Velha questão: direita unida, esquerda estilhaçada. Vol. 1: Por quê?, por Romulus
Velha questão: direita unida, esquerda estilhaçada. Vol. 1: Por quê?
Por Romulus
– O mito do conflito entre irmãos ao ponto do fratricídio povoa a psique humana desde sempre: Seth e Osíris, Caim e Abel, Esaú e Jacó, Romulo (opa!!) e Remo…
– Esquerda e direita: de um lado, guerra fratricida. Do outro, irmãos trabalhando (juntos) em uma empresa familiar.
– A distância entre a “vaidade” na esquerda e o “preço” na direita.
* * *
De um lado guerra fratricida. Do outro, agem como irmãos em uma empresa familiar: a distância entre a(s) “vaidade(s)” na esquerda e o(s) “preço(s)” na direita.
É interessante notar como a direita – pragmática que só ela – consegue aparar arestas e fazer convergir seus interesses com muito mais facilidade do que as esquerdas.
E isso em qualquer lugar do mundo: há um filme do neorrealismo italiano (o nome me escapa agora) em que, numa cidadezinha, prendem-se na carceragem de uma delegacia todos os militantes locais das esquerdas: stalinistas, trotskistas, maoístas, anarquistas, etc.
Há, momentos depois, um diálogo antológico entre os dois agentes do conservadorismo no local: o prefeito e o delegado. Esse último expressa ao primeiro seu temor em ter aqueles militantes – “todos vermelhos” – na mesma cela. Teme que, confinados, conspirem e formem uma frente perigosíssima, capaz de subverter a ordem da cidade.
Ao que o prefeito, raposa velha, retorque:
– Que nada! Você deve justamente deixa-los presos todos na mesma cela! Isso é im-pe-ri-o-so, Sr. delegado! É a garantia de que brigarão entre si e acabarão por matar uns aos outros. Farão, eles mesmos, o serviço para nós, ora!
Pois é…
A distância que separa o pragmatismo da direita, que resulta na sua união, e as eternas querelas internas das esquerdas, dividindo-as, é tão ampla que gera anedotas como essa.
A propósito, por que será que se fala muitas vezes “as esquerdas”, no plural, mas nunca “as direitas”?
Não existe divergência entre os diferentes setores da direita?
Evidente que sim! Sucumbem a paixões humanas tanto quanto a esquerda, suponho. Embora, talvez, trate-se de paixões de sinal trocado.
Ou não?
Pode ser que apenas o objeto sobre o qual essas paixões se projetam – traçando, então, objetivos – é que seja diferente, não?
De qualquer forma, como é que sempre acabam fatalmente se entendendo entre eles?
Esse enigma me intriga há muito tempo. Desenvolvi, então, uma resposta esquemática – com todas as limitações e abstrações de um esquema – para consumo interno.
Vejamos se a hipótese a que cheguei passa pelo crivo dos leitores:
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(i) Direita
Seus interesses são bem concretos e são facilmente expressos em uma negociação. Estão ligados à parte mais sensível do seu corpo: o bolso.
E o que enche o bolso da direita?
– Quando não é o poder – o meio – já é o seu fim – o dinheiro.
(e/ou vice-versa?)
E o que é o dinheiro?
Bem fungível – que “não tem carimbo”, como disse o Delfim – mas que é facilmente quantificável e divisível. É expresso, inclusive, em números!
Assim, fica fácil individualizar do todo – fungível e “sem carimbo” – a parcela que toca a cada um na divisão do butim. O problema se resume, então, a determinar o “preço” de cada um, em patamares aceitos por todos.
E como se resolvem as divergências?
– Dando mais – ou menos – do tal “bem fungível sem carimbo” para cada lado, ora!
Ponto.
Acabou o conflito e seguirão “todos juntos até a vitória”:
– Por Deus, pela família e pela propriedade, evidentemente!
*
Nota: mesmo sendo óbvio, é melhor registrar…
É evidente que há pessoas de convicção conservadora. Pessoas que não “têm preço” e que, em seu âmago, acreditam de fato nas virtudes – para o todo da sociedade – das doutrinas da direita.
Acreditam, por exemplo, na trickle down economics de Reagan. Ou seja: no “gotejamento”, do topo para a base da pirâmide, da riqueza que se deixa crescer – “sem embaraços do governo!” – lá em cima. E que – “fatalmente!” – transbordaria do alto para baixo.
[“Transbordaria” – condicional mesmo. Estamos esperando a comprovação desde 1980. Sem sucesso]
É isso que acontece?
*
Ou é isso aqui na verdade?
Pergunte ao Piketty e ao Bernie Sanders o que eles acham…
*
Quando falo de “preço” e negociações para chegar ao seu valor, refiro-me ao acerto entre as lideranças das bases sociais do pensamento de direita, que, a seu turno, vincula seus porta-vozes: os partidos e políticos de direita. No caso do Brasil, personalista, mais os políticos que os partidos propriamente.
O que foi o fenômeno Eduardo Cunha senão o maior porta-voz de interesses de direita? Ou melhor: de pessoas “da direita”?
Foi mais longe que qualquer outro pela habilidade pessoal que o fez munido – mais do que qualquer outro – dos meio$ para realizar esses interesse$.
Não?
É também evidente que os interesses de, por exemplo:
(i) rentistas+ mercado financeiro – brasileiros e estrangeiros;
(ii) industriais – brasileiros e estrangeiros,
(iii) agronegócio – brasileiro e estrangeiro;
(iv) gigantes dos serviços – brasileiros e estrangeiros;
(v) profissionais liberais e pequenos empresários;
(vi) igrejas; e
(vii) militares; …
… não são coincidentes.
