Circo Voador celebrou Lula tutelado
Por Caos Soberano
Nesta última quarta-feira (18.12), ocorreu mais um evento Lula Livre. O evento se deu no Circo Voador, na cidade do Rio de Janeiro e teve como motivo o reencontro de Lula com setores partidários e de artistas após os 580 dias de prisão. Os encontros Lula Livre que ocorreram em diversas cidades brasileiras, formaram parte da estratégia de militância do PT e partidos aliados na defesa da liberdade do ex-presidente. O mesmo chegou a ter uma versão argentina ocorrida em maio de 2018 em Buenos Aires, com grande apoio popular e engajamento de setores artísticos.
Na festa-comício do Circo Voador havia para muitos uma expectativa de que a recém aliança informal de setores do PT pela candidatura de Marcelo Freixo na capital fluminense fosse trazida a público. Havendo também a possibilidade de contar com PCdoB na formação de uma coligação partidária, seria essa uma grande oportunidade para promover as candidaturas e a coligação ante um grande público. No entanto as mesmas não foram claramente defendidas. Freixo e a deputada federal Jandira Feghali estiveram presentes; mas muitos dirigentes históricos e importantes desses partidos e do próprio PT tiveram seu ingresso restringido, ou muita dificuldade para ingressar no recinto.
O ex-presidente e diversas lideranças como Dilma Rousseff e Fernando Haddad estiveram no palco do evento. Os discursos foram protocolares. Fontes que estavam presentes informaram que no caso de Lula, grande parte de seu discurso, mais de dois terços do mesmo, foi lido. Era portanto, um discurso que já estava pronto, e parecia buscar controlar as manifestações de Lula, para que o mesmo não manifestasse muito mais que a mesma linha dos dirigentes petistas que o sucederam. O enfoque das falas foram a crítica ao governo Bolsonaro e sua ação de censura às manifestações culturais.
A alegação de Lula para a leitura do discurso foi a de que se sentia mal, com problemas na garganta novamente. Na prática o que se percebeu foi um controle do PT de São Paulo e de setores ligados ao Instituto Lula, inclusive desautorizando a organização e a gestão do PT do Rio de Janeiro no evento.
Este tipo de contradição interna teve como justificativa aumentar a segurança de Lula. Segundo informações de diversos dirigentes que estiveram no local, os seguranças locais foram agressivos com membros do partido e militantes presentes. A mesma agressividade demonstraram com a, como também com membros da imprensa, representada pelos. Os setores de imprensa que se fizeram presentes: foram de jornalistas independentes e ligados a esquerda, e jornalistas de grandes veículos empresariais.
A principal forma de restrição de ingresso dos participantes ao Circo Voador foi o controle através de uma lista nominal previamente elaborada pelos organizadores. No entanto com diversas discórdias em relação às listas de setores diferentes do PT, ou seja, havia mais de uma lista oficial. Resultado: confusão e divisionismo decorrentes de um clima de divisão entre setores internos do PT, de tal sorte que a lista de convidados do PT não incluiu membros do PCdoB e PSOL. Tampouco incluíam diversas lideranças, simpatizantes e profissionais de comunicação, gerando algo entre a confusão e o descontentamento.
Segundo declarações de participantes do evento, ficou evidente que setores petistas, sobretudo de São Paulo, buscaram “tutelar” a fala e os passos de Lula. Somado a isso, a percepção do carisma e o desejo de estar ao lado de Lula, e ser por ele referendado, ocorreu entre diferentes atores políticos locais. Lula, em sua expressão plena, não esteve presente. Talvez seja por essa razão que se aventa que o mesmo deva deixar o sudeste e mudar-se para nordeste brasileiro. Destino provável, o Estado da Bahia.
Por outro lado, a idéia de uma chapa Freixo e Benedita da Silva não foi confirmada por todos os setores presentes, nem do PT carioca do qual uma parte prefere uma composição de segundo turno com Eduardo Paes, nem parte do PSOL, do qual muitos militantes e simpatizantes não aderem de forma definitiva o nome do deputado psolista como candidato). O fato é que Eduardo Paes lidera as pesquisas, seguido de Marcelo Freixo. A pré candidata petista encontra-se bastante abaixo nas intenções de voto, isto porque conta com forte rejeição do eleitorado carioca, como também, obteve frágil votação nas últimas eleições.
Interesses de manutenção de espaços da máquina partidária, como ocorre também em sindicatos, se misturam a composições de setores da esquerda que preferem ver derrotado o partido ou a suposta esquerda que atua em favor de alianças informais com a direita. Foi essa lógica que levou à fragilização e consequentemente permitiu que ocorresse o golpe no Brasil. Essa mesma lógica ainda se repete na prática, e foi claramente se fez perceber no evento do Circo Voador nesta quarta-feira. O Lula tutelado, refém de muitos, parece confirmar-se não somente por esforços de setores do Judiciário e do governo federal. Sua limitação foi a expressão do próprio ato que celebrava sua suposta liberdade.
As lealdades primárias, as lealdades de grupo, o nacional e popular e a esquerda perdida.
Dois elementos fulcrais merecem destaque acerca da dinâmica deste evento. O primeiro diz respeito a tutela de Lula por parte de um grupo que tem interesses na sua preservação no espaço estrutural do partido e para a reprodução de seus mandatos.
