleitorado verdadeiramente informado”.
Acostumada a ler os artigos de Bob Parry no Consortiumnews, vou sentir, e muito, a falta deles.
Descanse em paz, Bob. Você deu dignidade à vida.
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