Eurásia dilacerada entre guerra e paz

Da Redação do Duplo Expresso

Eurásia dilacerada entre guerra e paz

1/5/2018, Pepe Escobar, Asia Times

Traduzido pelo coletivo Vila Vudu

Dois encontros – o aperto de mãos transfronteiras que sacudiu o mundo, entre Kim e Moon em Panmunjom, e o passeio cordial de Xi e Modi junto ao lago em Wuhan – podem ter deixado a impressão de que a integração da Eurásia estaria começando a andar por trilha mais suave.

Não, nada disso. Tudo é outra vez confronto: e no centro, como se podia prever, está o acordo nuclear iraniano, real, efetivo, que funciona, o Plano de Ação Conjunto Global (ing. Joint Comprehensive Plan of Action, JCPOA).

E, sempre fiéis ao mapa do caminho da lenta mas ininterrupta integração da Eurásia, Rússia e China seguem na vanguarda do apoio ao Irã.

A China é o principal parceiro comercial do Irã – especialmente por causa da importação de energia. O Irã, por sua vez, é grande importador de alimentos. A Rússia tem planos para cobrir esse front.

Empresas chinesas estão desenvolvendo campos gigantes de petróleo em Yadavaran e Azadegan Norte. A China National Petroleum Corporation (CNPC) [Empresa Nacional Chinesa de Petróleo] assumiu significativos 30% das ações num projeto para desenvolver o campo Pars Sul – o maior campo de gás natural do planeta. E um projeto de $3 bilhões está modernizando as refinarias de petróleo do Irã, incluído um contrato entre Sinopec e a National Iranian Oil Company (NIOC) [Empresa Nacional Iraniana de Petróleo] para expandir a refinaria Abadan, que existe há décadas.

Em visita importante ao Irã logo depois de assinado o Acordo JCPOA em 2015, o presidente Xi Jinping garantiu apoio a um plano ambicioso para multiplicar por dez o comércio bilateral, para US$600 bilhões, na década seguinte.

Para Pequim, o Irã é nodo absolutamente chave das Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE). Um dos projetos chaves da ICE é a ferrovia para vagões de alta velocidade, de $2,5 bilhões e 926 quilômetros, de Teerã a Mashhad; para essa finalidade, a China trouxe um empréstimo de $1,6 bilhão – primeiro projeto com apoio do exterior no Irã, depois de assinado o Acordo JCPOA.

Há furiosos rumores em Bruxelas em torno da impossibilidade de bancos europeus financiarem negócios no Irã – por causa da feroz, doentia e vacilante obsessão de Washington, com as sanções. Assim se abriu caminho para o banco estatal chinês CITIC , que entrou com $15 bilhões em linhas de crédito.

O Export-Import Bank of China até aqui já financiou 26 projetos no Irã – de tudo, de construção de estradas e mineração, a mineração e produção de aço – cerca de $8,5 bilhões em empréstimos. O grupo China Export and Credit Insurance Corp – Sinosure – já assinou memorando de entendimento para ajudar empresas chinesas a investir em projetos no Irã.

A empresa chinesa National Machinery Industry Corp assinou contrato de $845 milhões, para construir ferrovia de 410km no oeste do Irã, conectando Teerã, Hamedan e Sanandaj. E persistem rumores de que, no longo prazo, a China pode substituir a Índia, que enfrenta graves problemas de caixa, no projeto para desenvolver o porto estratégico de Chabahar, no Mar da Arábia – ponto de partida proposto de uma mini-Rota da Seda indiana para o Afeganistão, contornando o Paquistão.

Assim, em plena avançada de guerra comercial, Pequim não está exatamente muito feliz com o Departamento de Justiça dos EUA que pôs os olhos na Huawei, essencialmente por causa dos números exuberantes das vendas dos seus smart phones de alta qualidade ainda mais exuberante, no mercado iraniano.

Tenho Sukhois, saio a viajar…

A Rússia reflete, e faz avançar ainda mais depressa, a ofensiva de negócios chineses no Irã.

Depois de muito andar a passo de lesma quando se tratava de comprar jatos de passageiros norte-americanos ou europeus, a empresa Aseman Airlines decidiu comprar 20 Superjatos Sukhoi 100; ao mesmo tempo em que a empresa Irã Air Tours – subsidiária da Irã Air – já encomendou outros 20. O negócio, de mais de $2 bilhões, foi firmado no 2018 Eurasia Airshow no aeroporto internacional de Antalya na Turquia, semana passada, supervisionado pelo vice-ministro da Indústria e Comércio da Rússia Oleg Bocharov.

Ambos, Irã e Rússia, combatem contra as sanções dos EUA. Apesar de fricções históricas, Irã e Rússia estão hoje se aproximando cada vez mais. Teerã assegura crucial profundidade estratégica à presença de Moscou do Sudoeste da Ásia. E Moscou apoia inequivocamente o acordo JCPOA. Moscou-Teerã andam rumo ao mesmo tipo de parceria estratégica que liga hoje Moscou e Pequim. Só mudam os nomes.

Segundo o ministro da Energia da Rússia Alexander Novak, o acordo de 2014 Moscou-Teerã de petróleo-por-produtos sem passar pelo EUA-dólar entrou finalmente em vigência; a Rússia está comprando, para começar, 100 mil barris/dia de cru iraniano.

Rússia e Irã estão coordenando muito detalhadamente sua política de energia. Assinaram seis acordos para colaborarem em acordos estratégicos de energia no valor total de $30 bilhões. Segundo Yuri Ushakov, assessor do presidente Putin, o investimento russo no desenvolvimento dos campos de petróleo e gás do Irã pode ultrapassar os $50 bilhões.