Mas, no frigir dos ovos, encontram um meio de fazê-los convergir para um meio termo, não é mesmo?
Meio termo que é, por exemplo, acertado nas concessões que são feitas a, de um lado, a bancada BBB no Congresso, e, de outro, rentismo e finança, a quem se entrega a Fazenda e o Banco Central – em maior ou menor grau, mas sempre. Desde FHC, passando por Lula e Dilma e, finalmente, chegando ao golpe do grão-mestre Temer.
Tudo se resolve com a divisão do orçamento da União, em parcelas que agradem a todos. Ou, ao menos, que possam tolerar. Como se diz em inglês, em patamares com que todos possam conviver (terms that they can all live with).
“Interesses” e “convergência”…
Hmmm…
De que lado acabaram esses atores – diferentes – na longa novela do golpe?
Estavam juntos ou separados?
*
(ii) Esquerda
Supostamente – no meu esquema ideal – a esquerda não pensa com o bolso. Preza, em vez dele, ideias e valores. Em vista disso, uma composição entre divergentes de esquerda é necessariamente mais difícil e complicada.
– Como fazer a divisão “do todo”?
– E – questão prévia fundamental – o que será esse “todo”? Social-democrata, socialista, comunista, anarco-sindicalista, …?
“Ah, algo no meio entre todos esses…”
– Muito bem. E onde fica esse “meio”? Quem determina? Você ou eu?
Percebem?
Como chegar a uma concertação em termos abstratos? Sua interpretação é necessariamente subjetiva, certo? Isso quando não é orgulhosa, caprichosa, vaidosa, mesquinha…
Hmmm…
Vaidades e caprichos?
Sim, exatamente. Por definição, idealistas pautam-se por ideais. Assim, nos seus bolsos, em vez de dinheiro, carregam ideias.
E há diferenças capitais entre dinheiro e ideias:
(i) As ideias das diferentes facções de esquerda são, por definição, diferentes. Não são, como “os dinheiros”, fungíveis. Ou seja, uma ideia não substitui à perfeição a outra. Sempre se notará diferenças depois de uma eventual “troca”. Isto é, se for de fato possível uma troca. Nesse caso, para viabilizar o “encaixe”, imaginem quantos golpes de cinzel e martelo ficaram pelo caminho? E quantos traumas, sequelas e até amputações deixaram?
Não muito alvissareiro, certo?
E fica pior:
(ii) Diferentemente do dinheiro, ideias tem carimbo. Tem “selo de origem”. Os “ismos” sempre estão ligados indelevelmente aos nomes dos seus autores e defensores. “Marxismo”, “Trotskismo”, “Stalinismo”, “Maoismo”…
(Alguém já ouviu falar em “dinheirismo”?)
Ideias com selo são de fácil individualização. “Têm dono” e têm, cada uma, um “Vaticano” próprio para dizer o que “é cânone” e o que “é heresia”.
E tem mais:
Como o bolso dos idealistas está destituído de dinheiro, seu “patrimônio” se resume, grosso modo, àquelas ideias.
E, aí, as (maravilhosas) contradições humanas resolvem o restante da charada:
– Contrariando o discurso geral pregando altruísmo e solidariedade no que tange a bens materiais – sincero muitas vezes! – no caso particular do “mercado” de ideias, imateriais, o idealista quer assegurar o seu (único) patrimônio.
O seu quinhão.
Ou seja: todos os ingredientes reunidos para que se testemunhe a “melhor” expressão de algumas “paixões humanas”:
– Orgulho, capricho, vaidade, mesquinhez…
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Quem milita na esquerda sabe exatamente do que estou falando, certo?
😉
Desabafo:
– Oh! Que sorte tem a direita!
– Como é infinitamente mais fácil chamar um bom contador para fazer um balanço do seu “todo”.
– Que já fica até expresso em número$, ora! – e depois combinar o “preço” de cada um.
– Ou melhor, as respectivas “participações acionárias” na “sociedade” que se forma com reunião das diferentes “direitas“.
– E, evidentemente, a fração correspondente de “lucros e dividendos” nessa “empresa” coletiva (o orçamento da União).
– No caso, a palavra “empresa” conserva, também, seu sentido original de empreitada, campanha, aventura…
– … e até golpe!
– Direita, sua sortuda! Conta qual é o seu preço para mim, vai!
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Nota 1: essas considerações (em 3 posts) foram reunidas depois de ler o artigo “PT: entre a paralisia e a divisão?”, do Prof. Aldo Fornazieri, e os excelentes comentários aqui no GGN ao mesmo – vários antagônicos entre si – ótimo!
Nota 2: a trilha sonora do post há de apelar, pela mensagem, a quem é de esquerda. Ou, pela “forma”, ao menos a quem valoriza a nossa cultura: “Saudosa Maloca”, de Adoniran Barbosa, na interpretação de Elis Regina. Esse, para mim, deveria ser o hino do MTST. 😉
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Leia mais:
Vol. 2: cláusula de barreira
Vol. 3: a complicada relação PT vs. PSOL
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(perfil da minha brava e fiel escudeirinha)
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Quando perguntei, uma deputada suíça se definiu em um jantar como “uma esquerdista que sabe fazer conta”. Poucas palavras que dizem bastante coisa. Adotei para mim também.
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