Um segundo fator é o teor do discurso construído, de forma tal, a ser agradável aos “artistas e intelectuais”, sem ser incômodo com temas tais como a derrota sem luta na reforma da previdência, a reforma administrativa proposta por Guedes, a qual ainda está por vir mas já se anuncia desastrosa para quem usufrui de serviços mantidos pelo Estado, o Patriot Act Tabajara, a privatização em fatias da Petrobrás, entre outros tantos temas que exigiriam uma ação contundente empreendida por uma esquerda autêntica.
Talvez o mais impressionante seja o fato de Lula ter-se rendido às pautas de um setor liberal de classe média para o qual as suas necessidades psicológicas e de auto-realização e, se sobrepõem a todo o resto. As pautas genéricas e abstratas como “liberdade de expressão”, “contra os preconceitos” e “por liberdades” assumem assim uma importância muito maior que as reivindicações básicas e imprescindíveis a qualquer ser humano. Moradia, alimentação, emprego digno e bem remunerado, segurança e saúde, recursos objetivos e mínimos para a existência humana que ainda são escassos e mal distribuídos na sociedade brasileira. São inatingíveis para a maioria da população. Essas necessidades básicas e a sua negação para os estratos mais baixos da sociedade acabam por desempenhar papel secundário ante as pautas abstratas que dominam os discursos.
A população brasileira assiste seus extratos mais pobres e excluídos – o lumpesinato, o proletariado precarizado, os trabalhadores em serviços terceirizados e do mercado informal e um novo campesinato despossuído em migração para as cidades – que têm que recorrer cada vez mais aos favores/serviços de Igrejas evangélicas e/ou do crime organizado nas periferias das grandes cidades brasileira em substituição à atenção que estatal que lhes é subtraída.
Esses dois setores, crime organizado e igrejas, formam um verdadeiro arcabouço quase paraestatal(1) nessas regiões onde o Estado brasileiro chega cada vez menos. Fornecem ou disponibilizam desde segurança e assistência social, chegando um “sistema legal” paralelo, simples e brutal, mas sobretudo rápido e eficiente. Igrejas e Crime organizado, às vezes consorciados, chegam ao ponto de fornecer “capital de fomento” a pequenos negócios nas comunidades. Em outras palavras, disponibilizam valores em um sistema de crédito próprio e não regulamentado pelo Estado.
Também fomentam mercados paralelos ilegais e não legais, os quais em última instância, propiciam uma forma de subsistência para estas populações social e economicamente marginalizadas. Uma questão que nos passa quase sempre desapercebida é o fato de que essa forma de atuação cria novas relações de lealdade entre as comunidades por elas afetadas e essas estruturas paraestatais.
Da mesma forma, as disputas por aparatos, cargos e preservação de mandatos cria um sistema de lealdades que muitas vezes se sobrepõem aos interesses nacionais. São diversos os casos de políticos, personalidades e intelectuais ditos de esquerda que têm por trás de si muitas vezes estão fundações ligadas ao grande capital ou interesses de setores do capital nacional e estrangeiro. Em função desses pactos de lealdade com o “andar de cima”, tais agentes sociais não fazem um enfrentamento consequente ao golpe, já que seu compromisso se dá com aqueles que são seus credores.
Quando falamos de um projeto nacional e popular estamos defendendo que o Estado volte a cumprir o seu papel e recupere a lealdade desses setores excluídos, lealdade essa que está sendo perdida para entes não estatais sejam eles ONGs, igrejas ou o crime organizado.
Tal projeto deve também incluir os setores do Estado que tenham sido prejudicados por esse projeto antinacional que aí se apresenta e os setores de classe média que começam a se sentir ou de fato estão a ser excluídos.
Os setores sérios de qualquer partido que se veja identificado com este projeto nacional e popular devem dar um combate sem tréguas e consequente a quaisquer setores que compactuem com o imperialismo e com as oligarquias locais em seu projeto de entrega do país e fechamento do regime. Os episódios relatados neste texto são uma amostra do quanto podem são nocivos estes elementos entreguistas que colocam os interesses próprios de seus grupos por sobre as necessidades da população e suas formas legítimas de organização.
É necessário construir um projeto de soberania nacional que envolva a todos e integre, de forma produtiva e coordenada, militares e civis que tenham por base a consolidação do Estado brasileiro garantidor de direitos e fomentador do progresso. Essa é a única forma de recuperar uma identidade nacional única e superar as cisões que têm sido impostas de forma deletéria, intencional e manipulativa.
Em última instância, a identificação de um povo com o Estado nacional é determinada pelo acesso a uma série de direitos, garantias e salvaguardas legais e materiais. A ausência ou incapacidade do Estado em garantir essas necessidades básicas levam à perda desta identificação entre o povo e seu Estado. Induzem à busca de entes não estatais que supram a sua falta e garantam sua sobrevivência, mesmo que de modo parcial e distorcido, gerando lealdades e compromissos que aceleram o processo de degeneração do próprio Estado.
(1) Quase paraestatal porque em sua definição, esse termo coloca a supervisão do Estado e colaboração com o Estado. Isso inexiste ou fica muito bem oculto sob forma de relações espúrias. Cf. o verbete Paraestatal no léxico Houaiss: “diz-se de ou entidade que, sem integrar a administração do Estado, mas sob sua supervisão, com ela colabora na realização de serviços tendentes à satisfação das necessidades coletivas” In: Grande Dicionário Houaiss. Acessado 19 de dezembro de 2019. https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-3/html/index.php#2.
Caos Soberano, analista de cibersegurança e tecnologia.
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