O Irã logo será membro formal da União Econômica Eurasiana, UEE [Eurasia Economic Union (EAEU)] liderada pela Rússia, ainda antes do final de 2018. E com sólido apoio russo, o Irã, já em 2019, será também incorporado como membro pleno da Organização de Cooperação de Xangai.

A culpa é do Irã, ‘porque sim’

Agora comparemos esse quadro e a política do governo Trump para o Irã.

Nem bem tomou posse como novo secretário de Estado dos EUA, a primeira viagem internacional de Mike Pompeo – a Arábia Saudita e Israel – resume-se na prática a prestar contas aos dois aliados da retirada de Trump do acordo JCPOA dia 12 de maio. Subsequentemente, virá nova leva de sanções norte-americanas.

Riad – via o príncipe coroado Mohammad bin Salman (MBS), queridinho do Departamento de Estado na Av. Beltway – meter-se-á de corpo e alma na frente anti-Irã. Paralelamente, o governo Trump está pedindo, mas MBS não desistirá do fracassado bloqueio ao Qatar nem do desastre humanitário que é a guerra contra o Iêmen.

Certo é que haverá frente monolítica no Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) contra o Irã. Qatar, Omã e Kuwait veem como contraproducente esse tipo de ação. O que faz com que só restem a Arábia Saudita e o Bahrain, o mais irrelevante dos Emirados e mal disfarçado vassalo dos sauditas.
Na frente europeia, o presidente Emmanuel Macron ascendeu feito tipo não oficial de Rei da Europa, o que o pôs no mesmo patamar de Trump, como o provável aplicador de restrições contra o programa de mísseis balísticos do Irã, além de se ter posto a ordenar ao Irã que fique fora de Síria, Iraque e Iêmen.

Macron fez uma correlação direta – e flagrantemente absurda – entre Teerã abandonar o programa de enriquecimento nuclear, incluindo a destruição de estoques de urânio enriquecido a menos de 20%, e o país ser culpado por ajudar Bagdá e Damasco a derrotar o Daesh e outras gangues salafistas jihadistas.

Não surpreende que Teerã – bem como Moscou e Pequim – estejam ligando os pontos que unem recentes negócios massivos de compra e venda de armas entre EUA e Riad, e os gordos investimentos de MBS no ocidente, à tentativa do ‘eixo’ Washington-Paris para renegociar o JCPOA.

O porta-voz de Putin, Dmitry Peskov foi perfeitamente claro: o acordo JCPOA foi o produto de difíceis negociações entre sete países, ao longo de vários anos: “A questão é: será possível repetir aquele trabalho tão bem-sucedido, na situação de hoje?”

Com certeza não será

Daí a suspeita que toma conta de Moscou, Pequim e até de Bruxelas, de que a fúria de Trump contra o JCPOA explica-se por o acordo ser realmente projeto multilateral, sem nada de “EUA em primeiro lugar”; e que envolveu diretamente o governo Obama.

O pivô para a Ásia, do governo Obama – que dependeu de o acordo nuclear iraniano ser assinado – acabou por determinar uma cadeia impressionante, não desejada, de eventos geopolíticos.

Gangues neoconservadoras em Washington jamais admitiram que se normalizassem as relações entre o Irã e o ocidente; e hoje o Irã não só negocia com a Europa como, além disso, aproximou-se ainda mais de seus parceiros eurasianos.

O movimento para inflar artificialmente a crise da República Popular Democrática da Coreia, RPDC, que tentou prender Pequim naquela armadilha local levou ao encontro amistoso Kim-Moon, que simplesmente soprou e espalhou pelo ar, feito poeira,  toda a gangue do “detonem a Coreia do Norte”.

Para nem lembrar que a República Popular Democrática da Coreia, já desde antes do encontro Kim-Trump, monitorava atentamente o que acontece ao acordo JCPOA.

Resumo da ópera é que a parceria Rússia-China não admitirá qualquer renegociação do JCPOA, e por muitas razões importantes.

No front dos mísseis balísticos, a prioridade de Moscou será vender sistemas S-300 e S-400 de mísseis a Teerã, sem sanções.

Rússia-China podem talvez aceitar que as sunset provisions sejam prorrogadas  para mais dez anos,* mas não forçarão Teerã a aceitar.

No front sírio, Damasco é tida como aliada indispensável de ambas, de Moscou e de Pequim. A China investirá na reconstrução da Síria e no reerguimento como um dos nodos crucialmente importantes da ICE no sudoeste da Ásia. “Assad tem de sair” é perda de tempo, e leva a nada; Rússia-China veem Damasco como essencial na luta contra jihadistas salafistas de todos os matizes que possam ser tentado a retornar para reincendiar a Chechenia e Xinjiang.

Há uma semana, na reunião dos ministros da Organização de Cooperação de Xangai, Rússia-China emitiram comunicado conjunto de apoio ao JCPOA. O governo Trump está arranjando mais uma briga diretamente contra os pilares da integração da Eurásia.

 

* Expressão do Direito norte-americano; literalmente, “cláusulas para o pôr-do-sol”. Pode haver em vários tipos de lei: são as regras que tratam dos prazos para que desapareçam várias proibições ou autorizações feitas em lei.

Se o acordo for cancelado, deixarão de valer os seguintes prazos (das disposições mais importantes do acordo nuclear para o Irã):

– 15 anos: mantém-se a redução de 98% no urânio enriquecido;

– 20 anos: a Agência Internacional de Energia Atômica monitora a produção de centrífugas iranianas para conhecer a exata capacidade de cada uma; e

– 25 anos: mantém-se o controle sobre a produção de urânio [NTs, com informações “Iran and the Nuclear Sunset Clauses“, 16/9/2017, Paul Pillar, The National Interest]*****

 

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